NOMOFOBIA, O MEDO DA FALTA DO CELULAR

Recentemente, a Netflix lançou a série ‘Adolescência’, uma bomba que vai em todas as direções

Luisa Prochnik

Você já ouviu falar em nomofobia? O termo vem do inglês no-mobile-fobia, ou seja, dependência patológica da tecnologia. Enquanto esta reportagem é lida, possivelmente por meios digitais, adultos, jovens e crianças têm suas vidas transformadas para pior ao serem expostos aos danos que esse hábito contemporâneo – um vício, em muitos casos – pode causar. Cada faixa etária traz desafios e obstáculos específicos e, nas linhas a seguir, todas são contempladas. Recentemente, a Netflix lançou a série ‘Adolescência’, uma bomba que vai em todas as direções, atingindo números altíssimos de audiência, ao expor a relação pais, escolas, jovens, tecnologia e falta de controle. A juíza titular da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, Vanessa Cavalieri, deu entrevista sobre o aumento de infrações cometidas por jovens usando meios tecnológicos ao podcast Rádio Novelo – link ao fim da reportagem. O Instituto Delete, formado por acadêmicos e com metodologia cientificamente comprovada, traz estatísticas reveladoras de um cenário assustador sobre viciados em tela. Mas, antes de classificar a reportagem como contrária à tecnologia, a proposta de todas as vozes aqui presentes é o uso consciente deste indispensável recurso moderno. Não há mundo sem tecnologia, mas há como equilibrar melhor o mundo real e virtual. Convidamos você a conhecer o Clube Offline.

No escurinho do cinema, o filme é ‘Terra Estrangeira’, de Walter Salles, com Fernanda Torres versão anos 90. No entanto, não é, exatamente, uma sala de cinema, e sim um espaço com projetor e telão e umas doze pessoas reunidas dentro de uma casa reformada no centro da cidade do Rio de Janeiro. Todos ali são convidados a assistirem ao filme sem seus celulares, duas horas desconectados. No caso, um filme, mas as atividades variam, de jogos de tabuleiro, a ouvir música, ou apenas mexer com o corpo. O importante é estar presente, no mundo real, físico. Essa é a proposta do ‘Clube Offline’, uma das atividades da ‘Escola do Absurdo’, fundada por três comunicadoras, com trajetórias diferentes na profissão, mas que se encontraram e, hoje, juntam esforços para um mesmo objetivo: aplicar a metodologia criada por elas de desconexão e reconexão.

– Uma escola para adultos, em que possam se encontrar para fazer atividades diversas e propositalmente escolhidas, também não são atividades aleatórias, escolhidas por algoritmos. São atividades escolhidas deliberada e pessoalmente. Para trabalhar, por exemplo, questões manuais, que a gente perde um pouco, para estimular a leitura, para estimular a atenção, para olhar para o corpo, que também é algo que se perde aí, a gente esquece que tem um corpo no meio dessa vivência virtual – explica Danielle Villanova, uma das sócio-fundadoras, graduada e com experiência em cinema e produção cultural.

A proposta e aposta desse trio é que, depois do encontro, do viver o real e da desconexão e conversas sobre o tema, você se reconecte com mais intencionalidade, com mais atenção, sem ser de forma automatizada, quando se pega o celular para uma ação, como mandar mensagem, e quando se percebe está passeando por redes sociais ou presa em vídeos curtos.

– A gente não tem uma visão só catastrófica da Internet. A Internet, quando surgiu, foi uma grande formadora de comunidades, e isso se perdeu. A nossa ideia, então, é resgatar um pouco esse melhor da internet, fora da Internet, recriando essas comunidades com atividades muito diversas, onde a pessoa pode experimentar diversas coisas – completa Beatriz Rangel, outra sócio-fundadora, que tem trajetória mais acadêmica, tendo se formado jornalista e atuando como pesquisadora em cibercultura e professora.

