Jan Theophilo
As discussões sobre a tirolesa e a reforma do Pão de Açúcar ainda vão longe, mas os cariocas já arrumaram uma nova polêmica para debater nos bares da vida: a reforma do Jardim de Alah, a alameda que ladeia o canal navegável no coração da Zona Sul, entre Ipanema e Leblon, ligando a Lagoa Rodrigo de Freitas ao mar. Estimulada pelo empresário Alexandre Accioly – um dos responsáveis pela reforma do Roxy – a Prefeitura do Rio iniciou em julho do ano passado a avaliação de estudos para a concessão do uso do Jardim de Alah por 35 anos. Foi o começo de uma disputa que opõe moradores célebres a três consórcios interessados em explorar o espaço, formados por alguns dos empreendedores responsáveis por projetos de especial importância para revitalização da cidade, como o próprio Accioly, Dodi Sirena (ex-empresário de Roberto Carlos), e as empresas da família Medina (criadora do Rock in Rio), entre outros.
Registros fotográficos do fim do século XIX, comprovam que desde os tempos em que os Tamoios caminhavam pela Guanabara, havia um canal ligando a então Lagoa de Sacopenapan (atual Rodrigo de Freitas) até o oceano, dividindo as futuras praias de Ipanema e Leblon. Em 1922 a prefeitura apresentou um projeto visando a “sanear e embelezar a Capital para as festas do Centenário da Independência”. Ele consistia no aprofundamento da barra, através de dragagem, melhorando a ligação da lagoa com o mar e assim acabando com a mortandade de peixes – que já era um problema séculos atrás. Em sua ponta próxima à praia, escondida atrás de grades, há uma pedra esculpida em baixo relevo junto a uma escadinha também de pedra que desce até o canal, indicando o ano de 1922 e os responsáveis pela obra.
Mas foi somente em 1938 que o prefeito Henrique Dodsworth resolveu reaproveitar um pedaço do antigo Plano Agache (vide box), e fazer um parque no terreno que margeia o canal. A Prefeitura chegou a comprar gôndolas no melhor estilo veneziano para passeios românticos do canal à Lagoa. Veio a mudança da capital para Brasília, a debacle carioca, as obras do Metrô, e o Jardim de Alah se tornou hoje um imenso terreno praticamente baldio, frequentado apenas por passeadores de cachorro e viciados, que obrigam a Guarda Municipal e a PM a frequentemente dispersar a formação de uma instagramável Cracolândia no local. A última reforma do Jardim de Alah, cujo nome foi inspirado em um filme de muito sucesso na década de 1930, estrelado por Marlene Dietrich, foi em 2003, na gestão do então prefeito Cesar Maia.
A PPP, lançada em janeiro, prevê que o vencedor deverá ampliar a área do parque, transformar os estacionamentos atuais em subterrâneos (com 200 vagas) e dar novos usos aos jardins, com a instalação de lojas e restaurantes, além da promoção de eventos e exposições. Tudo isso mantendo o lugar como um parque público, com ainda mais áreas verdes, incluindo o replantio das árvores derrubadas pelas obras do Metrô. A notícia logo gerou forte reação. Artistas, como as atrizes Malu Mader e Maitê Proença, e o ator e cantor Evandro Mesquita, fizeram vídeos, postados em redes sociais, convidando os moradores do Rio, especialmente de Ipanema, Leblon e Lagoa, a se juntarem à causa. Entre os argumentos da turma do contra estão a preservação da área, que é tombada, e o impacto que a exploração comercial trará ao trânsito e ao sossego da vizinhança.
“O prefeito Eduardo Paes sempre teve a ideia de fazer algo ali. E fomos provocados por Accioly, que formalizou sua proposta para a região”, conta o secretário municipal de Infraestrutura, Jorge Arraes. Não demorou, e logo surgiram outras propostas, como a do investidor Gustavo Agostini, morador das redondezas e presidente do grupo Magus, que atua no desenvolvimento de shopping centers. “O Jardim de Alah é um bem público, não é um playground exclusivo para meia dúzia que moram em prédios na sua frente”, fuzila Carlos Monjardim, presidente da Associação de Moradores de Ipanema e ex-editor do extinto Jornal de Ipanema, bairro que concentra a maior área territorial do parque. Segundo ele, a estimativa é que o vencedor invista cerca de R$ 130 milhões na recuperação. Em contrapartida, poderá explorar áreas delimitadas nos 7 000 metros quadrados para a oferta de serviços privados. Em audiências públicas, a associação já obteve conquistas importantes, como a obrigatoriedade de reconstrução da antiga creche para os moradores da Cruzada São Sebastião, a ampliação de ciclovias e uma regra para que as casas de show não possam realizar megaeventos musicais. O mercado imobiliário avalia ainda que, com a concessão, os imóveis nas proximidades terão uma valorização de quase 100%.
