Luisa Prochnik
Tornar-se pernalta, caminhar em cima de pernas de pau, faz de você um folião e uma foliã, mas também faz muito mais que isso. Tornar-se pernalta é sobre-ver, ser visto. Que mundo você enxerga e o que você quer mostrar para o mundo?
Sobre-ver o mundo, a partir de outra perspectiva, do alto. E sobre ser visto em destaque, acima. A arte da perna de pau se tornou muito presente no carnaval do Rio de Janeiro. Em muitos blocos, pernaltas encantam, dançam, marcham e distribuem sorrisos com glitter. Mas a perna de pau, apesar de ser associada à arte circense, e é de fato uma modalidade pertencente aos circos, acontece de forma muito mais ampla em várias culturas, de diversos países.
– A perna de pau é um brinquedo ancestral. Bruxas, magos, feiticeiras, curandeiras, agricultores e artistas. Aqui no ocidente, a gente conhece muito pelo viés artístico, por isso sempre associam ao circo. Mas a perna de pau está presente em rituais muito antigos e tem muitas potencialidades.
Esta fala da Raquel Potí, atriz, pernalta, educadora, produtora criativa e mãe, acontece em um ambiente mágico e colorido, dentro da sua própria casa. Nas paredes, fantasias diversas ocupam espaço e contam histórias de encantados, seres míticos da cultura popular que, em cima das pernas, lá no alto, são vistos e cultuados por todos. Os pernaltas atraem sorrisos e olhares. É sobre ser visto.
– E quando a gente é visto, o que a gente quer comunicar? Quando a gente tem a possibilidade de ter voz, de ser importante, de ser reconhecido por alguém, o que a gente quer fazer com isso?
Raquel Potí é uma das responsáveis por difundir o uso da perna de pau no Rio e, com brilho nos olhos, fala sobre a importância do carnaval como uma vitrine, quando pessoas conhecem e se aproximam de uma técnica milenar, ancestral. Mas, para ela, formada em Educação Física, que tem a técnica, mas sempre buscou a arte e a cultura para elaborar sua própria metodologia, vestir a perna de pau vai muito além da folia. É uma forma potente de autoconhecimento.
– Durante a oficina, a gente vai se investigando para saber o que tem dentro da gente que é especial, que é bonito e que fica soterrado por um monte de padrão, de comportamento, de abusos, de situações que vão distanciando a individualidade da pessoa dela mesma.
Em sua casa, acompanhada de um suco de maracujá com limão e mel e uma música inspiradora, a professora e produtora cultural revela que o processo de subir na perna é, antes de tudo, deixar cair as máscaras. Entender a si mesmo para, assim, entender quem se é quando se está acima, no alto, em destaque.
O ápice da ideia de se despir veio com um convite para alunos e ex-alunos irem com a professora até a praia naturista de Abricó. Caminhar com pernas de pau na areia e se deixar ser visto e ver o outro sem roupas. A prática atrai cada vez mais interessados que não querem, apenas, aprender a técnica de subir em uma estrutura de madeira, seja da altura que for. Mas, sim, ávidos por ter consciência sobre seu corpo e suas potencialidades.
Quando questionada sobre o motivo de vermos mais mulheres que homens em pernas de pau, Raquel Potí aprofunda ainda mais na proposta de se colocar em posição vulnerável. E não apenas pela altura e medo de queda.
– Estar sendo visto amedronta. E os homens escondem muitas emoções, sentimentos. E, ali, é um lugar de vulnerabilidade. Você se encontra com medos e situações que não quer entrar em contato. Vou ser visto. Mas o que vai ser visto? Eu quero ser visto?
E, além disso, no Rio de Janeiro, a perna de pau é protagonizada por mulheres na gestão. São mulheres que dão oficina, que ensinam. Não são homens. São mulheres que estão gerindo a história da perna de pau na cidade e isso faz com que esse ambiente seja muito acolhedor para mulheres.
Fátima Cajueiro foi aluna de Potí. Na primeira aula, a dificuldade de se manter marchando em cima da perna era enorme. Algumas quedas depois, a professora se aproximou e disse:
– Até quando você vai se abandonar?
A proposta de autorreflexão surtiu efeito imediato. Fátima precisava ter mais autoconfiança, mas, também, mudar a perspectiva do seu olhar. Afinal, perna de pau é sobre ser visto, mas também sobre ver a partir de outra perspectiva, segundo Fátima.
– Eu marchei e pensei, eu não vou mais me abandonar. Aí eu comecei a olhar para frente. Não olhava mais para o chão, olhava para a Baía (de Guanabara). A gente passa por processo de reflexão, de quanto a gente esquece da gente. Quando a gente se deixa caído no chão, fica se arrastando. A vida é um pouco assim se a gente não ficar atento.
Ser pernalta é para todos. E não apenas para os pássaros de pernas longa ou pessoas saradas. É para todas as idades, para todos os tipos de corpos. Cada aluno que se forma nas aulas da Potí se tona um passarinho.
– As pessoas chegam lá pequenas, encolhidas, com medo, com vários padrões, com vários receios, com vários limites, com julgamentos. E elas vão abrir as asas delas e voar. O que a gente vê nas oficinas são pessoas abrindo as asas.
Encantados são os que assistem, encantados são os seres míticos representados nas fantasias, encantados são todos que desafiam a gravidade para se colocarem distantes do chão, mas próximos de si mesmos.
– Depois que você é tocado pelo encanto, não tem volta. É um perigo. Porque nunca mais você vai conseguir não colocar sua energia de alguma forma fidedigna com sua energia vital, com sua vida, com sua história – diz, rindo, Raquel Potí, encantada ela mesma há anos pela potência da perna de pau.