MALU DE IPANEMA

"Ser como o Rio é muito raro! Que sorte ter nascido aqui!", celebra a atriz

Aydano André Motta

Entre os variados tipos cariocas, o mais encantador conjuga traços tão marcantes como paradoxais a olho nu – mas convergentes, se observados na perspectiva correta. É, ao mesmo tempo, elegante e despojado, sofisticado e simples, sedutor e suave. Dispensa brilhos artificiais, preza a serenidade, descarta a opulência, professa a coerência. O estilo de Dona Neuma (1922-2000), a grande dama mangueirense; de Walter Alfaiate (1930-2010), o compositor; de Paulinho da Viola, gigante do samba da MPB. E de Malu Mader, a atriz-ícone do Rio que está de volta à TV.

Ela contribui para esculpir a cidade onde famosos e anônimos se cruzam por aí, no calçadão, no mercado, na feira, na academia, e tudo certo. Quem se assusta é turista. Malu cultiva o cotidiano de normalidade como escolha de vida. Na mesma intensidade do amor por seu lugar no mundo, Ipanema, onde está desde (quase) sempre, e do qual se transformou em cara. “Minha vida toda foi aqui. Lembro de um lugar mais misturado, com jogo de bicho, loja de material de construção, de macumba, muitos botequins, o depósito do mate de galão, a feira na Henrique Dumont”, lista.

O bairro intocado na memória despertou-lhe a vocação, iniciada ao avistar atores como Milton Moraes (1930-1993) e, sobretudo, Maria Clara Machado (1921-2001), também escritora e dramaturga, criadora da lendária escola de teatro Tablado. Malu entrou lá aos 15 anos e, com professores como a atriz Louise Cardoso, encontrou seu destino. Estreou na TV aos 16, foi morar sozinha aos 19 e nunca fez outra coisa na vida, até se tornar a estrela que encantou gerações de brasileiros, em especial na televisão.

Colecionadora de personagens inesquecíveis, está de volta agora, após oito anos de pausa, em aclamada participação em “Renascer”, novela das 21h da Globo, como Aurora, a fazendeira feminista que revoluciona a vida do protagonista, José Inocêncio (Marcos Palmeira). “A personagem chega como seu nome, para trazer novos ares. Vai para aprender e ensiná-lo a se relacionar com uma mulher independente”, comentou, em entrevista ao “Fantástico”. “Fico bastante feliz de estar dando esse recado”.

Malu, 57 anos, topou conversar com a Rio Já para falar de outra paixão: a cidade. Numa mistura inquebrável de inteligência e delicadeza, discorreu, ao longo de quase uma hora, sobre a relação com seu território. “Amo Ipanema num nível profundo”, ratifica, sorrindo. Quando volto de viagem, sinto que tenho um lugar meu. O carro vem sozinho”, brinca, referindo-se ao apartamento a meio caminho da praia e da Lagoa, onde mora com o marido, o titã Tony Bellotto, os filhos João e Antonio e, esporadicamente, a enteada Nina, mãe de seus netos, Francisco e Antonio.

“Amo Ipanema num nível profundo. Quando volto de viagem, sinto que tenho um lugar meu. O carro vem sozinho”

Sem qualquer traço grandiloquente, ela tampouco renuncia ao status de ícone carioca. Em verdade, se orgulha. “Uma das riquezas da cidade é a consciência de que todos vivemos juntos. Por nossa característica geográfica, aqui é diferente. Ainda que a questão financeira crie divisões, habitamos os mesmos lugares, especialmente a praia e um relacionamento humano fraterno se impõe”, analisa. “É possível uma formação não preconceituosa, com alguma igualdade”, anima-se, sublinhando que a condição se sobrepõe a contextos religiosos, econômicos e sociais.

O melhor Rio de Janeiro funciona como uma espécie de espelho para a atriz. “O despojamento é nosso trunfo, a praia misturada com trabalho, lazer, tudo junto, algo difícil de encontrar”, festeja. “Ser como o Rio é muito raro! Que sorte ter nascido aqui! E tem ainda cachoeira, floresta, lagoa. Aqui, a gente trabalha e se diverte”.

Tudo muito bom, tudo muito bem – pena que falte a consciência do cuidado essencial a lugar tão único sobre a Terra. Aqui, Malu Mader desfila consciência e engajamento, para apontar as mazelas que a desencantam: a violência endêmica, notadamente a brutalidade policial nas comunidades populares. Além disso, a atávica dificuldade dos conterrâneos na convivência social. “Falta delicadeza para pensar no outro com civilidade e cidadania”, critica. “Precisamos conquistar isso de maneira mais efetiva, assim como a limpeza. Zelar pelo que é nosso, cuidar como a riqueza que é. Tanta exuberância dá a ilusão de que nunca vai acabar, mas não pode ser assim. Independentemente do que o estado tem de fazer por nós”, prega.