“Dez cabeças começaram a pensar, todas cariocas, como os arquitetos Miguel Pinto Guimarães e Sérgio Caldas, e o engenheiro especialista em meio ambiente Carlos Favoreto. Estamos há dois anos debruçados nisso, para seduzir as autoridades”, relata Accioly, sem adiantar detalhes. Os consórcios concorrentes jogam com cartas fechadíssimas. Ninguém quer correr o risco de apresentar uma boa ideia que possa vir a ser plagiada por um adversário. A manifestação de interesse privado em área pública (MIP) — procedimento comum na implementação de parcerias público-privadas como esta — que deu origem ao processo, foi suspensa em junho, quando seriam abertos os envelopes com as propostas financeiras. Os interessados alegaram que, mais importante do que a tomada de preços, é a nota técnica da avaliação das intervenções urbanísticas propostas por eles. A estimativa é de que os resultados apareçam cerca de 180 dias a partir da assinatura do contrato.
Na opinião de Monjardim, “não vai ter um turista que venha ao Rio e não queira passar um fim de tarde ou jantar no Jardim de Alah, mantido pela iniciativa privada, com boa programação permanente e segurança 24 horas. É disto que o bairro precisa, e a Prefeitura se consagrará na Zona Sul com esta iniciativa”. Já o empresário Luiz Leão, Coordenador do Grupo Coalizão Rio, que reúne algumas das principais lideranças empresariais do estado para discutir políticas públicas, e morador de umas das esquinas do Jardim de Alah, faz coro com Monjardim. “Fato. É um local maravilhoso, ligando Ipanema ao Leblon. O projeto é pedido por nós há anos. Hoje um local utilizado em sua maioria por cracudos, que portam armas brancas e assaltam pessoas de bem diariamente. Que venha um novo Jardim de Alah”. Para o desagrado de alguns poucos privilegiados, tudo indica que vem coisa boa aí.
O PARAÍSO QUE JAMAIS ACONTECEU
Perguntar não ofende: mas o Rio é mesmo uma “cidade maravilhosa”, ou um local fantástico, abençoado por Deus e bonito por natureza, onde há 400 anos se tenta organizar uma coletividade? Desde sua fundação, foram apresentados pelo menos uma boa meia dúzia de macroprojetos urbanísticos que tentaram pôr ordem na ocupação desorganizada. Um deles, proposto a Dom Pedro II em 1874, chegou ao cúmulo de sugerir derrubar a cidade aos poucos e começar tudo de novo! Mas poucos foram tão ousados quanto o que foi sugerido em 1927 ao prefeito Antônio Silva Prado Júnior pelo arquiteto francês Alfred Agache, fundador da Sociedade Francesa de Urbanistas.
Prado Júnior promoveu pela primeira vez uma ampla discussão sobre a cidade, em vez de baixar uma proposta “de cima para baixo”. Foram debatidas, por exemplo, sugestões para o transporte de massas e abastecimento de água e moradias para os moradores de baixa renda. Agache acabou contratado para fazer uma planta geral, contendo todas as mudanças necessárias e o embelezamento do Rio. Era o auge do estilo Art Déco, e o “Plano Agache” refletia essa tendência, em um período no qual Rio e Buenos Aires disputavam o título de “Paris dos trópicos”.
Mas o que o Jardim de Alah tem a ver com isso? Segundo o projeto de Agache, onde hoje é o Aeroporto Santos Dummont seria construído um enorme parque, cujo destaque seria um imenso espelho d’água semelhante à famosa Reflecting Pool do Lincoln Memorial de Washington, capital dos Estados Unidos. Para quem não ligou o nome à pessoa, é o exato local onde o Capitão América ganhou na corrida do Falcão Negro no blockbuster “Soldado Invernal”, considerado o melhor filme do Universo Marvel. Mas o “Plano Agache” era tão ousado que beirava a utopia, e apenas um fragmento deste grandioso projeto chegou a ser construído: a Praça Paris.
No fim dos anos 1930 o então prefeito Henrique Dodsworth pediu a David Xavier de Azambuja, um dos grandes nomes da arquitetura moderna do Brasil, que reinterpretasse a proposta do tal parque sugerido por Alfred Agache para a região que margeia o canal entre Ipanema e Leblon. E assim, em 1938, nascia o que hoje conhecemos como o Jardim de Alah, com jardins floridos, caramanchões e piers para as gôndolas e pedalinhos, mantendo o estilo Art Déco. Um dito popular afirma que “às vezes dar errado foi a coisa mais certa que poderia ter acontecido”. O “Plano Agache” leva a uma reflexão sobre esse adágio. Ideias para melhorar o Rio nunca faltaram. Mas, certa vez, um arquiteto usou um exemplo simples para mostrar a enormidade dos problemas urbanos da cidade. Se um mapa de Paris, com uma população de quase um terço dos sete milhões de cariocas, fosse superposto ao da capital fluminense, ele só chegaria até Botafogo, ao Sul, e a Vila Isabel, ao Norte. Só que lá, o metrô parisiense conta com 302 estações. Enquanto aqui, são apenas 41.
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