Aydano André Motta
Está na aba ‘ficção’, mas tem muito de vida real a história do mercado de bairro que, à noite, se traveste de escola de samba pequena e aguerrida, um e outra lutando pela própria sobrevivência. A conjugação do empreendimento/instituição cultural carrega a melhor cara do Rio – e é o mote de “Encantado’s”, série do Globoplay que, de tanto sucesso, chega agora em maio à TV Globo para todos. Prova, mais uma, da potência do subúrbio carioca, na sua caudalosa produção de histórias e personagens.
E com representatividade numa dimensão inédita na mídia eletrônica brasileira. No elenco de 15 atores, dez são negros – entre eles os protagonistas, a abnegada Olímpia (Vilma Melo), chefe do mercado-título da produção, e o atrapalhado Eraldo (Luis Miranda, espetacular), presidente da escola de samba Joia do Encantado, empreendimentos herdados do pai. Misturando jovens e veteranos, surge um desfile de encantos e especificidades do Rio, para construir trama surpreendente, divertida e apaixonante.
A obra nasceu da criatividade de Renata Andrade e Thais Pontes, integrantes da oficina de humor para roteiristas negros e periféricos realizada pela Globo em 2018. Inspiradas pelos maneirismos do subúrbio, as duas – amigas “há mais de 25 anos” – conceberam “Encantado’s” como trabalho final do curso, ainda em outubro de 2018. “Quisemos falar do Rio autêntico, suburbano, espontâneo, mas nada caricato. É tudo daquele jeito mesmo”, revela Renata. “Foi muito fácil construir a série, porque nos baseamos em pessoas que a gente conhece”, explica Thais.
Nascida 41 anos atrás em Oswaldo Cruz, bairro da Zona Norte berço da sua Portela, Renata cresceu numa família dividida com o Império Serrano, ninho de bambas da vizinha Serrinha, e tem o Carnaval desde sempre na sua vida. Criança, cumpria com a família o ritual de, nos dias de desfile, ir à Avenida Presidente Vargas, ver os carros alegóricos na concentração. Depois, atravessava a noite diante da TV assistindo até de manhã ao cortejo da Passarela, o colchão no chão da sala.
Thais, 40 anos, criada no Flamengo (“Mas a Zona Sul é só onde pago o IPTU”), apaixonou-se pela Mocidade Independente high-tech de Renato Lage, nos anos 1990, também a partir dos passeios pelas alegorias e do desfile visto com a família no mesmo estilo, com o inesquecível cachorro-quente como protagonista do cardápio. Tanta influência não poderia ser em vão.
“Nosso caminho não privilegiou a dor dessa parcela da população, mas também não romantizamos os problemas”, atesta Renata. “Usamos o tom das pessoas reais, que enfrentam as dificuldades sem perder o bom humor”. Thais oferece outra perspectiva, conectada a um novo tempo, mais diverso, da TV no Brasil. “A negritude e o subúrbio vendem. É um movimento que não tem mais volta”.
Para desenvolver a trama, as duas fugiram do clichê de personagens negros satélites dos protagonistas brancos. As muitas histórias entrelaçadas dão o devido destaque a todos – e obrigou os atores a sair da caixa imposta pelas mazelas brasileiras. Escalado como galã da principal trama romântica, Digão Ribeiro, o sensível FlashBlack, que sonha ser cineasta enquanto suspira pela linda Pandora (Dandara Mariana), confessou sua dificuldade. “Sempre tive uma arma na mão em cena. Não sei se consigo fazer um galã”, comentou, ainda nos ensaios. (Mas conseguiu com louvor, compondo um dos mais cativantes personagens da série.)
Outro ponto alto é um dos poucos atores brancos, Tony Ramos, sensacional como o bicheiro Madurão. Totem da TV, ele topou de primeira o personagem alegórico, vilão atrapalhado que sonha ficar com o mercado enquanto se ajeita sob uma peruca rebelde, num misto de Jorge Perlingeiro (o apresentador-presidente da Liesa, que lê as notas do Carnaval) e Capitão Guimarães (contraventor que lidera as escolas de samba). “A generosidade do Tony quebrou a banca”, brinca Thais.
As duas criadoras tiveram, como parceiros, os experientes roteiristas Antônio Prata e Chico Mattoso, que foram apresentados a algumas “exclusividades cariocas” por elas. “Incluímos uma referência ao aniversário Guanabara e eles não sabiam o que era”, lembra Thais, falando do badalado evento na rede do varejo. “Não conheciam o Milton Cunha!”, completa Renata, citando o apresentador-ícone do Carnaval.
Nem a Intendente Magalhães, a via na Zona Norte que abriga as apresentações das menores escolas, objetivo da Joia do Encantado, na sua saga de superação das incontáveis agruras comuns aos pequenos grêmios. Até fazer a festa – aliás, muito mais espontânea do que a engessada folia da Passarela do Samba.
O resultado final é uma delícia – e, em mais uma conquista, a odisseia do mercado/escola de samba chega ao olimpo da TV aberta. Uma joia do audiovisual!