A paisagem grandiosa, radicalmente urbana, do Conjunto de Favelas do Alemão – caótica ao olhar leigo, de potência inesgotável a quem desembarca dos preconceitos – representa o centro do mundo para Raull Santiago. Ativista e empreendedor social, ele está desde que nasceu, 33 anos atrás, no “corre” das comunidades, na interação solidária com os vizinhos, na incansável vocação de socorrer, improvisar, criar, (sobre)viver. E prosperar.
No vaivém morros acima e ladeiras abaixo, até se formou – “em ruologia, com pós-doutorado em ciências periféricas e especialização em becos e vielas”, ele resume, numa narrativa apaixonada, de orgulho cativante. Hoje, conecta dois mundos por muito tempo separados, mas que se misturam diariamente, toureando a desigualdade e a violência definidoras de toda uma sociedade.
“A cidade partida do livro do Zuenir Ventura só existe por um lado”, sustenta Raull. “A favela todo dia circula pela cidade, é a primeira a descer para ligar os interruptores da sociedade, passando por ônibus lotados, horas de trânsito. E é a última a voltar para casa. A favela não experimenta ambientes de cultura, arte e lazer que ajuda a construir. Mas é o funcionamento da sociedade”.
No ambiente vítima de preconceito dos andares de cima do asfalto, há pendores inestimáveis, de pessoas que, oprimidas, desenvolvem soluções criativas no caminho da sobrevivência. “Se a gente conseguisse garantir direitos a essa população, seria de uma força enorme”, aposta o ativista. “Vivem no Complexo do Alemão pessoas do Norte, do Nordeste, indígenas, quilombolas, ribeirinhas… As periferias são a riqueza cultural do Brasil, mas têm sua arte copiada, roubada, usurpada. As favelas mobilizam bilhões de recursos por ano, participam diretamente da economia, na solução de crises”, atesta ele, que em artigo para o “Le Monde”, apontou as periferias como caminho para a solução da crise.
Não tem computador? A favela inventa a lan house e cria suas próprias ferramentas de comunicação. Aqui, aliás, está a contribuição mais preciosa, das muitas de Raull Santiago. Ele é uma força da natureza, dono de oratória poderosa, contagiante, a serviço da exaltação e defesa das comunidades populares.
Por isso, ele derruba alguns preceitos muito repetidos mas pouco praticados. “Sempre tive a certeza de que não existe a ideia da isenção, de que o jornalismo não tem lado. Ora, quem são as pessoas à frente das emissoras, dos programas, dos jornais impressos ou virtuais? Elas têm uma vida fora do trabalho. Se você vem do ensino religioso – seja ele qual for –, se não teve dificuldade para estudar, se passou pelo processo educacional sem ter que correr de tiroteio, de estudar sem luz ou com fome, sua realidade é impactada por isso”, sustenta. “Na comunicação que faço há muita parcialidade, com foco na favela, na periferia, na negritude, na garantia de direitos. Eu me tornei comunicador popular justamente para ter essa parcialidade narrativa”, ratifica.
Como se diz hoje em dia, fica o questionamento: assentado numa sociedade racista, desigual e machista, como o jornalismo conseguiria ser isento? “O discurso de imparcialidade, numa realidade como a do Brasil, não passa de forma nenhuma”, pondera o ativista. Historicamente, sempre que se ocupou da periferia, a mídia silenciou as vozes periféricas. Repetiu até tornar clássica a cena do repórter na entrada da favela, entrevistando um policial que dava a versão dele da ocorrência. “A gente não tinha voz, não havia como questionar esse processo”, critica o ativista.
Mudou – e Raull cresceu para além das fronteiras do Alemão. “Criamos nossas próprias ferramentas de comunicação”, relembra, referindo-se, em especial, ao Coletivo Papo Reto, canal criado em 2014 que, como decreta sua apresentação, “mostra a realidade da favela, tendo forte importância na ‘mídia de guerrilha’ em tempos de guerra e na provocação reflexiva do ‘até onde é verdade o que diz a grande mídia?’ Muito do que acontece no território passa pelas lentes do Coletivo, que busca fazer uma cobertura diferente da mídia corporativa, ‘do favelado para a própria favela’. Resumindo: Nós por Nós.”
O combate à brutalidade dos homens da lei fez do próprio Raull personagem em fevereiro de 2020. Ele denunciou em tempo real a abordagem violenta que sofreu, na Avenida Brasil, quando voltava para casa após reunião em outro conjunto de favelas, a Maré. Terminou preso injustamente, apenas por filmar a agressão.
Ter as próprias ferramentas de comunicação tornou-se arma poderosa na teimosa e burra guerra às drogas, que vitima basicamente moradores das favelas e periferias. “As elites observam as favelas pela lente da mira do fuzil de um policial”, constata, argumentando com a geografia – a guerra acontece na periferia; as drogas estão em todos os ambientes. “As maiores apreensões de armamentos foram em aeroportos, mas quem sofre a violência é o povo preto. A guerra às drogas é a principal ferramenta de manutenção do racismo, da desigualdade e do controle violento dos corpos pobres”.
Quem é do Complexo conhece a história de cor. O ajuntamento de 15 favelas com cerca de 65 mil habitantes, que se estende pela região da Leopoldina, na Zona Norte, amargou o último lugar (126º) no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano na cidade, aferido em 2000. Ficou famoso mundialmente uma década depois, com a ocupação que expulsou os traficantes – a fuga às carreiras, por uma estrada de chão cercada pela mata, virou imagem lendária – e instalou uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), outro projeto fracassado de segurança.
