LAZER: UM MUSEU DE MEMÓRIAS AFETIVAS

Imagens sacras estão entre os itens mais encontrados

Luisa Prochnik

Situada em um lugar histórico e repleta de objetos que contam histórias, a Feira da Praça XV, no centro da cidade do Rio de Janeiro, atrai interessados em itens antigos, vintage e retrô em todo o Brasil e no mundo. Produtos de todos os tipos, entre equipamentos eletrônicos, móveis de época, louças de origens, cores e tamanhos variados, brinquedos, livros, roupas e muito mais estão expostos em barracas e permitem ao visitante viajar no tempo, fazer bons negócios e consumir arte — tudo isso ainda de forma sustentável, transformando lixo num luxo só.

Imagine que você more em um prédio porta-a-porta com um vizinho e, um belo dia, verifique que tem algo na sua casa que não serve mais, veio de família, está guardado há muito tempo e decide jogá-lo fora. Um móvel, uma revista em quadrinho, uma peça de louça… O catador de lixo pega o seu antigo objeto, leva à feira de antiguidades, vende. E sabe quem compra por ter achado o objeto lindo, maravilhoso? Seu vizinho. Outro destino é dado ao que se pensava ser apenas lixo. Essa história é contada por Raphael Barbeito, que organiza feiras no Rio há mais de 40 anos e é o produtor responsável pela Feira de Antiguidades da Praça XV, no centro do Rio de Janeiro, e traduz perfeitamente o que ele quer dizer ao afirmar:

— No Rio de Janeiro, nada se perde relacionado à arte e antiguidade – explica – em 1808, veio a família imperial para cá, D. João VI saiu de Portugal fugido. Ele trouxe o maior tesouro de uma nação, por isso a gente tem uma das cinco melhores bibliotecas do mundo, a Biblioteca Nacional, porque ele trouxe todos os livros, que eram o maior tesouro de uma nação para cá. Com isso vieram outras famílias e seus objetos, sua cultura, suas vestimentas, suas joias, e continuou vindo porque aqui eles fixaram residências. Então, o Rio de Janeiro se tornou um celeiro de arte e antiguidade.

Máquina fotográfica é vintage

O mercado de antiguidades explodiu nos anos 60 e 70, quando, segundo Barbeito, comprava-se “do bom e do melhor com muita facilidade”. Porém, no final dos anos 80 e início dos 90, norte-americanos e europeus chegaram com contêineres e levaram toneladas de objetos, entre baixelas de prata e móveis de jacarandá. Era uma época ainda anterior à internet, quando para se informar sobre arte só através de livros caros e, em sua maioria, escritos em inglês, francês, italiano ou alemão. Hoje, no entanto, o conhecimento já transbordou barreiras linguísticas e se acelerou com as conexões digitais. Ao passear pela feira da Praça XV, encontram-se mais que vendedoras, mas especialistas entre os expositores. Entre eles, muitos que começaram como colecionadores, outros por terem, desde cedo, uma veia artística. Em comum, expositores estão lá para vender, e, também, para comprar.

— O melhor lugar de comprar ainda é aqui na feira – afirma Stenio Sarubbi Filho, com uma barraca focada em arte sacra barroca e bijuterias de grife.

— Aqui a gente compra bastante. Tem gente que chega com a coleção do avô, o avô colecionava, mas eu não coleciono. Então, eu quero vender. E aí a gente compra muito assim – conta Andrezza Marraschi, expositora dedicada à numismática, colecionismo de moedas, paixão que começou por seu pai.

Conversando com os expositores, descobre-se que diversos fatores aparecem como importantes para a definição do preço de um objeto e, para atrair o consumidor, entre eles a estética, que inclui a beleza em si do item exposto, assim como a organização da barraca, a qualidade do material – se é vidro, cristal, qual o tipo e origem do cristal – a raridade dele – se foi produzido em pequena ou larga escala –, as histórias que o objeto conta e a memória afetiva que ele desperta. 

