POR JAN THEOPHILO
Em dado momento de suas memórias, o escritor Pedro Nava relembra do “Dr. Bernardo Aroeira, um homem pomposo e de falas empoladas. Farmacêutico de Ouro Preto. Latinista”. Nos loucos anos 1920, o ilustre era tido como um músico formidável ao piano. “Tocava de ouvido e lembro-me do seu ar teso no mocho do velho Rudibach-Sohn, o fraque descendo até o chão, o pince-nez de trancelin faiscando e as pernas muito abertas, como se tivesse medo dos pedais”, escreveu Nava. O filho do doutor não seguiu seus passos, mas tornou-se o principal professor de Desenho do tradicionalíssimo Colégio Arnaldo, fundado no início do século passado em Belo Horizonte, e por onde passaram nomes como Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e Ivo Pitanguy. Seu neto não fez nem uma coisa nem outra: foi titular de uma coluna de esportes chamada “Cama de Gato”, no Jornal de Minas.
Mas a vida é curiosa e coube ao bisneto do pianista dândi reunir em si todas as qualidades da talentosa família. Aos 17 anos, Renato Aroeira estreou como chargista na coluna do pai, dando início a uma carreira que o levou aos principais jornais do Rio de Janeiro, como O Globo e O Dia, além de outros veículos, como a revista IstoÉ. Apaixonado por música como seu bisavô, ele ainda se tornou saxofonista, e entre outras apresentações, toca duas vezes por semana no Cais do Oriente, o que lhe valeu a alcunha entre os amigos de “Woody Allen carioca”. No bom sentido, diriam os críticos do grande cineasta de vida pessoal um tanto complicada.
“Nem vem! A diferença entre nós dois é que ao contrário dele eu ganho mal nas duas profissões”, brinca Aroeira. Além dos shows semanais com o Trio das Quartas, grupo musical formado por ele e sua esposa, Claudia Barcellos, e o violonista Kiko Chavez, Aroeira costuma se apresentar com frequência ao lado de outros dois grupos e ainda produz sete charges por semana para o portal Brasil 247. “Eu tenho medo todos os dias de sair de casa. Mas preciso tocar, então desde dezembro do ano retrasado a gente voltou a se apresentar lá no Cais do Oriente. Antes mesmo da vacina. Mas eu ia, literalmente, me desculpe a expressão, com o C* na mão. Fora isso não tenho saído de casa”, diz.
Em termos artísticos, Aroeira parece ser mais do que um nome, mas um destino. “Nos anos 1930 havia dois chargistas assinando Aroeira em diferentes jornais de Minas Gerais”, lembra ele: “No momento, só de profissionais de desenho na minha família temos cinco, fora músicos, pianistas, ceramistas”. Mas nos últimos tempos não foi a música, nem os desenhos, que levaram Aroeira às manchetes de sites e jornais. Em 2019, o advogado Rodrigo Fux, filho do ministro do STF, Luiz Fux, pediu a abertura de um processo criminal contra Aroeira devido a uma charge, publicada durante as eleições de 2018, que retratava o então candidato à presidência Jair Bolsonaro e o premiê israelense Benjamin Netanyahu formando o símbolo da suástica com os braços. A acusação foi de que a charge seria antissemita.
A 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro definiu que a referência ao nazismo possuía propósito satírico e não causaria danos morais. A sentença ainda registrou que, no ano anterior, Bolsonaro não ficara constrangido em tirar fotografia ao lado de um homem fantasiado de Adolf Hitler. No ano seguinte, com Bolsonaro na Presidência, Aroeira e o jornalista Ricardo Noblat foram alvos de um pedido de investigação protocolado na Procuradoria-Geral da República (PGR) pelo ministro da Justiça, André Mendonça, com base na Lei de Segurança Nacional (criada durante a ditadura militar brasileira) .
O inquérito tratava de uma postagem de Noblat no Twitter, em que compartilhava uma charge de Aroeira sobre Bolsonaro. A charge, que trazia o título “Crime continuado”, mostrava o presidente com um pincel e uma lata de tinta como se tivesse acabado de pintar uma suástica em cima de uma cruz vermelha (símbolo de serviços de saúde) enquanto falava “Bora invadir outro?”, fazendo referência à fala do presidente que pedia para que as pessoas invadissem hospitais durante a pandemia de COVID-19. A ofensiva governista acabou se revelando um tiro no pé.
No dia seguinte ao pedido de investigação, muitos chargistas, no Brasil e no exterior, começaram a fazer suas próprias versões derivadas da charge original trazendo o título “Charge continuada” (em referência ao título “Crime continuado” da charge original) e com a hashtag #SomosTodosAroeira, para divulgação nas redes sociais. Uma versão brazuca do “JesuisHebdô”. Todas as charges derivadas foram reunidas na conta @somostodosaroeira do Instagram, chegando a mais de 400 artes diferentes relacionadas à charge original. O processo terminou arquivado.
