JIU-JITSU LUTANDO PELA INCLUSÃO

Mestre André Seabra e Luigi, que tem Síndrome do X frágil

Carolina Rocha

‘É coração, razão, emoção… É sentimento a ponto de eu estar desse jeito”, contou Simone Matos enquanto mostrava os pelos do braço arrepiados. Ela é mãe do João Vitor e descrevia comovida o ‘Fazendo a Diferença no Jiu-Jitsu’ (FDJJ), projeto social que tem como atleta o seu filho, um menino de 17 anos com Síndrome de Down. O objetivo da iniciativa, que também atende alunos com Transtorno do Espectro do Autismo e Deficiência Intelectual, é usar o esporte como ferramenta para inclusão social de pessoas com deficiência (PCDs).

Integração, inclusão e interação são os três pilares do projeto, que beneficia cerca de 30 jovens do bairro Jardim Sulacap, na Zona Oeste do Rio. A sede fica num sobrado e os pais aguardam no térreo enquanto os filhos treinam no pavimento de cima. No mesmo lugar, André Seabra, fundador do Fazendo a Diferença no Jiu-Jitsu, dá aulas para pessoas sem deficiência a partir de dois anos. “O que eu vejo do projeto é além do Jiu-Jitsu. Cada criança que sobe, desce com um olhar diferente”, afirmou Simone, mãe do João.

As aulas são gratuitas para todos os integrantes do FDJJ. A pequena renda que Seabra recebe vem dos “anjinhos”, como chama as crianças, e dos adultos sem deficiência. Todo o dinheiro arrecadado vai direto para manutenção da sede.

O principal desafio é descobrir como adaptar a arte marcial para cada um dos alunos, que possuem tempos de aprendizado diferentes e questões físicas que precisam de atenção especial. Em pessoas com Síndrome de Down, por exemplo, geralmente há redução de força muscular e má-formação estrutural do coração. Entre os autistas, há tendência de sensibilidade à luz, sons e toque. Além disso, a maioria dos alunos possui dificuldade na fala, sendo alguns não-verbais.

Para lidar com as particularidades com excelência, Seabra coleciona especializações, como treinamento de primeiros socorros, curso sobre autismo e workshop de pedagogia. Os diplomas nas paredes só perdem espaço para as prateleiras de troféus, recebidos por ele e pelos alunos.

Jonathan Pitbull, faixa preta 2° Dan, é embaixador da Federação Sul-Americana

“O Jiu-Jitsu mudou minha vida. Eu era muito brigão. O Jiu-Jitsu me acalmou”, conta Jonathan Pitbull, de 33 anos, faixa preta 2° Dan e embaixador da Federação Sul-Americana de Jiu-Jitsu. Jonathan foi o primeiro aluno com deficiência a quem Seabra deu aula. Desde lá, já são 25 anos lutando pela inclusão dessas pessoas na sociedade.

Jonathan Pitbull já enfrentou inúmeras lendas do esporte, entre eles José Aldo, Thales Leites, Warlley Alves, David Vieira, Leonardo Santos e Raphael Abi-Riha. E ele não quer parar por aí. O objetivo do “Pitbull” é mostrar sua arte para o mundo todo acompanhado do seu principal parceiro. “Meu sonho é competir fora do Brasil e, com certeza, eu vou levar quem eu amo de paixão: meu mestre”, disse o faixa-preta.

“Muitos que olham acham que é uma bobeira, mas não é. Para eles é um incentivo enorme. É isso que o professor transmite para eles: confiança. Não é só a luta. É a confiança de saber ‘eu posso, eu consigo’”, afirma Simone Matos.

Simone Matos é entusiasta do projeto

A discriminação é apresentada às pessoas com deficiência desde a mais tenra idade. Contudo, apesar de marginalizados, eles distribuem o que têm de mais precioso: amor. Os que entram naquele sobrado na Rua Artur Neiva, em Sulacap, são recebidos com sorrisos, abraços, beijos e um caloroso “eu te amo”.

