SALVEM O PF!

Prato Feito de frango à milanesa do Bar Madrid, na Tijuca

Bruno Agostini

O PF clássico, servido no almoço de segunda a sexta nos botecos cariocas, consistia em um prato, geralmente fundo, que era forrado com uma montanha de arroz, uma concha ou duas de feijão preto, um macarrão passado em molho ralo de tomate e alguma carne ou pescado – quase sempre em preparações ensopadas e substanciosas, como rabada com batata e agrião, uma boa vaca atolada, combinação de costela com batatas, uma carne-seca com abóbora e mais uma infinidade de variações, como milanesa com salada de batatas, um untuoso pernil acebolado, ou um frango com quiabo. Era uma bomba de carboidrato, para dar sustância ao trabalhador.

O prato vinha montado da cozinha, e os itens principais, muitas vezes saíam das estufas, que elegantemente enfeitam os balcões das biroscas populares. Havia, neste contexto, os pratos do dia, que mudavam ao longo da semana. O pê-efe, uma grafia também utilizada, já vinha completo, e à parte poderia ter um pote com farinha, e até uma saladinha, para ser temperada à mesa, com azeite de lata e vinagre. Embora muito farta, era uma porção individual. Geralmente, havia também as chamadas refeições, que serviam duas pessoas, mas neste caso os itens vinham em panelas de barro, baixelas de alumínio, ou mesmo cumbucas, que geralmente chegavam transbordando.

Parmegiana de frango do Osbar: tudo separado

Mas o mundo mudou, e o PF parece estar em vias de extinção no Rio. Hoje, é raro de se encontrar. O que mais se vê são refeições, com os componentes servidos à parte – muitas vezes ainda chamados de pê-efe, ainda que não sejam mais. PF é abreviação de prato feito e, se vem separado, ora, não se trata da mesma coisa. Hoje, quando se diz PF, logo se pensa na Polícia Federal, que virou protagonista do noticiário político (o Extra fez uma capa recentemente, brincando com o assunto: “PF do Rio: o prato predileto de Bolsonaro).

– É muito difícil encontrar, está mesmo em extinção, e cada vez mais “gourmetizado”. Até detalhes como sal em sachê ao porta-pimenta tá complicado – diz o expert em bares, Marcos Bonder, mais conhecido como Bond Boteco (@bondboteco.

– Agora tem uma galera achando que PF é dividido em bandejinhas. Tem o comercial, e o prato feito, como o nome já diz: é prato feito. O cara põe a carne por fora, a salada por fora e diz que é PF. Tem um lugar ou outro que tem prato feito. No Centro, eu lembro de um. Na Tijuca, não se vê mais. Isso também deve ser para valorizar, é uma forma de cobrar mais caro – reclama o especialista, que recentemente experimentou, e aprovou, o PF do Tuia Café Cultural, que funciona no segundo andar da ocupação Manuel Congo, na rua Evaristo da Veiga, no caso, um bonito prato de frango com quiabo, polenta, arroz e feijão – em cartaz às quintas, por R$ 28.

O Baixela, um boteco novo, inaugurado no final de 2022, na rua Rainha Elisabeth, em Copacabana, mantém essa tradição, servindo legítimos pratos feitos, durante a semana. É o prato da semana. No repertório de receitas, há os clássicos do gênero: vaca atolada, dobradinha com feijão branco, frango com quiabo, língua ensopada com batatas, pernil à mineira, com tutu e couve, paio com lentilha, milanesa de porco a cavalo, com ovo frito por cima, e por aí vai – já teve até arroz com mexilhões, estrogonofe de frango e PF de coração de galinha com arroz, farofa e molho à campanha.

Há quem discorde da tese, com muita autoridade para falar do assunto: Eduardo Freitas, mais conhecido como Preah, dono de um outro perfil no Instagram voltado aos botecos (@preah_), que esquadrinhou o bairro de Copacabana, visitando 75 botequins do bairro.