Não que esse tipo de tema seja uma surpresa para Aroeira. Pouco tempo depois de começar a ilustrar a coluna do pai, o então editor do jornal, Durval Guimarães, percebeu aquele “algo a mais” no garoto e o transferiu para a editoria de Política. “Durval que, aliás, também é saxofonista e toca numa big band, a Mackenzie Sunset Lovely Band, ao lado de mais onze músicos. Uma grande figura, que ajudou a criar o bloco carnavalesco “Trema na Linguiça”, formado em 2009, em homenagem à reforma ortográfica”, conta.
“Mas eu ainda era muito garoto e tinha uma visão muito restrita do que era a Ditadura”, lembra Aroeira. A coisa esquentou na faculdade, onde ele aderiu à Centelha, o braço no Movimento Estudantil da Democracia Socialista, uma das organizações de esquerda que anos mais tarde iria se juntar na criação do Partido dos Trabalhadores. A trotskista Centelha até que era uma turma light, se comparada às outras organizações heavy metal daquela época como a Ala Vermelha do PC do B ou a famosa Liberdade e Luta, mais conhecida como Libelu. “As melhores festas eram as da Libelu”, reconhece ele hoje.
“Naquele tempo você tinha os maoístas, que eram os mais organizados, e as muitas variações do stalinismo e do trotskismo. E eu achava a Centelha menos maluca que aqueles caras ou do que os posadistas”, brinca. Posadismo, para quem não conhece (e isso não é vergonha nenhuma) é uma espécie de lenda obscura do socialismo latino-americano. Segundo ela, um filósofo argentino conhecido como Posadas afirmara que o Socialismo seria um sistema tão avançado que não poderia ter sido criado por mentes humanas. Ele teria inspiração intergaláctica! O único problema é que apesar de uns fãs aqui e ali (que não eram muito chegados à militância, já que a redenção dos povos viria a qualquer momento a bordo de discos voadores), nunca ninguém viu o bendito estudo que comprovasse essa maluquice, criada por uma espécie de cientologista do trotskismo.
Consolidar uma carreira de liderança na UNE estava distante dos planos de Aroeira, que acabou se envolvendo com as famosas greves do fim dos anos 1970. “No início a gente reconheceu o papel auxiliar do Movimento Estudantil naquele momento. Então começamos a imprimir algumas coisas, panfletos, e ajudar a distribui-los em porta de fábrica”, lembra. O Brasil assistia o ressurgimento do movimento sindical. “Vários sindicatos em Belo Horizonte espantaram os pelegos e passaram a ser muito mais atuantes”, lembra Aroeira, que começou desenhando para o Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações, e passou até pelo Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que no auge das greves de 1978, contou com a colaboração de vários nomes que se tornariam consagrados, como a cartunista Laerte. “Aprendi muito ao longo daquele processo”, reconhece Aroeira.
Vieram os anos 1980 e sua então companheira, Aida Queiroz, foi convidada a participar, no Rio de Janeiro, de um Curso Básico de Animação oferecido pelo National Film Board do Canadá. Mais tarde Aída, que após o curso produziu seu primeiro curta-metragem, “Noturno”, vencedor do prêmio Coral Negro de melhor curta de animação no Festival Internacional del Nuevo Cine Latino America em Havana, foi uma das fundadoras do Festival Anima Mundi. “Tinha uma pequena bolsa, nós tínhamos uma filha pequena, mas viemos e eu até consegui um trabalho no curso. Trabalhei lá como arte-finalista em acetato, fazendo preenchimento de cor de desenho animado”, conta.
E foi neste mesmo curso que Aroeira começou a se apresentar em grupo, ao descobrir que uma colega arte-finalista era violonista e o chefe, pianista. “Quando éramos crianças, todos os cinco irmãos tiveram que aprender a tocar violão. Só que era um violão só pros cinco. Eu era o único canhoto e como não podia ficar invertendo as cordas o tempo todo, sou o que toca pior entre todos. Então parti primeiro pro clarinete, que é um instrumento ambidestro, e depois para o saxofone”. Em 1987 pintou o convite para ser ilustrador no Globo e sua carreira como desenhista deslanchou.
Passada a turbulência com Bolsonaro, Aroeira adotou uma visão quase confucionista perante a vida e o futuro do Brasil. “Os chineses dizem que a pior das maldições é viver em tempos interessantes. Porque é ótimo ler sobre eles, mas vive-los é um troço complicado. E estamos vivendo tempos interessantes”, diz. Ele aponta o ressurgimento do fascismo, o crescimento gigantesco das diferenças sociais, e as discussões sobre as grandes empresas que passaram a dominar o mundo digital como exemplos desse período em especial. Mas Aroeira vê o futuro com otimismo. “Estamos vivendo como se no meio de uma imensa queda de braço. Não perdemos ainda. Vejo exemplos muito interessantes vindos da Europa e mesmo dos Estados Unidos. A gente tá vivendo na beirada de uma modificação um pouco mais densa, profunda. Nossa época vai ser estudada como de grande transição, eu acredito”, diz.
A partir desta edição, Aroeira será colaborador fixo da Rio Já, que passa a contar com um dos maiores cartunistas brasileiros no seu time. Seja Bem-vindo!