PERFIL: ESTÊVÃO CIAVATTA E AS REGRAS DA VIDA

O diretor durante filmagens na Amazônia

Aydano André Motta

Entre as incontáveis receitas do bem-viver, a de Estêvão Ciavatta ensina a não deixar frouxas as rédeas do cotidiano. Assim, ele dá conta das múltiplas missões que se impõe: de não engordar a batalhar pela floresta; de ser pai a se manter conectado com as agendas mais essenciais; de acordar cantando a materializar ambiciosos projetos culturais; de professar a gentileza como filosofia a se aprofundar na religiosidade.

Cabe muito mais na vida do cineasta carioca, que bota de pé iniciativas como sua produtora, a Pindorama, primeira do país a ostentar o selo Carbono Zero. Além disso, divide-se entre a crescente interação com povos amazônicos e a participação em criações a um Brasil de distância da floresta – a mais recente, a coautoria do samba-enredo da Unidos da Tijuca para o Carnaval de 2025.

Estêvão revisita a própria trajetória, diante do mar do Leblon emoldurado pelo cinza de uma terça-feira nublada de primavera, no apartamento onde mora com a mulher, Regina Casé, e o filho Roque, 11 anos. O relato de seus 56 anos de vida conjuga serenidade e determinação (entre pitadas de ótimo humor), enquanto passeia por vários gêneros cinematográficos. Tem comédia, musical, romance, aventura e drama em intensidade própria dos mais premiados roteiristas.

Filho de pai maranhense e mãe descendente de italianos que se tornaram professores universitários, teve infância ótima “de pipa, bicicleta e skate”, na Ilha do Governador e, aos 14 anos, descobriu a primeira vocação, quando estudava no Colégio São Vicente de Paulo. Tornou-se presidente do grêmio ecológico e encantou-se pelo montanhismo. “Escalei todas as montanhas do Rio”, recorda.

O interesse ambiental levou a passagem de ano e meio pelo curso de Engenharia Florestal na Universidade de Viçosa (MG), mas ainda não era isso. Tímido, Estêvão procurava formas de se expressar – e encontrou a fotografia. Daí, pulou para o curso de Cinema na UFF. “Desabrochei”, ele resume. “Conheci Rolland Barthes, os filmes do (italiano Pier Paolo) Pasolini, a obra de Nelson Pereira dos Santos”, lista, definindo-se, como cineasta, “muito mais Nelson do que Glauber (Rocha)”.

A chegada ao mercado audiovisual foi pelo “chão da fábrica”, como assistente e videoassist, até se tornar câmera e, enfim, chegar à direção. Com quatro anos de formado, em 1996, chegou à Globo para trabalhar no “Brasil Legal”, programa protagonizado por Regina Casé. O encontro virou amor e parceria profissional de duas pessoas “antiestablishment”, como define Estêvão, 14 anos mais novo do que a mulher. 

A diferença de idade sequer importa, diante da contradição com a lógica estrutural da sociedade brasileira e seus homens provedores, que não aceitam abdicar do estereótipo de ser o centro das famílias. “Perdi isso quando me joguei na vida com a Regina, virei marido e tudo certo”, resume, acrescentando que a solitária preocupação foi se descolar profissionalmente de um ícone da televisão e do cinema. “Encarei o desafio da separação profissional sem afetar o casamento”.

Ele estava nessa missão quando o filme da vida deu a guinada – radical – para o drama. Na segunda-feira 10 de novembro de 2008, Estêvão passeava pelo condomínio onde a família tem casa, em Mangaratiba. Síndico do lugar, montava o cavalo Popó, animal dócil que, repentinamente, deu um par de coices; o cineasta voou para frente, por cima do animal e bateu com violência a cabeça no chão. “Não consegui me mexer, nem sentia meu corpo”, recorda.

Ele se lembrou da orientação-padrão de bombeiros e paramédicos, de não mover pessoas acidentadas e ficou lá por 40 minutos. Um vizinho ligou para Regina e ele, ainda com o rosto virado para o chão, conseguiu avisar do ocorrido. A ambulância o levou direto à Clínica São Vicente, na Gávea, onde exame detectou lesões graves na vértebras C3 e C4 da coluna cervical – semelhantes às sofridas pelo ator americano Christopher Reeve (1952-2004), o Superman do cinema. O neurocirurgião Paulo Niemeyer foi definitivo com Regina. “Estêvão está tetraplégico”.

A atriz recusou-se a aceitar o diagnóstico. Chegou a brigar com o médico (fizeram as pazes anos depois), sinalizando o pensamento da família em relação à trapaça da sorte. “Não vou deixar meu espírito ficar triste”, decretou Estêvão, lembrando-se de consulta-chave com seu então terapeuta, Marco Antônio Figueiredo. “Por que eu?”, perguntou. “Por que não você?”, devolveu o psicólogo.