Os elogios também são constantes e a maioria tem um destinatário em comum: o professor Seabra. “Meu mestre é meu grande amigo”, disse Rodrigo Ribeiro, de 21 anos, faixa roxa. Além de lutador, ele é modelo profissional e atleta da Marinha.

“É uma felicidade tremenda eles me darem a oportunidade de poder aprender um pouquinho com eles. Muitos acham que só eu ensino. [Mas são] eles que me ensinam. A gente vai de braço dado e segue juntos”, afirma o fundador do FDJJ.

A maior dificuldade não é lidar com a diferença, como acredita o senso comum, e sim com a falta de apoio financeiro. “São vários desafios do lado material, principalmente porque muitos [dos alunos] não têm condições”, explica Seabra.

O projeto se mantém de pé devido à caridade, principalmente de amigos. Às vezes, chegam doações de kimonos, tatame e equipamentos para treino. Segundo André, as redes sociais também têm trazido alguns doadores. Os alunos produzem vídeos demonstrando posições e golpes para o perfil do Instagram, que já ultrapassa 17 mil seguidores.

“Hoje eu recebo muitas mensagens de pessoas que tem filho, sobrinho, irmão com algum tipo de deficiência dizendo: ‘seus vídeos me inspiram’”, contou André. Ele acrescenta que é comum a própria família deixá-los à margem, ou por achar que são “coitadinhos” ou por medo do preconceito.

Diretor de Jiu-jitsu adaptado da Federação Sul-Americana de Jiu-Jitsu, campeão mundial da Confederação Brasileira de Jiu-Jitsu Olímpico em 2015 e faixa preta 5° Dan, o professor não vive da arte marcial. A renda para sobrevivência vem do hospital onde trabalha como radiologista concursado e dos poucos clientes que sobraram da época que trabalhava como barbeiro. Ele e o tio eram donos de um salão que quebrou após o período de lockdown durante a pandemia de Covid-19.

Seabra dá aulas para PCDs desde 1998. A história começou quando Jonathan Pitbull, na época faixa branca, se inscreveu como aluno na academia onde ele trabalhava. O treinamento era voltado para o público em geral e apesar de, até então, nunca ter atuado com PCDs, André topou o desafio. “Eu falei: ‘Eles também são capazes. Então vamos tentar”, relembrou.

Jonathan ficou por pouco tempo, e só voltou em 2012, mas outros meninos e meninas com deficiência passaram, em momentos distintos, pela vida profissional de André. Um deles era um garoto surdo. “Naquela época eu não sabia libras. Eu tinha que demonstrar ou fazer mímica e ele copiava”, afirma o lutador.

Mas foi em 2001, como voluntário do Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) Aracy de Almeida, também em Sulacap, que a semente do FDJJ começou a germinar. Seabra foi convidado para ser mestre de duas turmas de Jiu-Jitsu adaptado no CIEP, onde ficou por quatro anos. Como um bom filho à casa torna, em 2019 ele voltou aos tatames do colégio a convite de uma amiga.

Nesta época, André se dividia entre o voluntariado no colégio, o trabalho de professor em uma academia de luta e os atendimentos como radiologista. Os planos mudaram quando, em 2021, a dona da academia fechou o estabelecimento e mudou de estado.

Ali surgiu a ideia de buscar um espaço próprio para atuar no Jiu-Jitsu. Mas como fazer isso com pouco dinheiro? Morador do bairro por quase 30 anos, André encontrou um vizinho solidário que cedeu o espaço onde ministra aulas até hoje.

André então propôs que todos os alunos do Centro Integrado fossem treinar também na Rua Artur Neiva. Hoje, ainda voluntário, ele considera o CIEP um núcleo do Fazendo a Diferença no Jiu-Jitsu.

 “Eu me sinto realizado, como professor e como pessoa, de poder em algum nível fazer a diferença e fazer parte da vida deles. Isso é o que me motiva”, afirma o mestre.