Jan Theophilo
‘Nada sobre nós, sem nós”, dizia o rapper Emicida. Durante muitos anos, o cotidiano das favelas brasileiras era restrito às páginas policiais dos jornais ou como pano de fundo dos desfiles de carnaval. Até que precisamente no dia 8 de janeiro de 2001 o ativista André Fernandes lançou o site de uma ONG batizada de Agência de Notícias das Favelas (ANF). A história correu o mundo. E apenas alguns dias depois a prestigiada agência Reuters anunciava a criação da primeira iniciativa de correspondentes sobre o dia a dia das comunidades, produzida pelos próprios moradores das periferias brasileiras. De lá para cá muito aconteceu. A ANF cresceu, lançou um jornal chamado “A Voz das Favelas”, uma editora, criou uma inovadora forma de fazer publicidade nestes guetos urbanos e até mesmo um instituto de pesquisas focado em estudos sobre a vida dos moradores destas regiões mais pobres do Brasil. Mas nem tudo foi um caminho de tijolos dourados nessa jornada.
“Nos anos 1990 eu atuava como missionário nas comunidades e presenciava constantes violações de direitos humanos. Fazia muitas denúncias e a partir delas comecei a ter contato com jornalistas que subiam as favelas. Mas percebi que as reportagens publicavam informações diferentes referentes aos fatos, dependendo do veículo. Foi quando percebi que precisava democratizar a informação das favelas, a partir do próprio morador”, conta André Fernandes. Ele apresentou sua ideia ao documentarista João Moreira Salles que, empolgado, perguntou se poderia levar a ideia ao Viva Rio, uma ONG criada em 1993 por representantes de diferentes setores da sociedade dispostos a levar uma cultura de paz às comunidades.
João Moreira Salles levou a ideia a Rubem Cezar Fernandes, presidente do Viva Rio, que adorou o projeto. “Mas ele disse que não tinha nada para conversar comigo, porque eu era muito crítico à atuação do Viva Rio, mas saquei que ele ia levar o projeto adiante”, lembra André que, precavido, lançou o site da ANF em janeiro de 2001. Alguns meses depois o Viva Rio lançou o projeto Viva Favela, uma cópia da concepção original da ANF, com patrocínio da Globo.com, que durou mais de uma década. “Com dinheiro, tudo é mais fácil, mas quando você não tem raiz, sabe como é, né? E nós temos raiz”, diz André que, decepcionado, decidiu cursar uma faculdade de jornalismo e começou a trabalhar com assessoria de imprensa. Em 2003, ele resolveu compilar suas visões em um livro chamado “Perseguindo um sonho”. “Eu estudei o mercado editorial e percebi que a gente ia precisar lançar uma editora nossa. Até porque a gente já tinha dificuldades em manter a ONG, então abrimos uma empresa para poder bancar a ANF”, lembra André.
Os minidors sociais – cartazes colados nas paredes das moradias – estão espalhados em mais de 1.500 comunidades em vários estados brasileiros
“Inventamos então um tipo de publicidade que não existia: os minidors sociais”, conta ele. Os minidors são placas de dois por um coladas nas paredes das moradias em locais de grande movimento. Metade do faturamento fica com o morador e a outra metade é revertida para os projetos da ANF. A iniciativa foi um sucesso. O primeiro grande cliente foi a operadora de telefonia Claro, seguida por muitos outros. Hoje, os minidors sociais estão espalhados em mais de 1.500 comunidades em diversos estados brasileiros.
Fortalecido financeiramente, André resolveu partir para um segundo projeto: um jornal escrito pelos moradores de favelas. Em 2006 ele começou a distribuir login e senha para colaboradores publicarem direto no site da ANF. Hoje, a ONG conta com 800 parceiros em todo o território nacional. Mas, romântico, ele queria mesmo um veículo impresso. E em 2010 procurou o Sindicato dos Bancários do Rio para tentar firmar uma parceria que ajudasse a bancar sua ideia de jornal. “Eu estava na antessala do presidente do sindicato quando o Ancelmo Gois me ligou procurando notícias. Eu disse a ele que estava ali no sindicato para acertar o lançamento de um jornal então com uma tiragem de 20 mil exemplares. Quando a notícia saiu, o sindicato não teve como dizer não” conta ele, rindo.