“As rédeas estavam frouxas”, atesta o cineasta, numa metáfora totalmente baseada em fatos reais. Ele ficou dois anos no Hospital Sarah, na Barra, e depois acostumou-se a cinco horas diárias de fisioterapia e massagens. Hoje, tem autonomia: dirige, escreve, viaja e caminha quase normalmente, a ponto de realizar sonho que parecia impossível: bater bola com Roque. “Não pode ter preguiça”, ensina ele, que se recusa a ficar sedentário. “Não posso engordar”.

Com a recuperação, desenvolveu ojeriza à piedade – “Só quando vem uma moça bonita”, brinca. Provou, ao mundo e a ele mesmo, a própria independência em “Preamar”, série de 13 episódios produzida pela Pindorama e exibida no streaming HBO (atual Max). Três anos depois do acidente, dirigiu as filmagens, que tiveram como principal cenário a areia de Ipanema – e Estêvão dava o jeito dele para caminhar no piso instável e cumprir as longas jornadas no set. Para sustentar tamanha determinação, há que se ter fé. E Estêvão buscou sua religiosidade, numa mistura bem brasileira. 

Devoto de Jesus e de São Pedro, aproximou-se do candomblé e descobriu-se filho de Logun-Edé, o orixá filho de Oxóssi e Oxum, que, por isso, se conecta às matas (pelo pai) e às águas doces (pela mãe). Para completar, a entidade tem como um dos símbolos o cavalo-marinho. E ainda acham que a vida não é filme.

Pelo orixá, Estêvão deu vazão a outro talento, o de compositor. Ele integra a parceria autora do samba-enredo da Unidos da Tijuca para o Carnaval de 2025, “Logun-Edé: Santo menino que velho respeita”. Assina a obra com Fred Camacho, Diego Nicolau, Feyjão, Miguel PG e Anitta – sim, a própria estrela internacional, também filha da entidade-enredo. “Fizemos o samba aqui nessa mesa”, revela ele, referindo-se ao espaço onde ocorreu a entrevista para Rio Já. (A cantora participou por chamada de vídeo.)

O misticismo que une matas e águas doces decifra outra conexão de Estêvão: a floresta. Ao menos duas vezes por ano ele viaja à Amazônia e mergulha naquele universo único. “Os povos indígenas são o único caminho fora do capitalismo”, vaticina o cineasta, acrescentando ter descoberto, via teste de DNA, possuir 20% de sangue indígena e mesoamericano, região que começa no Sul do México e engloba Guatemala, El Salvador, Belize, Nicarágua, Honduras e Costa Rica.

Em 2014, Estêvão assinou a série “Amazônia Sociedade Anônima”, exibida no “Fantástico”, com o objetivo de inserir a floresta nas prioridades da sociedade – mas a Lava-Jato ensandeceu as pessoas, engolindo os outros assuntos. Em 2019, produziu filme homônimo ao seriado, para denunciar a grilagem de terras, “a base de todos os problemas na Amazônia”. Por causa dele, o cineasta evita cidades como Novo Progresso, frente de desmatamento no Norte do país.

Quando vai à floresta, costuma ficar com os Munduruku, mas conhece toda a imensidão verde que tanto angustia o mundo da crise climática. Ano que vem, vai lançar “Mundurukuyü – a floresta das mulheres-peixe”, coprodução da Pindorama filmada ano passado, em parceria com cineastas da etnia.

 Estêvão assina o roteiro, enquanto Beka Munduruku, Rilcélia e Aldira Akay ficam com a direção da obra, que se debruça sobre a luta da etnia para defender seu território diante das pressões de grandes projetos de infraestrutura e das invasões de atividades ilegais.

Recentemente, ele passou pela experiência da ayahuasca, a bebida associada a rituais de diferentes grupos sociais e religiões, hoje integrada à medicina tradicional amazônica, mas ainda cercada de preconceito. “É uma droga de pertencimento”, explica Estêvão. “O consumo acontece numa cerimônia com dança, todas as pessoas juntas, que se conectam em experiência comunitária”. 

Faz parte da luta pelo planeta que, na visão do cineasta, precisar retirar, com urgência dramática, carbono da atmosfera. Ele se incomoda diante da constatação de que os humanos vivemos na tecnobiosfera. “Estamos cercados por mais matéria industrial do que viva. Uma contradição inerente à nossa existência”, argumenta.

E no movimentado filme da vida de Estêvão Ciavatta, vem aí o documentário sobre o acidente que redesenhou tudo. “Será sobre a recuperação, dentro da premissa de que o sofrimento não pode atrapalhar a felicidade”, antecipa sobre a produção ainda sem nome, mas com filosofia sedimentada. “Precisamos exercitar a empatia, a fraternidade, a gentileza”, prega.

Sempre com sambas, sorrisos, arte, engajamento e leveza. Além, claro, da rédea firme.