– A minha percepção é um pouco distinta. Nos botequins mesmo, que atendem às camadas populares, meu objeto de registros, eles ainda acontecem diariamente e acredito que seja o que faz os mesmos ainda rodarem financeiramente. O padrão, melhor preço, rapidez na hora de comer, boa quantidade de comida, e variedade de proteínas acredito que sejam variáveis importantes nessas escolhas. Daquela lista que fiz dos 75 botequins de Copacabana, arriscaria sem medo que uns 55, 60 servem PF diariamente. São lugares como Suzana, Licks, Paraíba, Marola, Atalaia, Garibaldi e Trindade. Aliás, vou agora na Suzana, e te mando uma foto do PF – comenta Preah, que enviou a imagem, de um prato fundo Duralex transparente, com uma montanha de comida, formada por macarrão, arroz e feijão, além de carne assada, com farinha à parte, na farinheira de plástico.

– Gosto de comer lá às quartas: tem língua com purê, uma delícia – completa, mandando a lousa com os pratos do dia, outra tradição: neste dia, tinha, entre outros, costela com batatas, costelinha de porco, bife à parmegiana e linguiça acebolada, com preços entre R$ 18 e R$ 35.

Cavucando a memória, o último PF que lembro de ter comido no Rio foi na Casa Porto, onde temos o casario do Largo da Prainha como moldura, melhorando a experiência ainda mais: era um bife à milanesa, com arroz, feijão e farofa, e saladinha à parte. Muito digno.

Dono do Bar Madrid e subprefeito da Grande Tijuca, Felipe Quintans, é outro entendido do assunto, e frequentador de botecos à moda antiga, desses com tamboretes no balcão, os populares “bunda de fora”, estufas com os pratos e petiscos do dia. com elementos que se tornam quase cenográficos – conforme a categoria vai se tornando cada vez mais rara, e esses ambientes vão se deteriorando.

– No Madrid, eu sirvo nos dias de semana, e estão sempre variando – diz o empresário, que inclusive já foi premiado, não só como o melhor boteco do Rio e como Bom e Barato (pela Veja), mas também como o melhor Prato Feito (pela Época) do Rio.

Tem gente que chama PF de executivo, mas também há quem faça o oposto. Caso do Aurora, um dos bares mais antigos da cidade, inaugurado em 1898, no Humaitá. Eles lançaram em dezembro seu menu executivo, de verão, que é servido empratado. Ou seja, um legítimo PF, que no caso é chamado de “O Prato Nosso de Cada Dia”. Nele, encontramos receitas bem cariocas, como picadinho, escalope à piemontese e contrafilé à Oswaldo Aranha, além de lombinho à milanesa com arroz de limão e filé de peixe ao molho de camarão, num total de nove opções. A ideia da casa centenária é mudar quatro vezes ao ano, ao sabor das estações.

O Bar Urca, por sua vez, criou as “Canoas”, que são pratos individuais, servidos apenas na parte de baixo, para serem apreciadas na famosa mureta. Eles são montados em pratos de papelão descartáveis, e as opções podem ser bobó de camarão, arroz de camarão e estrogonofe de carne, por exemplo. O bom e velho PF resiste, mesmo que com nomes e serviços diferentes.

Curry tailandês do Cam’on

RIO PERMITE RODAR O MUNDO COMENDO PRATOS FEITOS

Esta reportagem não é exatamente uma queixa, mas um lamento, por observar uma tradição que aos poucos vai desaparecendo. Antigamente, todo o boteco tinha PF nos dias da semana, e hoje quase sempre é o modelo refeição. Caso do excelente Bar Sambódromo, vizinho à Passarela do Samba, onde sempre sou feliz: na última visita, tracei uma deliciosa copa-lombo à milanesa, servida em baixela de alumínio, com purê bem cremoso de batata, feijão e farofa, esses, à parte. Tecnicamente falando, o bom disso é que precisamos fazer malabarismos para não derramar a comida do PF, e vamos montando o prato ao nosso gosto.

Outro exemplo popular dessa categoria é o Osbar, no Centro, cujo cardápio é uma lousa, onde estão escritos a giz os pratos do dia, entre fixos e variáveis. Ali, encontramos receitas como bobó de camarão, frango com quiabo, bife ancho grelhado e mignon à milanesa – que foram meus quatro últimos pedidos na casa. Mas também pode ter fígado acebolado, rabada com agrião, paleta de cordeiro. Vem tudo separado, com fartura: tem salada, fritas, arroz, farofa e feijão. Curiosidade é o fato que as refeições, mesmo suficientes, em geral, para a fome de dois, não podem ser divididos.