“Uma das riquezas da cidade é a consciência de que todos vivemos juntos. Por nossa característica geográfica, aqui é diferente. Ainda que a questão financeira crie divisões, habitamos os mesmos lugares, especialmente a praia e um relacionamento humano fraterno se impõe”

De qualquer jeito, Malu ainda formou cariocas afetivos – principalmente o marido, Tony Bellotto, que migrou de São Paulo quando se casou com a atriz, 34 anos atrás. “Hoje, ele aproveita mais a cidade do que eu; corre na praia e na lagoa, anda de bicicleta o tempo todo, gosta de explorar novos lugares”, relata ela, acrescentando que não se acha o único motivo da mudança. “Ele ama enlouquecidamente o Rio. Quando viajamos, pede para voltar logo, defende a cidade, não gosta que falem mal”.

Não para aí. Originalmente torcedor do Santos, Tony virou Flamengo, paixão de toda a família Mader, aí incluídos os filhos dos dois. Não teve jeito – o guitarrista confessadamente integrou-se às fileiras da maior torcida do Brasil. “Ele viu os meninos torcendo e não aguentou. Sua paternidade tem muita força, a felicidade dos filhos está na frente de tudo”, narra a atriz.

O casamento deles é uma longeva união de felicidade e harmonia, entre outros motivos por Tony ser “um homem extremamente feminista”, na definição de Malu. Ele teve tal formação a partir da educação familiar, graças à mãe. Dá para ver que deu resultado, pela atitude como músico e cidadão. E a odisseia prossegue na direção certa, com os filhos e netos. 

Com as crianças, aliás, a volta à TV tem sido especialmente divertida. Ao “Fantástico”, Malu revelou que eles, nascidos na era multitela, de tablets e celulares, estranharam ao ver a vovó no personagem. “Por que não é o vovô?”, perguntaram, diante de uma cena com Marcos Palmeira. Agora, forma entre os milhões de brasileiros fãs da atriz.

Ela está reencontrando todas as emoções de sua vocação. “Cresci aqui, desde os 16 anos (idade do primeiro papel, a Doris Cantomaia de “Eu prometo”, novela de Janete Clair e Glória Perez), fiz coisas importantes, me formei”, relembra. Mas por que a pausa tão longa? Ela especula algumas razões, entre elas a preocupação com a imagem, num tempo de, como nomeia à perfeição, “evasão de privacidade”. 

“Ser como o Rio é muito raro! Que sorte ter nascido aqui! E tem ainda cachoeira, floresta, lagoa. Aqui, a gente trabalha e se diverte”

Jamais por acaso, Malu não tem redes sociais – mas, de novo, com suavidade, sem arroubos de protesto. “Não me identifico com esse esquema de exposição permanente, nos formatos em que eles sempre se apresentaram”, confessa. “As redes têm coisas muito legais e permitem se posicionar em questões políticas importantes. São ainda o lugar de pessoas compartilharem ideias, serem ouvidas. Mas tenho a sensação de que vou ser tragada e fico resistindo. Até porque não gosto de entrar pela metade”.

Nos anos 1970, nas areias de Ipanema

Está na mesma categoria algo que a diferencia da maioria dos colegas. Ela não se permite intervenções estéticas no corpo, mantendo a beleza natural (e deslumbrante), mas encara a tendência com suavidade e tolerância. “Compreendo quem faz, é quase uma nova concepção estética”, pondera. “Sou vaidosa, mas nunca fiz plástica. Pode ser que amanhã mude de ideia, porque sou a favor de participar da vida como ela se apresenta. Mas também é maneira de resistir. Para entrar num hospital pela própria vontade precisa estar muito a fim”, prossegue, garantindo, porém, que “não são dogmas”. 

Toda a grande discussão da imagem, para alguém que, no limite, vive dela, evoca reflexões permanentes. E acaba por tisnar algumas cláusulas pétreas da carioquice. Malu, hoje, vai à praia com frequência bissexta – totalmente diferente dos tempos da juventude, quando era “rata”. Ela viveu, com os filhos pequenos, o auge do jornalismo de celebridades, com os paparazzi perseguindo impiedosamente os famosos pela rua. “Perdi conexão, porque gosto da praia mais vazia. Mas fui semana passada”, conta.

A Sapucaí, outro totem da cidade, também pagou o preço. “Ia muito antes da TV, mas quando virei atriz, passou a ser ver e ser visto, virou um pouco trabalho, e gosto de ficar largada nesses momentos”, explica. “Mas de vez em quando ainda vou”, garante, lembrando, saudosa, desfiles da Mangueira, a escola do coração. 

Tudo dentro do preceito de “ficar quieta, estar onde ninguém sabe”, que ela preserva, ao lado das paixões de toda uma vida. “Não sabia que estava com tanta saudade do meu trabalho em novela”, assume, para alegria do público. 

Na pausa ou no batente, sem jamais abrir mão do melhor papel: Malu Mader de Ipanema.