Todo dia eles fazem tudo sempre igual. Acordam as 4h da manhã e descem das comunidades do Pavão-Pavãozinho, Cantagalo, Vidigal ou Rocinha, todas na Zona Sul carioca, e tomam o rumo do Posto 6 em Copacabana. Não passam de 40, quase todos homens, que todo santo dia, faça chuva ou faça sol, irrompem uma hora mar adentro para estender suas redes. É só o começo de mais um dia comum na Colônia de Pescadores Z 13, que em 29 de junho (Dia de São Pedro) comemora seus primeiros 100 anos de existência. É a mais antiga colônia de pescadores artesanais da praia brasileira mais conhecida em todo o mundo.
Pouco antes das 5h, um a um, os barcos são empurrados pelos homens com muito esforço e o auxílio de toras de madeira, chamadas estivas, colocadas à frente das embarcações. Pouco antes da arrebentação, um dos pescadores salta a bordo para ligar o motor a diesel, no centro do barco. Com um estrondo, e uma fumaceira danada, os cilindros começam a funcionar e os pescadores lançam-se mar a dentro. Mas nem sempre o trabalho foi feito assim.
“Até o fim dos anos 1980 os peixes vinham desovar perto da arrebentação. Então a gente fazia o arrastão a partir da areia. Com o tempo, e a poluição, a quantidade diminuiu muito e começamos a ter de entrar no mar”, conta Moisés da Costa, 64 anos, um dos decanos da colônia, onde trabalha há 33 anos. “Naquela época, a colônia e até a bancada de peixes eram de madeira estropiada. Até que em 1982 veio a Prefeitura e construiu tudo em alvenaria e hoje é esse luxo como você pode ver aí”, brinca.
No início da década de 1990, com o fim do arrastão nas areias, começou a pescaria artesanal propriamente dita na parte funda do mar. No começo os pescadores usavam canoas de madeira, fabricadas com troncos surrupiados do Jardim Botânico. “A gente precisava passar sebo, que pegava nos açougues, para ajudar a deslizar a canoa até o mar. Eram muito pesadas, precisavam de 10 homens para pôr e tirar. E ainda tinha de esperar uns 20 minutos pro sebo secar, hoje usamos óleo de cozinha reutilizado debaixo dos barcos”, diz Celmo Mantovani, 62 anos. A colônia conta com cerca de 20 barcos, de 4,85 metros cada, que pesam cerca de 300 quilos (contando o motor), mas diariamente no máximo nove deles entram na água.
Após viagem de cerca de uma hora, as redes são lançadas. Cada uma mede um quilômetro de extensão. “E geralmente você pesca com duas redes. No dia seguinte, você vai lá, despesca e joga a rede de novo”, conta Celmo. Para cada tipo de peixe existe uma rede com uma trama específica, o que obriga cada dono de barco a armazenar até 10 tipos de redes diferentes, para corvinas, linguados ou anchovas, dependendo da época do ano. Esta época do ano, por exemplo, é maior a pesca de corvinas. A renda mensal depende de vários fatores.
“Num mês bom, chego a fazer até R$ 6 mil”, conta João Valério da Silva Jr. 26 anos, o mais jovem da colônia, onde começou a trabalhar com 15 anos. “Quem tem barco tira mais, porque tem custos, como manutenção, óleo diesel. Quem acompanha tira menos. Então varia bastante, porque a divisão depende do número de pescadores por barco, que varia de quatro a seis”, conta Joãozinho. Esses valores, porém, vem caindo bastante nos últimos anos.
“Antigamente um patinho feio aqui pegava 400 quilos de peixe. Hoje se pegar 200 é muito. A pescaria industrial nos levou à decadência”, conta Augusto Cesar Rodrigues de Oliveira, conhecido como Fominha, 58 anos. Sua crítica se refere à pesca industrial predatória, com o uso de traineiras equipadas com sonar e redes gigantes capazes de cercar um cardume inteiro. Além disso, essas embarcações mais modernas são capazes de ir além das ilhas Cagarras, espécie de ponto limite para os barcos dos pescadores artesanais. “Isso gera um desequilíbrio grande, principalmente em épocas protegidas de reprodução das espécies”, diz Fominha. Há dias em que os pescadores não pegam nada, e alguns chegam a ir até as traineiras implorar por um caixote de peixes para ter o que levar para a colônia.
No início da década de 1990, com o fim do arrastão nas areias, começou a pescaria artesanal propriamente dita na parte funda do mar. No começo os pescadores usavam canoas de madeira, fabricadas com troncos surrupiados do Jardim Botânico.
