JOÃO DIAMANTE: PERSONAGEM QUE RELUZ NA GASTRONOMIA

O chef agora comanda o restaurante 2 de Fevereiro, na Pequena África

Aydano André Motta

Na grande mina chamada Brasil, pedras brutas se espalham por todos os lados, à espera de serem descobertas. São poeira. Brotam nos mais diversos formatos, em jazidas inesgotáveis e sequer exigem lapidações trabalhosas – diante de qualquer oportunidade, reluzem intensamente. Como o baiano-carioca João Diamante, chef oriundo da favela que se transformou em estrela da gastronomia brasileira, conjugando saberes das comunidades populares e o aprendizado com ícones planetários do setor.

“A cozinha me escolheu”, resume ele, aos 32 anos, vencedor do prêmio Champions of Change, concedido no World’s 50 Best Restaurants, o Oscar da gastronomia, ganho pelo projeto social Diamantes na Cozinha, que desde 2016 oferece cursos de culinária, nutrição e hospitalidade a jovens de favelas e periferias do Rio. São mais de 400 formados e 3,5 mil beneficiados, nesses oito anos.

Se cozinhar é um ato político, João Diamante ostenta sortido menu de consciência e engajamento para transformar vidas, a partir do próprio exemplo. Ele cresceu com a irmã e a mãe, trabalhadora doméstica, na Nova Divineia, comunidade popular no Complexo do Andaraí, Zona Norte do Rio, onde testemunhou “mais de 50 amigos” morrerem na sangria sem fim do tráfico de drogas. Para fugir do destino que leva tantas preciosidades por lapidar, começou a trabalhar aos 6 anos – até juntar à causa pessoal o gosto por comida fresca, e tomar a direção do fogão.

A virada definitiva se deu no serviço militar. Diamante escolheu a Marinha e, lá, escolheu exatamente a cozinha, serviço que ninguém quer. Em três anos, passou de auxiliar a encarregado da comida do almirante, consolidando sua profissão. Desafio seguinte, a universidade acabou cumprida graças ao Fies, política pública que abriu as portas do ensino superior para os mais pobres.

Na faculdade, encarou novo desafio: conquistar a bolsa de estudos para a Escola de Alain Ducasse, um dos maiores chefs de todos os tempos. Diamante conseguiu uma das três vagas e nem a língua estrangeira o desencorajou. Em Paris, trabalhou durante o curso no Jules Verne, badalado restaurante da Torre Eiffel e usou o talento para aperfeiçoar o francês: ensinava gastronomia em troca de aulas do idioma.

Vez ou outra, perguntavam se a rotina do trabalho com o curso não estava pesada demais. “De onde eu venho, isso é difícil?”, admirava-se, sem jamais se permitir esquecer da favela a um oceano de distância. “Morava em frente ao Jardim de Luxemburgo e aprendia com o melhor chef do mundo. Os parâmetros sociais que conheci lá me serviram de incentivo”, recorda.

Na volta de Paris, a sabedoria de Emicida transformou-se no ingrediente central de Diamante. “Jamais retorne para sua comunidade de mãos e mente vazias”, prega o rapper – e o chef seguiu o aforismo, incentivando ajudas variadas aos seus conterrâneos. Futebol, jiu-jítsu, capoeira e teatro entraram no cardápio, mas o prato principal continuou sendo a gastronomia. O projeto virou também mote para palestras de seu criador, país afora. “Um por todos, e todos pela gastronomia brasileira”, estampava ele na camiseta que usava nos eventos.

“A gastronomia é a mais poderosa ferramenta de transformação. Através dela, dá para aprender matemática, português, física, química e história de forma muito natural, eclética e inclusiva. Ela está no seu boom e servindo como isca”, receita ele, que, assim, materializa o sonho de infância. “Sempre soube onde queria chegar para ter uma vida com dignidade, por mim e pelos meus”, revela.

Hoje, João Diamante está à frente da cozinha do restaurante Dois de Fevereiro, no Largo da Prainha, o coração da Pequena África, o que tem grande simbolismo para este cozinheiro baiano. Além disso, essa casa do agitador gastro-cultural Raphael Vidal é dedicada à cozinha baiana, e fez homenagem a Iemanjá no nome – é o dia dela.

Ele lembra que ganhou o seu sobrenome profissional nos primórdios da comunicação digital. Um amigo de infância, ainda na Nova Divineia, o ajudou a criar uma identidade para o MSN (espécie de avô do WhatsApp) e, pensou na permanente alegria do parceiro. Um diamante, a pedra que mantém o brilho e o valor para sempre.

O próximo empreendimento nasce com forte tempero sociorracial: o Dois de Fevereiro, restaurante na Pequena África, lugar que ele passou a valorizar ainda mais após ganhar letramento político, sobre o calvário de seus antepassados da diáspora. Em 2023, ele protagonizou “Origens – Um chef brasileiro no Benin”, série documental dirigida por Gabriele Roza para o UOL Prime, na qual percorreu pontos históricos da Costa da Mina. O lugar, chave na dinâmica do período da escravidão, foi escolhido a partir de teste genético que identificou a ancestralidade de Diamante justamente daquele trecho da África.

Ele visitou Dantokpa, a maior feira livre do Benin (uma das principais do continente), interagiu com vendedores de comida de rua e cozinhou com outros chefs, numa viagem recheada de significados. Passado, presente e futuro desfilaram numa torrente de convergências das comidas brasileira e beninense. Acarajé e feijoada surgem em versões muito parecidas com as que comemos do lado de cá do Atlântico.

No episódio mais emocionante, esteve em Ouidah, cidade onde encontrou famílias com sobrenomes brasileiros – Medeiros, Martins, Domingos, Souza… São os Agudás, descendentes de traficantes ou de ex-escravizados que voltaram ao Benin no século 18. Num mergulho na história, Diamante esteve na “Porta do Não Retorno”, trecho do litoral de onde partiam os navios lotados de africanos traficados pelos mercadores de escravos. “Tremia todo e senti uma tristeza profunda”, recorda. “Por causa dessa experiência, decidi fazer algo na Pequena África”.

Tudo a ver com a filosofia para quem empreender “jamais será somente por dinheiro”. O chef entende que a região onde desembarcaram milhões de africanos escravizados hoje pode ser geradora de emprego, renda, alegria, horizontes e futuros melhores. Ele recita a receita precisa: “Quando as oportunidades surgem pela via da educação, todo mundo pode chegar”, assegura João Diamante, na profissão de fé para que outras preciosidades brasileiras possam reluzir sem se perder pelo caminho.