Jan Theophilo
Martinho da Vila é sem sombra de dúvida um dos maiores baluartes do carnaval carioca. Portanto, nada mais justo no ano em que completa 86 anos de vida, sua Vila Isabel do coração levar para o desfile de 2024 um de seus grandes sambas-enredo, considerado um clássicos do belo repertório da agremiação: “Gbalá – Viagem ao Templo da Criação”, apresentado ao grande público pela primeira vez em 1993. Ao recontar essa mágica narrativa de matriz yorubá mais de 30 anos depois, a escola propõe uma reflexão que não poderia ser mais atual: pensar os males que os homens fazem não necessariamente apenas contra o planeta Terra, mas a si mesmos, e a possibilidade de nos salvarmos pela candura das crianças. A escola disputa o Grupo Especial carioca, quando será a terceira a desfilar na segunda-feira, dia 12 de fevereiro.
Abrindo as cortinas do passado, em 1993, a Vila Isabel vivia sérios problemas de finanças, e sequer tinha condições para participar do Carnaval de 1993. “Então tive que pedir ao auxílio ao patrono da escola. E foi ele quem indicou o ator e carnavalesco Oswaldo Jardim (morto em 2003) que já veio com esse enredo na cabeça”, conta Olício Alves dos Santos, presidente da Vila naquele ano. Assistente de Oswaldo, Cristiano Moratto, lembra do entusiasmo que sentiu ao ler pela primeira vez a sinopse: “Eu falei, Oswaldo, que loucura, que lindo! E a partir daí aconteceu um casamento muito bem-feito, muito bem bolado. Porque logo que saiu o enredo, o Martinho veio com aquele samba maravilhoso, que já era uma obra pronta”.
“Gbalá – Viagem ao Templo da Criação”, garantiu a nota máxima no quesito samba-enredo entre todos os jurados. “Cada samba tem uma diferença de um para o outro. Mas o Gbalá foi maravilhoso, muito cadenciado, né?”, comenta Carlinhos Brilhante, Mestre-Sala da Vila em 1993. “Ele trazia uma emoção muito forte. Lembro que eu sambava muito e minha fantasia vinha com muitas pérolas. Me empolguei, comecei a fazer um movimento com as mãos e saí arrebentando pérolas por toda a avenida”, lembra a rainha de bateria, Ana Beatriz Genúncio.
O desfile contou também com estreias de peso na avenida. “Foi espetacular, mas o que me marcou mesmo foi que pela primeira vez a Mar’tnália, o Pinduca e a Analimar, todos filhos do Martinho, vieram no carro de som cantando o samba comigo e com ele”, conta Gera, intérprete da Vila Isabel. A participação contou com alguns improvisos, já que na hora de entrar na avenida a produção só conseguiu quatro microfones para os cinco cantores. “A solução foi eu e minha irmã dividirmos um microfone enquanto o Pinduca passou quase todo o desfile praticamente pendurado no Gera”, conta Mar’tnália.
Mas nem tudo foram flores durante a apresentação da escola. Choveu canivetes durante o desfile, e a Vila perdeu pontos importantes nos seguintes quesitos: bateria, evolução, conjunto, alegorias, fantasias, comissão de frente e casal de Mestre Sala e Porta Bandeira. No fim da apuração, o resultado foi um modesto 8º lugar, o que causou muita controvérsia em uma época ainda distante das tretas nas redes sociais. Renomados analistas e críticos do Carnaval carioca consideraram que o desfile merecia um resultado mais positivo. “Mas esse ano acho que pode pintar um título aí”, aposta Gera: “Porque hoje a Vila vive uma situação diferente. Está mais forte. E isso vai permitir ao tremendo carnavalesco que tem, criar coisas loucas neste desfile”.
E o tremendo carnavalesco quer fazer bonito e sugere uma apresentação que vai tocar em feridas causadas pelo aquecimento global: “Esse enredo ele é todo pautado no sentido de que o mundo adoeceu e por ele estar doente, Oxalá, o criador de toda a beleza que temos também adoeceu, mas será um enredo que trará uma mensagem de esperança”, diz Paulo Barros. Segundo ele “através dessa viagem nós vamos mostrar as crianças como o mundo foi concebido e como ele foi criado. E a partir daí essas crianças serão guiadas a um processo de conhecimento de valores que estão voltados em respeito, em sabedoria, em amor, em confiança, em justiça. Assim, no término dessa viagem essas crianças estarão preparadas e serão rebatizadas para voltar ao nosso convívio e espalhar esses ensinamentos. E esses ensinamentos são tudo o que nós precisamos para resgatar a saúde e integridade do nosso planeta”.