“Antiguidade tem que ter mais de 100 anos”

— Estética. Esse é o primeiro ponto que chama atenção. Por exemplo, eu estou aqui com uma garrafa na mão. Que garrafa é essa? Você faz ideia? Essa aqui é uma garrafa de água sanitária Super Globo dos anos 50, 60. E, se você reparar, ela é totalmente art déco. Então, primeiro passo, a estética. Depois, a história – pontua Ismar Pazo, que, ao lado da amiga, a expositora Sheila da Silva, exibe uma barraca com itens diversos.

— Antiguidade tem que ter mais de 100 anos. Vintage é antigo, com menos de 100 anos que, geralmente, esteja em bom estado. E aí o retrô é quando você faz uma peça nova com cara de antiga. Isso é o retrô – explica Pazo.

— Em primeiro lugar, apresentação. Uma boa apresentação, porque eu costumo dizer que as pessoas comem com os olhos – diz Alexandre Menezes, que exibe uma barraca impecável e aponta para um de seus itens, um vaso de cor preta capuccino .

— Quando foi lançado pelos italianos na ilha de Murano (junto de Veneza), as primeiras peças foram feitas em preto. Só que não tinham muita saída. Então, eles começaram a fazer em outras cores. E hoje se tornou uma peça rara – conta enquanto posa para uma foto com o Murano preto e para outra com o rosé.

A importância histórica permeia a barraca comandada por Vitor Hugo, cujo próprio nome remete a uma personalidade de antigamente, o romancista, poeta, dramaturgo e estadista francês Victor Hugo. Apaixonado por máquinas e retratos, uma tradição familiar de quase sete décadas, sendo todos da família fotógrafos, e as máquinas analógicas com revelação à moda antiga, o brasileiro e jovem Vitor Hugo expõe equipamentos de épocas diversas e origens variadas.

— Essa é uma Lubitel-2, uma câmera soviética, dos anos 60, de médio formato. No contexto do pós-guerra, é uma câmera bem interessante, um modelo profissional da época. É filme, tudo analógico. Revelado quimicamente, em laboratório – aponta um dos vários itens de sua barraca.

— Santos barrocos trazem muita história. O devocional. Na minha opinião, o que melhor foi feito no Brasil ainda é arte sacra – argumenta Stenio Sarubbi Filho, que ainda diz que não fala apenas do mais famoso, o Aleijadinho, mas também de outros mestres.

E quando se fala de memória afetiva, nada faz bater o coração mais rápido que flanar por barracas de brinquedos antigos, itens responsáveis por fazer o visitante viajar ao próprio passado, relembrar a infância. Essa época, para Rafael Lima, tem como sinônimo a marca G.I. Joe, uma franquia de bonecos de ação lançada nos Estados Unidos, nos anos 80.

— Como eu colecionava na infância, eu resolvi continuar a coleção. Eu vendo apenas o excesso – diz ele em frente a incontáveis bonecos, todos muito bem preservados, expostos em sacos transparentes individuais. Segundo Rafael, algumas crianças, sempre acompanhadas por pais fãs do brinquedo, até se aproximam da barraca, mas o público-alvo mesmo é formado por adultos que, ao verem os bonecos, automaticamente fazem uma deliciosa viagem no tempo.

Ainda no campo sentimental, três colecionadores têm uma parceria de anos relacionada ao objeto de desejo colecionado desde crianças: revistas de história em quadrinhos.

— A feira é um misto de local onde a gente se encontra para conversar, para trocar informações sobre histórias em quadrinhos e conhecer novas pessoas que gostam de HQs – explica Luciano Lino, parceiro do Marcelo Magalhães e do André Aurnheimer.

Entre as revistas expostas, as histórias também proliferam fora de suas páginas. Um exemplar editado pela EBAL, Editora Brasil-América Limitada, que foi uma das principais do ramo no país liderado pelo Adolfo Aizen, o “Pai das Histórias em Quadrinhos do Brasil”; outra, com personagens de época quase esquecidos, como o Riquinho e o Fantasma; e algumaFER mais raras, mais caras, como “Astros HB”, com personagens criados pelo estúdio Hanna-Barbera, conhecidos entre as crianças dos anos 80, como “Os Jetsons”, “Scubidu”, entre outros.