O primeiro colaborador da “Voz da Favela” foi o cineasta e jornalista Patrick Granja, um paulista radicado no Rio que se dedica ao fortalecimento da imprensa democrática e popular no Brasil contra a hegemonia do monopólio dos meios de comunicação. Em seguida veio Rumba Gabriel, então presidente da associação de moradores do Jacarezinho. “Rumba é um teólogo que ajudou bastante nessa época. Ele é um cara muito contundente, que escrevia contra a polícia abertamente”, diz André. Rumba chegou a ganhar destaque nos jornais com propostas controversas, como a criação de grupos de moradores armados com porretes de madeira para confrontar policiais em situações de desrespeito e violência contra moradores. Com o passar dos anos a “Voz da Favela” passou a deixar de ser apenas um veículo de denúncias e abriu espaço para temas como saúde, cultura e cidadania. “Foi uma coisa natural, porque a favela tem muito mais coisas interessantes além de casos de violência e criminalidade”, diz o ativista.
A partir dali as coisas foram crescendo exponencialmente. A nova ANF Produções organizou festivais culturais em mais de 1.500 favelas em todo o Brasil e em 2015 lançou a RAC (Rede Comunitária de Comunicação) em uma parceria com o Ministério da Cultura e faculdades de jornalismo. “Nós oferecemos um curso de três meses para turmas de 25 alunos que aprendem noções de comunicação comunitária. Certa vez, em Salvador, tivemos 189 inscritos de 88 comunidades diferentes”, conta André. A Bahia se tornou a segunda sede da ANF, graças a parcerias com o governo do estado para campanhas de cunho social e propagandas da Neoenergia em minidors. Com isso o jornal subiu para uma tiragem de 50 mil exemplares e lançou o primeiro “Manual de Redação e Estilo” para comunicadores sociais. O projeto viajou mais uma vez, agora para Sergipe, onde cresceu ainda mais e, com isso, a ONG chegou a rodar tiragens de mais de 150 mil exemplares da “Voz da Favela”.
Recentemente a ANF abriu um novo CNPJ: o Instituto de Pesquisa Data ANF, para levantar dados e pesquisas sobre as periferias brasileiras. “Já fizemos várias pesquisas sobre hábitos de consumo e, principalmente, sobre saúde mental nas periferias cariocas”, conta André. O projeto conta com três eixos: uma pesquisa propriamente dita, oferta de atendimento psicoterapêutico para mulheres vítimas de violência nas favelas e projetos de comunicação sobre saúde mental. “Porque nas comunidades não há muito esclarecimento sobre os transtornos do aspecto psicanalítico. Só nesta pesquisa entrevistamos mais de mil pessoas em 10 favelas do Rio”, diz André.
Hoje a editora da ANF já possui um robusto catálogo de livros, entre eles o segundo de André: “Novos rumos da comunicação comunitária no Brasil”; e continua firmando parcerias com empresas e órgãos governamentais, como o Ministério da Saúde. “Levamos o Zé Gotinha a Manguinhos e foi a primeira vez que o personagem esteve em uma favela”, orgulha-se André, que não esconde a satisfação com o desenvolvimento dos projetos, apesar de todas as dificuldades. “Trabalhamos o fortalecimento da cidadania. E essa era a minha maior crítica ao Viva Rio (que os cariocas chamavam jocosamente de Viva Rico). Cidadania não se vende, não se empresta, é uma conquista do cidadão. Então era um pressuposto do próprio favelado conquistar a sua cidadania. Porque ela nunca seria dada por alguém de fora, mas a partir da própria favela”, resume. Viva a favela!
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