NO SAMBA, COMO NA VIDA, TUDO SE RECICLA
Desde 2004, oito escolas reeditaram sambas enredo, mas a mais bem colocada tirou um modesto quarto lugar e duas delas foram rebaixadas
Polêmica à vista. Prática até corriqueira nos desfiles dos Grupos de Acesso, a reedição de sambas-enredo não é assim tão utilizada pelas escolas do Grupo Especial. O tema é controverso. Na era do Sambódromo, a primeira vez que a prática foi permitida pela LIESA foi no carnaval de 2004. Para comemorar os vinte anos da passarela, a ideia era que todas as agremiações apresentassem com grandes sucessos do passado. Mas apenas quatro escolas aderiram à proposta.
A Unidos do Viradouro conseguiu a melhor classificação: um quarto lugar com o samba da Unidos de São Carlos, de 1975, sobre a festa do Círio de Nazaré. Sétima colocada, a Portela reviveu seu próprio desfile de 1970, com o antológico “Lendas e Mistérios da Amazônia”. O Império Serrano ficou na nona colocação emocionando mais uma vez com “Aquarela Brasileira”, de 1964. Já a Tradição, que optou pela releitura de “Contos de Areia”, da Portela (1984), ficou na décima segunda posição.
Nos anos seguintes teríamos “Festa Profana” da União da Ilha (1989), sendo reeditada pela Porto da Pedra em 2005; “O Ti-ti-ti do Sapoti”, apresentado pela Estácio de Sá (1987) e reeditado pela própria escola no carnaval de 2007; O clássico samba-enredo de 1976, “Lenda das Sereias” que o Império Serrano relembrou no carnaval de 2009 e “O Samba Sambou”, obra crítica da São Clemente em 1990, que a própria relançou em 2019. Mas no geral, o quarto lugar da Unidos do Viradouro, em 2004, ainda permanece como a melhor classificação de uma escola que optou por reeditar um samba-enredo. Das oito reedições apresentadas pelo Grupo Especial no sambódromo do Rio, duas sofreram rebaixamento.
De acordo com alguns analistas, as reedições prejudicam o processo de renovação dos compositores das escolas de samba. Outros, porém, acreditam que o zum-zum-zum de um samba já conhecido e aprovado pelo público pode ser uma opção para divulgar e atrair recursos para um projeto de carnaval. É uma discussão que rende boas rodadas de cerveja em uma bela feijoada de quadra. Como exemplo para apimentar o debate, apesar de ter nomes como Martinho da Vila e André Diniz em sua galeria de compositores, a Unidos de Vila Isabel não garante as notas máximas em samba-enredo desde o carnaval de 2017.
O PRÓPRIO MARTINHO CONTA A HISTÓRIA
A história de Gbalá narrada por Martinho da Vila para uma entrevista que gerou um micro documentário que a Vila Isabel disponibilizou em suas redes sociais e que você pode conferir abaixo:
“Eu vou contar para vocês a história do Planeta Terra. Olorum, o criador do Universo, solicitou a Oxalá para que ele criasse a Terra, os homens, e as demais espécies para viver em perfeita harmonia. Ficou com os homens a responsabilidade de cuidar deste mundo e zelar pela criação. Tudo corria bem, até que Oxalá ficou fraco e doente. Depois de muita reflexão, Olorum entendeu que a doença de Oxalá era causada pelo mal praticado pelos homens contra a criação. Ao destruir a criação, destrói-se também o próprio criador. Porém, restava uma última esperança de reconstruir o planeta e curar Oxalá: as crianças da Terra”
Em contato com a Mãe Natureza, as crianças aprenderam sobre as matas, os rios e suas cachoeiras, fonte de reciclagem da vida. Depois da tempestade, a bonança sempre surge na forma de arco-íris para colorir nossa existência. Os meninos e meninas também foram banhados por um imenso mar, lavando seus espíritos com esperança e fé. Ao fim da viagem, as crianças foram batizadas com as sete águas. Ao toque dos ogãs, houve a comunhão do criador com a criação: Então minhas crianças, vocês são a esperança de Oxalá!”.