Ao chegar no ‘Clube Offline’, as pessoas são convidadas a, cariocamente, colocar seus celulares num saquinho de Cosme e Damião. Desconectar-se coletivamente, já que está tão difícil que isso aconteça no dia-a-dia, individualmente. A atividade do dia acontece, um bate-papo sobre percepções encerra o encontro. E fica aquela sensação de que é possível ter um equilíbrio entre os dois mundos, e aproveitar o que há de melhor em ambos. Daí vem o nome do local, a ‘Escola do Absurdo’.

– O slogan da ‘Escola do Absurdo’ é: nem utopia nem distopia. Diante desse absurdo que é a nossa vida hoje hiperconectada, que ultrapassa todas as barreiras, que você está em todo lugar ao mesmo tempo. E a gente não pode nem querer voltar, utopicamente, para um passado em que não há telas e nem se perder numa distopia de que não existe futuro possível – revela Anna Carolina Guida, a terceira sócio-fundadora, comunicadora, arteterapeuta, e pós-graduada em Psicologia Analítica.

Antes de chegar à sala onde se realiza o ‘Clube Offline’, as paredes da ‘Escola do Absurdo’ são preenchidas por obras que trazem criatividade, tecnologia e reflexão, como a “Nossa Senhora Sabina das Laranjas”, que une colagem, fotografia e pintura com a quitandeira Sabina, produzida através de inteligência artificial, do artista Luiz Gustavo Nostalgia.

Se uma reconexão mais equilibrada é possível, infelizmente, o que mais se percebe é o crescimento do número de nomofóbicos.

O Instituto Delete, fundado em 2013, divide em três categorias principais a relação do usuário com a tecnologia: uso consciente – quando há um equilíbrio entre real e virtual, uso abusivo – quando o virtual atrapalha o mundo real, mas ainda há controle por parte do usuário – e, por fim, a dependência patológica da tecnologia – quando surgem sintomas como desprezo por relações sociais na vida real, sintomas de ansiedade, depressão e alteração de sono.

Segundo o Instituto, 7 em cada 10 pessoas são usuários abusivos de tecnologia. E 3 em cada 10 apresentam sintomas de dependência patológica e precisam de orientação profissional.

– Conseguimos estabelecer 15 escalas para analisar a dependência de dispositivos e aplicativos, como WhatsApp, Facebook, Instagram. Todos os nossos trabalhos são científicos, com publicações em revistas internacionais e as quinze escalas validadas em português, inglês e espanhol. E tem escala para ver se você é dependente do celular, do Facebook, do Instagram, do Youtube, se você é nomofóbico – explica Anna Lucia Spear King, psicóloga, doutora em saúde mental, professora da pós-graduação do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na disciplina dependência digital e temas relacionados.

Anna Lucia é uma das fundadoras Do Instituto Delete, criado dentro do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, que permite ao usuário fazer o teste sobre sua relação com tecnologia no próprio site do Instituto (link no fim da matéria) e, caso precise de ajuda, tanto ele receberá ajuda gratuita, quanto seus familiares receberão orientações para lidar com a situação. O Instituto já publicou sete livros – que vão desde ao estudo da nomofobia e as 15 escalas, até etiqueta para o uso digital de aparelhos diversos e como seremos novos humanos em 2030 ao usar a tecnologia da forma como temos feito até então, entre outros.

– O importante é que a gente tem que aprender a fazer a diferença entre essa dependência normal, que todos nós temos na tecnologia. Todos nós usamos todos os dias a tecnologia para trabalhar, estudar, se relacionar. E por muitas horas, às vezes. Mas isso não significa que somos dependentes. Às vezes, nós somos mal educados, porque não conhecemos as regras e limites para não trazer prejuízo. Já a dependência patológica, que é o transtorno, a doença, precisa de tratamento. E, geralmente, essa dependência patológica já tem um transtorno mental associado, uma ansiedade, uma depressão, uma compulsão, pânico, déficit de atenção, hiperatividade, entre outros. E isso se potencializa o uso da tecnologia – reforça a psicóloga, doutora em saúde mental.

Quando se fala sobre criança e adolescente,

Anna Lucia é categórica:

– Os pais e os adultos são responsáveis pela vida digital dos menores de idade. Quem deu o celular? Quem deixa ficar o dia inteiro no quarto? Quem não dá limites?