Mas as ameaças aos pescadores vão além da crescente poluição e da pesca industrial. Sua localização é cobiçada. É de onde se tem uma das melhores vistas da alvorada sobre a cidade. “Daí todo mundo tem interesse em tirar a gente daqui”, revela Celmo. Por “todo mundo”, a preocupação mais específica se refere ao vizinho Clube Marimbás e ao hotel Fairmont, que já conta com um posto avançado na areia para atender os seus hóspedes. Oficialmente ninguém admite nada. Mas o comentário é que tanto o clube quanto o “cinco estrelas” sonha em instalar no local uma espécie de lounge, com decks, bar com drinks de responsa, mesas e cadeiras para atrair turistas.
Por volta das 9h os barcos começam a retornar. Quando chegam na arrebentação, um pescador leva um guincho acoplado a um motor a diesel para ajudar a puxar a embarcação. Cada um costuma trazer cerca de 20 quilos de peixe, que são lavados, pesados e colocados à venda nas bancadas da colônia. Existem 20 dessas bancadas, mas é raro ver mais do que nove delas ocupadas. Uma corvina de bom peso sai a R$ 25. E por mais R$ 5 ela pode ser limpa na mesma hora num local à parte. Por volta do meio-dia os peixes deixam as bancadas e são colocados à venda na peixaria refrigerada que também pertence à colônia.
É nesse meio tempo que a Z 13 parece se transformar numa pequena cidade do interior. Os pescadores descansam sobre as redes, debaixo de amendoeiras, contando histórias e fazendo piadas. O movimento é grande, não só de moradores de Copacabana chegando para comprar os peixes, fresquíssimos, como de inúmeros turistas estrangeiros, encantados com o esforço dos trabalhadores para enfrentar os desafios do mar. “Moro em Toronto, e nunca havia imaginado que ainda existisse algo assim”, contou o canadense John Wilkes, que entusiasmadíssimo passou a manhã do dia da visita da equipe de Rio Já fotografando os pescadores. “É uma vida arriscada, às vezes uma onda maior pode virar seu barco, mas muito gratificante. Hoje mesmo cruzei com um cardume de oito golfinhos, acompanhados por um bando de filhotes”, conta Joãozinho com um sorriso de satisfação.
E uma reportagem sobre pescadores não poderia terminar sem… uma boa história de pescador. Quem nos conta é o Fominha. “Um tempo atrás estávamos no mar quando fomos cercados por três orcas, daquelas preto e brancas, iguais às do cinema.
as ameaças aos pescadores vão além da crescente poluição e da pesca industrial. Sua localização é cobiçada. É de onde se tem uma das melhores vistas da alvorada sobre a cidade.
Foi uma gritaria danada, o pessoal ficou apavorado dizendo que o barco ia virar. Elas ficavam pulando pra lá e pra cá, pareciam índio atacando diligência. Acho que queriam pegar um virote grande que estava na rede. Quando puxamos o peixe para dentro do barco, elas desistiram e tomaram o rumo da Barra da Tijuca”. Parece cascata, mas o fato é que desde 1993 orcas efetivamente têm sido avistadas, principalmente no mar de Arraial do Cabo.
A colônia de Copacabana, entretanto, não é a mais antiga do Rio. Esse título pertence à Z 10, que fica na barra do Rio Jequiá, na Ilha do Governador e é apenas três anos mais velha. Segundo informações da Marinha, hoje existem 850 colônias de pescadores por todo o Brasil, 26 Federações Estaduais e uma Confederação Nacional de Pescadores e Aquicultores, representando mais de 1 milhão de pescadores artesanais. As suas atividades foram regulamentadas através das Portarias no 471 de 26/12/1973 e Portaria no 323 de 3/6/1975, ambas do Ministério da Agricultura e Abastecimento. Atualmente, após muitos anos de espera com a aprovação do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, o Governo Federal sancionou em 3/5/2008 o decreto lei 11.699, transformando as colônias em sindicatos rurais, conforme parágrafo único do artigo 8 da Constituição Federal.
O OLHAR DE UM APAIXONADO
As imagens que ilustram essa reportagem foram cedidas à Rio Já pelo jornalista, fotógrafo e curador André Arruda, autor do livro “100 Coisas que Cem Pessoas Não Vivem Sem”. Morador apaixonado de Copacabana desde os anos 1980, ele registra o cotidiano dos últimos pescadores artesanais do seu bairro de coração. O resultado desses anos de trabalho poderá ser apreciado pelo público em uma exposição na própria colônia, a partir do dia 29/6, Dia de São Pedro e data oficial do centenário. André foi ainda vencedor do Prêmio ANER de melhor capa de revista nacional em 2016. Em 2017 teve a série CLÓVIS, retratos dos Bate-Bolas do carnaval do Rio de Janeiro, premiada como ensaio revelação no Prêmio Brasil Fotografia. Em 2020 foi contemplado no edital “Arte como respiro”, do Itau Cultural, pela série “Pequenas Quarentenas”. E em 2023 recebeu o prêmio “Rio do Futuro” pelo edital Firjan/Sesi.
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