Jan Theophilo
Deu no Monitor Campista, em 2 de julho de 1844: “Loja do Livro Verde, Rua da Quitanda 22. José Vaz Correia Coimbra e Cia annuncião ao respeitável público que acabão de abrir sua casa de negócio (…) na qual se acha para vender o seguinte: um variado sortimento de obras e mais pertences para escolas de instrucção primária e secundária de latim e francez, bem como novelas, historias e romances; musica de cantoria e para piano e vários instrumentos de corda e sôpro; papel almaço e de peso de differentes qualidades, dito de Hollanda, e outros accessorios para escriptorio; perfumarias, miudesas, livros pautados e em branco, um lindo sortimento de joias do ultimo gosto, drogas medicinaes e para pintura, broxas e papelão de número sortidos, o verdadeiro rapé Bernardes, que já supre a falta do princesa de Lisboa, excellente chá hisson, bem como outros muito artigos que se hão de annunciar. Os annunciantes se propoen a servir e por preços razoáveis, as pessoas que o queirão honrar com a sua confiança”. Pela data da publicação, e a grafia do português, dá para compreender a repercussão de outra notícia, datada de alguns dias atrás, informando que a Ao Livro Verde, a mais antiga livraria do Brasil, localizada em Campos dos Goytacazes, estava anunciando sua falência.
“Nosso maior faturamento hoje é com material escolar, e graças a pandemia, ficamos praticamente quatro anos sem faturar nada”, conta Ronaldo Sobral, o atual proprietário, que aos 79 anos por muito pouco não foi ele mesmo uma vítima do Covid. Ronaldo Passou quase seis meses entubado, e até hoje respira com muita dificuldade. “Sinto que não recuperei ainda todo o olfato e paladar”, diz ele, que cai em lágrimas ao falar da dívida de mais de R$ 2 milhões e sobre a corrente de solidariedade que tem se formado em torno da livraria, desde que ele anunciou o pedido de autofalência que está tramitando na 5ª Vara Cível da Comarca de Campos.
Durante a pandemia, o número de funcionários caiu de mais de 60 para apenas nove. Mas o esvaziamento do centro histórico da cidade, onde está localizada, a crise no mercado livreiro e a redução na venda de material didático, agora comercializado pelos próprios estabelecimentos de ensino também estão por trás dos problemas da quase bicentenária livraria. Por entre suas prateleiras, já circularam nomes como Ziraldo, o ex-presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL) Austregésilo de Athayde, o cronista Carlos Heitor Cony, o escritor José Cândido de Carvalho — que usou a livraria como cenário para seu livro “O coronel e o lobisomem” e José do Patrocínio que, dizem as lendas, teria comprado lá a caneta com a qual a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea. “Ouço essa história desde pequeno. Não tenho nada que comprove, mas também nunca apareceu ninguém para negar”, diz Ronaldo. Foi também ali que um jovem de origem humilde, maldosamente apelidado pela então elite formada pelos donos de engenho campista de “mulato do morro do Côco”, passava as tardes lendo e iniciando assim os estudos e a carreira que fizeram dele o primeiro presidente negro do Brasil: Nilo Peçanha.
O anúncio do fechamento gerou grande mobilização. Clientes e frequentadores fiéis promoveram um “abraço” à livraria e iniciaram uma campanha nacional de abaixo assinado “SOS Ao Livro Verde”, através do site “petição publica”, que já conta com o apoio oficial de 20 instituições culturais e históricas. Um pedido de socorro foi feito à Prefeitura de Campos, porém esta, naturalmente, alegou que se solidariza com a situação, mas não tem meios legais que permitam o apoio financeiro a uma empresa privada que tenha declarado autofalência. “Minha filha mora em Lisboa e contou que lá, outra livraria antiga, a Lello, tem fila na porta de turistas que querem apenas conhecê-la. A Prefeitura poderia nos ajudar, por exemplo, estimulando algo semelhante”, sonha Ronaldo.
De fato, a centenária livraria lisboeta (113 anos de operações) recebe diariamente dezenas de turistas que vão conhecer seu estilo neogótico. Mas por outro motivo. As estantes, os corredores, a claraboia com vitral e, sobretudo, a escada central da Lello serviram de inspiração para a escritora inglesa J.K. Rowling criar a escola de bruxaria Hogwarts, da série de livros de Harry Potter. Não dá para comparar com a Ao Livro Verde, que foi tão descaracterizada ao longo dos anos que se o turista entrar lá procurando uma espécie de versão clássica de uma Livraria da Travessa, com estantes de época e chão de madeira de lei, acaba entrando numa versão anos 80 da Casa Mattos, toda branca e oferecendo majoritariamente itens de papelaria. Apenas duas bancadas de madeira dos bons e velhos tempos ainda estão na ativa. Uma delas, dedicada exclusivamente a venda de livros de autores campistas e literatura de cordel.
Embora não possa simplesmente saldar as dívidas da Ao Livro Verde, a Prefeitura de Campos está trabalhando em um projeto que pode ser a boia de salvação da centenária livraria. O governo municipal deu início a um projeto de revitalização do Centro Histórico da cidade, visando a incrementar o turismo. “Todo o comércio deverá seguir o novo padrão da regulamentação e normatização do Centro Histórico de Campos, que inclui a retirada de marquises e letreiros que agridam a paisagem urbana, recuperando o cenário histórico do local. A beleza arquitetônica dos prédios está escondida atrás dos letreiros”, explica o presidente do Conselho de Preservação do Patrimônio Municipal (COPPAM), Orávio de Campos.
Segundo a nova regulamentação, os prédios não poderão ser envelopados ou escondidos, as lojas deverão evitar o gotejamento nas calçadas, a pintura deverá ser em tinta pastel, entre outras normas exigidas. O trabalho está sendo feito junto às lideranças da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL), Cajorpa e Associação do Comércio e Indústria de Campos. A primeira etapa já foi inaugurada e as ruas receberam total infraestrutura, como drenagem pluvial, redes de esgoto e de água, pavimentação, calçadas mais largas e com acessibilidade, além da conclusão de 90% da conversão subterrânea da rede elétrica. Segundo a Secretaria de Obras, Urbanismo e Infraestrutura, o projeto contempla ao todo, 26 ruas, avenidas e praças. “Somos resistência. Ou esse projeto nos ajuda ou precisaremos achar um investidor que preserve a importante história da livraria”, diz Ronaldo. Amantes da cultura, dos livros e das livrarias estão na torcida.
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