Atenta às estatísticas, Anna Lucia é contra o uso de celulares por crianças, e enfatiza a importância de ter uma rotina analógica com a família e realizar atividades ao ar livre.

A partir de 2025, a Lei nº 15.100/2025 passa a ser aplicada nas escolas, restringindo o uso de celular pelas crianças, salvo em caso de urgência e saúde, é o uso da tecnologia para fins educacionais. Mas, agora, recreio é sem tela. No Colégio São Vicente de Paulo, tradicional instituição carioca, localizada no bairro de Laranjeiras, a restrição começou a ser aplicada ainda no ano passado.

– Implementamos essa mudança gradualmente: primeiro, proibimos o uso em sala de aula, depois, também nos recreios e, por fim, em todo o espaço escolar. A implementação da Lei 15.100/2025 ajudou a respaldar nossa decisão, tomada um ano antes, e permitiu que voltássemos a refletir sobre o tema – relata o Irmão Adriano Ferreira Silva, diretor-geral do Colégio São Vicente de Paulo.

Segundo o diretor-geral, no início, alunos contestaram a decisão. No entanto, com o tempo, a volta do barulho no recreio, com os alunos voltando a falar entre si, jogar, interagir no mundo real, tornou-se realidade.

– Aos educadores é recomendada parcimônia no uso dos aparelhos tecnológicos durante o turno de trabalho, especialmente os celulares, mas a eles não está vedado o uso. Os educadores podem utilizar a tecnologia com os alunos nos laboratórios de informática, na própria sala de aula (por meio dos Chromebooks e outros equipamentos da escola), nas oficinas de robótica e etc. – completa Irmão Adriano.

O combate ao uso excessivo de tecnologia por crianças e adolescentes é tema abordado comumente também por pediatras e, de forma contundente, pela juíza titular da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro, que, no podcast Rádio Novelo, com o forte título “Vanessa Cavalieiri não quer prender o teu filho”, alega que notou uma mudança no perfil dos infratores: adolescentes de classes média e alta que cometem infrações digitais graves.

A juíza Vanessa relata na entrevista e em palestras casos escabrosos para chocar os pais, até que eles entendam: supervisionar os filhos nas redes não é invasão de privacidade.

O problema com as telas ultrapassa as fronteiras do Brasil. Michelle Obama, ex-primeira damas dos Estados Unidos, na gravação ao vivo do podcast IMO, disse:

– Larguem o celular e não deixem essa energia negativa entrar no seu espaço. E – e completou – Eu e Barack nunca deixamos, mesmo com toda a carga negativa que era dirigida para nós.

Recentemente, o debate chegou às telas da Netflix, através da série inglesa ‘Adolescência’, em que os pais não controlam e desconhecem por completo o que seu filho faz dentro do quarto, enquanto está conectado, e isso traz sérias consequências a todos da família. E concluem: podíamos ter feito mais, muito mais. Todos nós podemos e devemos fazer mais.

SERVIÇO
Clube Offline:
Quintas às 18h30; Sábados às 13h30.
Rua da Quitanda 68, Centro, Rio de Janeiro.
Ingresso avulso: R$15 no primeiro encontro; R$30 do segundo encontro em diante.
Passaporte Mensal: R$80
Inscrições no site: https://escoladoabsurdo.com.br/
Instituto Delete: https://institutodelete.com
Teste de dependência: https://institutodelete.com/teste-de-teste-de-dependencia

Entrevista juíza Vanessa Cavalieira:
“Vanessa Cavalieiri não quer prender o teu filho” – Rádio Novelo (podcast)
https://open.spotify.com/w&context=spotify%3Ashow%3A6O4Hk5WtX6KVLhEwb4WKar

Série ‘Adolescência’ (Netflix):
https://www.netflix.com/br/title/81756069?preventIntent=true

Guia sobre Usos de Dispositivos Digitais (Crianças, Adolescentes e Telas):
https://www.gov.br/secom/pt-br/assuntos/uso-de-telas-por-criancas-e-adolescentes/guia