PRÉDIO DA UFRJ COMEÇA A SER REFORMADO PELA PREFEITURA

A fachada do edifício histórico

Jan Theophilo

Certa vez, em meados dos anos 1980, o Jornal do Brasil publicou uma reportagem bem-humorada “denunciando” os mais fétidos banheiros do Rio de Janeiro. Um boteco com sinuca na Praça Tiradentes, que já não existe mais, ficou na primeira posição. Mas quem fez mais barulho foi a turma que frequentava o quinto colocado do ranking: o banheiro masculino dos fundos do terceiro andar do prédio do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS-UFRJ). Os estudantes entraram na brincadeira exigiram recontagem. Mas o JB tinha mais com o que se preocupar e tocou a vida adiante. Em protesto, os alunos promoveram um show de rock no banheiro para horror do seríssimo corpo docente, que reunia uma coleção de doutores e pós-doutores com títulos nas mais veneradas universidades do mundo. E foi justamente essa mistura de excelência acadêmica, temperada com uma boa dose de porra-louquice estudantil que deu fama ao grandioso edifício localizado no Largo de São Francisco, que ainda por cima é um dos marcos arquitetônicos do Rio.

“Você chegava um dia para assistir a uma aula e estava escrito na parede: Deus está morto, uma frase conhecida do Nietzsche. Dois dias depois, na aula seguinte, duas ou três pessoas haviam pichado réplicas e mais réplicas abaixo da primeira frase, que as vezes preenchiam a parede e, se a gente juntasse no fim do ano, dava para fazer um artigo, brinca a professora de filosofia Luana Tavares, ex-aluna IFCS. “Sempre existiu um clima liberalidade muito maior do que em qualquer outro lugar da UFRJ. Às vezes, você estava assistindo aula num dos auditórios, quando uma janela se abria, e uma meia dúzia de doidos que estavam fumando maconha ou pegando sol no terraço entravam, davam bom dia ao professor e iam embora. E de vez em quando um ou outro até sentava tranquilamente como se nada anormal estivesse acontecendo”, lembra o historiador Cesar Murtinho.

A história do prédio remonta ao século XVIII, quando o Largo de São Francisco ficava fora dos muros que protegiam a cidade.  Alguns dizem que suas fundações foram pensadas para ser a nova Sé. Outros alegam, que pela arquitetura original do prédio, ele teria sido construído como futura sede da Escola Naval. No fim das contas, com a evolução urbana definida pela rua do Ouvidor, ele acabou se tornando sede da Academia Militar, depois da Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho, até que, em 1874, virou sede da Escola Politécnica, mais conhecida como a “Poli”, o berço da engenharia brasileira.

Por seus bancos passaram nomes de relevância nacional, como Júlio César de Melo e Sousa, mais conhecido pelo pseudônimo Malba Tahan (autor do livro “O Homem que Calculava”), Carmen Portinho, Lima Barreto, André Rebouças, Paulo de Frontin, Amaral Peixoto, Hélio de Almeida e Pereira Passos, entre outros.

Somente em 1965 a Poli mudou de endereço e foi parar no até hoje inacabado campus do Fundão. “Era um projeto embutido na Reforma Universitária de 1965 que, na verdade representava um movimento orquestrado pela Ditadura Militar para tirar a Poli do Centro, assim como a Faculdade de Medicina, que ficava na Urca –   duas escolas de forte tradição na política estudantil – para a lonjura do Fundão. As outras só não foram porque as obras nunca terminaram”, conta o professor Dilson Campos.

E com a tal reforma de 1965 quem ocupou o prédio foram os restos mortais da antiga e tradicional Faculdade Nacional de Filosofia, criada por Getúlio Vargas em 1939, que, sem boa parte dos seus cursos (como Letras ou Geografia) passou finalmente a chamar-se Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Uma curiosidade, durante toda a Ditadura Militar, o IFCS foi dirigido pelo historiador Eremildo Luiz Viana, um cagoete que não passou à História com boa fama. “Ele era chamado pelo Sérgio Porto em suas crônicas de Professor Dedo Duro, e os mais novos devem reconhecê-lo pelas colunas do Elio Gaspari: ele é o famoso personagem Eremildo, o Idiota”, conta o professor Murtinho.

O IFCS comeu o pão que o diabo amassou até o fim da Ditadura – que não era lá muito solícita com reivindicações de estudantes cabeludos que liam Marx ou Kropotkin e fumavam cigarros de aromas estranhos. Perdeu seu bandejão e viu um andar inteiro do prédio histórico ser demolido para a construção de uma biblioteca que nem quando ficou pronta, quase 30 anos depois, foi uma boa notícia. “É que muitos dos livros das antigas bibliotecas das faculdades foram apreendidos pelos militares e guardados em más condições. Quando construíram finalmente a biblioteca, descobriram que eles haviam adquirido um fungo, dizem que o mesmo que matou o Sérgio Motta, ex-ministro do FHC”, conta o professor Campos.  Só depois de saneada, a biblioteca foi aberta.

Os anos 1990 marcaram também o começo do fim do bundalelê com a eleição para diretora do IFCS da antropóloga Yvonne Maggie. Ela aumentou a segurança, pintou o que pôde das paredes, pôs grades nas janelas, acabando com o vai e vém das esquadrilhas da fumaça e deu fim também a fumódromos que eram conhecidos por meia cidade, como a Bat-Caverna, que funcionava num vão abaixo de um auditório, e a Oficina Filosófica, uma ocupação de doidões em pleno corredor das salas dos professores de pós-doutorado. Mas foi pouco. Em 2023, novamente quase 30 anos passados, os estudantes fizeram greve reivindicando reformas estruturais no IFCS, depois que o vazamento de uma das caixas de gordura provocou mau cheiro e o alagamento de alguns andares no edifício – inclusive o histórico banheiro do terceiro andar.

Até que finalmente uma boa nova de fato aconteceu. Em maio, sensibilizado por um pedido da ex-secretária Municipal de Ciência e Tecnologia, Tatiana Roque, que também é professora de Matemática da UFRJ, o prefeito Eduardo Paes cedeu todo o material hidráulico para manutenção do prédio. “A Tatiana, se deixar, é o tempo todo pedindo coisa pra UFRJ”, brinca Eduardo Paes. Na época, a Prefeitura ofereceu mais R$ 2 milhões para a reforma da fachada, mas o IPHAN alegou falhas técnicas. O projeto foi refeito e em maio o alcaide anunciou não dois, mas R$ 10 milhões para as reformas.  “Esta parte da cidade estava abandonada havia muito tempo. Nós vamos recuperar agora toda a parte elétrica e reformar a fachada para dar condições de uso a este edifício que é um patrimônio da cidade”, disse Eduardo Paes. A comunidade acadêmica agradece.