Raull oferece análise cirúrgica sobre a odisseia de incursões policiais, tiros, avanços, recuos e muitas, muitas vidas perdidas. Estudo do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), com dados de 2017, estima em R$ 1,2 bilhão o custo anual da sangria no Rio de Janeiro. (Em São Paulo, chega a R$ 4 bilhões.) “O investimento em educação, saúde e saneamento é micro; na segurança pública é milionário”, compara ele. “Mas é ferramenta política potente. A guerra às drogas dá muito voto”.
A oratória contundente sai quase cantada como num rap. Tem a ver com a origem de Raull, filho único (com irmã por parte de pai) de uma professora do ensino básico e um pedreiro que teve infância difícil, onde comer e vestir foram desafios permanentes. Para chegar à casa da família, era preciso pular o valão que passava em frente. Mas ele vivia solto pelos becos e vielas até, aos 14 anos, começar a saga de empreendedor pela própria favela, na feira da Rua Joaquim de Queiroz. No pé da escadaria que leva às partes mais altas, oferecia-se para carregar as compras dos mais velhos. “Fui apresentado à cartografia do Complexo, à geografia real, graças à história viva de nossa ancestralidade. Ainda jovem, criei conexão com os mais velhos e ganhei blindagem”, relata.
A vocação comunitária pavimentou a vida adulta de Raull Santiago (o “L” dobrado não está na certidão de nascimento; surgiu na busca por um nome para criar o email). Casado, quatro filhos, ele experimenta incremento em sua renda, ao profissionalizar o trabalho como empreendedor social. Só agora consegue bancar a reforma que acabará com as goteiras na casa da família, na comunidade Alvorada. É contratado da agência de publicidade Mynd; embaixador e consultor da Ambev, no projeto da água Ama, que entrega todo o lucro a iniciativas sociais; embaixador da grife de roupas Reserva; conselheiro do Instituto Nubank e fundador da Iniciativa Pipa, que busca democratizar o acesso ao investimento social privado no país.
Termina, assim, a angústia de viver mundos diferentes, separados pela abissal desigualdade brasileira. Ele reconhece ter se sabotado muitas vezes, por não decifrar quem era, ao circular entre a favela e os endereços envidraçados, de carpetes e ostentação, varandas e mordomias, dos endinheirados. “Eu me senti num não-lugar”, resume. “Não conseguia fazer coisas simples com a minha família, precisava pegar dinheiro emprestado, o que me fazia mal, porque minha cabeça estava sempre no Alemão, preocupado com almoço das crianças, com as goteiras. Acabava me sentindo um usurpador, e me questionava se aquilo faria diferença na vida da favela, das pessoas que amo”.
A solidão que também chegava nesses momentos terminou vencida – de novo – pelo conselho dos mais velhos. “Meu know-how de mundo me levou à outra rede. Mesmo morando no mesmo beco, não sou meu vizinho de parede – e também não sou aquela pessoa chique do endereço de luxo”, pondera. “Hoje, faço reuniões com gente que vive com 5 mil reais por ano, e também com empresários e banqueiros. Tudo para buscar soluções. Venho de escola de rua muito forte, e fiz acordo comigo mesmo de que nunca me deixaria iludir por uma realidade diferente da minha”, assegura ele, que viajou por 14 países em nome de sua causa.
Mas o centro do mundo seguirá sendo a favela – como na pandemia quando, ao entender que faltaria o poder público no socorro a seus vizinhos, Raull reabriu com Camila Moradia (do Mulheres em Ação) e Renê Silva (do Voz das Comunidades), dois outros importantes ativistas do complexo, o Gabinete de Crise do Alemão, criado à época da UPP. Uma profunda viagem de solidariedade.
Na primeira semana, eles desenvolveram intenso trabalho de comunicação, com as informações da OMS. Mas faltava, por exemplo, água, essencial para higiene das mãos, uma das chaves de proteção ao coronavírus. Eles iniciaram campanhas de incentivo à economia e compartilhamento dos poucos mananciais. No aperto de barracos, becos, vielas e ladeiras, era impossível praticar isolamento social e, com um mês de crise sanitária, chegou a fome. Em oito meses, 55 mil pessoas receberam cestas básicas da iniciativa, que arrecadou 15 milhões de reais em doações no primeiro ano da pandemia – com prestações de contas impecáveis.
“Na lama e na desigualdade desenvolvemos nosso corre”, decifra ele. “Quando a crise chegou, a gente sabia lidar, porque crise é nossa existência. Enquanto os governos patinavam, as favelas e periferias arregaçavam as mangas e tinham o passo a passo do que precisava ser feito. Precisou uma pandemia para se entender a capacidade de a gente se autogerir. Sofremos nossas perdas, mas fizemos o trabalho. Como se cada favela tivesse sido sua própria prefeitura”.
Na hora de inventariar o cotidiano tão complexo (com trocadilho), Raull Santiago aponta que houve evolução, especialmente na disputa de narrativas com o mundo lá fora. Mas faltam investimentos reais em educação, saúde e saneamento e mantém-se a estrutura do controle pela violência. “Parte da sociedade é contra a ideia dos Direitos Humanos, que afeta diretamente a favela”, critica citando o racismo climático e ambiental como outro fator de estresse. “Desde 2018, estamos num momento muito perigoso, envolto em incertezas”. Mas rapidamente, se apruma para a luta. “Precisamos inventar formas de sair dessa situação”.
No que depender de Raull Santiago, a batalha pode ser complexa, mas só vai acabar com a vitória assegurada.