Se nos bares o PF vem sendo trocado pelas refeições, ao mesmo tempo encontramos, hoje, uma grande variedade de menus executivos, e podemos dar uma volta ao mundo da gastronomia através deles. Muitas vezes, podem incluir entrada e sobremesa.

É possível, por exemplo, viajar pelos sabores da Tailândia, no Cam’On Thai Food, com unidades na Barra e em Botafogo. Podemos, no menu executivo, escolher entre o curry amarelo, o Khao Pad (arroz salteado com ovo), o Pad King (vegetais salteados na wok) e o Pad Thai (macarrão de arroz com molho picante de tamarindo. Todos, podem ser finalizados com frango ou porco, ou em versão vegana.

Obentô do Mitsubá: a marmita japonesa

O Japão tem o seu PF, que traduzimos por aqui como marmita: é o bentô, que é sempre formado por produtos e preparos variados: são porções elaboradas, coloridas, com equilíbrio de elementos e esteticamente bem bonitas.

– O nosso bentô muda todo dia, de acordo com os produtos que temos. O que é fixo nele é sashimi, frango à milanesa e um peixe grelhado. Tem dia que tem lula. Sempre tem leguminosas. A tradução literal é lancheira de almoço, mas aqui no Brasil, isso é marmita. Para escrever corretamente e de forma polida, é “obentou”, bentô é um termo coloquial usado no Brasil, até onde sei – diz o sócio e fundador do restaurante, no Rio Design Leblon, Homero Cassiano.

Outra escala possível é no Oriente Médio, nas mesas do Amir, em Copacabana. Seu menu executivo tem legítimos PFs libaneses. A pedidos, o famoso arroz com cordeiro, em lascas, finalizado com cebola frita, que antes só era servido em porções para duas ou três pessoas, entrou este mês no cardápio de pratos individuais, servido de segunda a sexta, das 12h às 16h. Na casa da família Boushi, há diversas opções de executivo, a partir de R$28, caso do quibe de bandeja vegetariano, com dois acompanhamentos, como arroz marroquino com amêndoas e homus.

Nossa viagem gastronômica também pode passar por casas europeias, como o Gero, que serve o menu Mezzogiorno, com entrada, principal e sobremesa. Ou o Venga, que traz uma proposta bem original em seu cardápio de almoço, de segunda a sexta, chamado “Menu Conexão Brasil x Espanha”, onde sabores dos dois países se misturam. Entrada, principal e sobremesa custam R$ 68. No momento da redação deste texto, os pratos eram bife à milanesa com salada russa de palmito e brochete de atum e pera com salada verde.

Recém-inaugurado no Centro, o Otto Grill tem como proposta servir as receitas alemãs, que são clássicos da casa com matriz na Tijuca, mas também carnes grelhadas. Entre as especialidades, o kassler com batata e chucrute, joelho de porco e as salsichas e linguiças, de fabricação própria.

Leitão do Gajos d’Ouro: 8 porções, às sextas

No restaurante portugês Gajos d’Ouro os pratos são fartos, próprios para serem divididos, como é tradição no país. Mas às sextas (leitão à pururuca com feijão tropeiro), sábados (feijoada) e domingos (cozido) são servidas porções individuais. O porquinho é dos mais concorridos, afinal, eles só assam um a cada sexta. Suficiente para apenas oito pedidos, e só. Muitas vezes acaba cedo, convém reservar.

Continuamos nossa jornada pela América do Norte, através da Low Fire Smokehouse, no Centro, onde encontramos o típico prato feito americano, servido na bandeja, como é tradição por lá. O combo degustação (R$ 58) tem linguiça, brisket, coxa de frango e pulled pork, além de mac ‘n’ cheese ou fritas, e uma salada. É um resumo do menu, típico de um Texas BBQ, com carnes defumadas, assadas lentamente no pit smoker.

Ou seja: não dá para reclamar. Mas podemos pedir: salvem o PF da extinção!