HOUVE UMA VEZ CINCO VERÕES: TEMPORADAS PRAIANAS MARCANTES

1984: praias lotadas, com a chegada de novas linhas de ônibus

Aydano André Motta

Muitas temporadas de sol e calor se passaram, até que o Rio tivesse seu verão inicial. O hábito-emblema de ir à praia surgiu séculos após a fundação da cidade; ao longo de gerações, os cariocas mantiveram-se na terra firme. O banho de mar original foi de um português: Dom João VI. O monarca folclórico, barrigudo e avesso ao asseio atravessou o Atlântico para fugir de Napoleão, viveu aqui por 13 anos e, numa trapaça do destino, inaugurou a prática na cidade que um dia seria famosa por ela.
E por motivos medicinais. “Certa vez foi picado por um carrapato (…). Os médicos recomendaram-lhe banho de mar. Como temia ser atacado por crustáceos, mandou construir uma caixa de madeira, dentro da qual era mergulhado nas águas da praia do Caju (…). O rei permanecia ali dentro por alguns minutos, com a caixa imersa e sustentada por escravos (sic), para que o iodo marinho ajudasse a cicatrizar a ferida”, escreveu Laurentino Gomes em seu “1808”.
O mergulho desenxabido, travestido de panaceia, vigorou por cerca de um século. Mas o jogo virou gloriosamente, e, a partir da década de 1910, o Rio enfileirou estações gloriosas, de atitudes e modismos, histórias e personagens.
Entre muitos verões inesquecíveis, ‘Rio Já’ lista cinco especiais:

1917 – O verão da descoberta
Foi na segunda década do século 20 que os cariocas mergulharam na praia para se divertir. Em crônica na “Revista da Semana” do fim de 1916, João do Rio (sob o pseudônimo José Antônio José) registrou a descoberta do mar, que turbinou o povoamento de Copacabana. Mas não seria sem sofrimento – afinal, sempre foi o Rio de Janeiro. Na ensolarada sexta-feira 9 de março de 1917, o médico Mauricio França se afogou no mar agitado pela ressaca, espalhando forte comoção pela cidade ainda hesitante sobre a inovação. Premido pela tragédia, o prefeito Amaro Cavalcanti determinou a construção de seis postos de salvamento ao longo dos 3,7 quilômetros da praia – que, modernizados, espalharam-se pela orla até virarem pontos de referência.

1972 – O verão da Gal, ou As Dunas do Barato
A ditadura militar vivia sua fase mais radical, empilhando crimes nos porões contra opositores do autoritarismo – e Ipanema reagiu à sua maneira. O píer que tomou trecho da praia, para sustentar os dutos do emissário submarino, produziu dunas e virou trincheira para a transgressão e o comportamento livre. Começou pelo surfe, que uma lei maluca do arbítrio proibiu depois das 8h da manhã; e seguiu com o desbunde do movimento hippie e das experimentações variadas para corpo e mente. A liberdade sexual, a aceitação plena de preferências e atitudes, o aqui-pode-tudo imperaram naquele enclave mítico. Entre os personagens icônicos, estavam Gal Costa (que emprestou o nome às dunas, por causa de seu show “Gal a todo vapor”, no Teatro Teresa Rachel, em Copacabana), Petit, o surfista-galã que inspirou Caetano Veloso (“Menino do Rio, calor que provoca arrepio/ Dragão tatuado no braço/ Calção corpo aberto no espaço/ Coração de eterno flerte, adoro ver-te”), Evandro Mesquita, Cazuza, José Wilker, Glauber Rocha, Jorge Mautner, Caetano e Gil na volta do exílio. Começou ali o hábito de aplaudir o pôr-do-sol nas longas praias do verão. O céu pintado de laranja cobrindo o Dois Irmãos era aclamado em cena aberta, dia sim dia também. Nunca mais parou – todo verão tem.

1984 – O verão do 461
Caminho mais rápido entre as zonas Norte e Sul, o Túnel Rebouças, aberto em 1967, manteve-se exclusivo dos carros por inacreditáveis 16 anos. Até o Rio eleger Leonel Brizola (1922-2004) governador – e ele determinar a passagem de ônibus pela via. Surgiram as linhas 460 (São Cristóvão-Leblon), 461 (São Cristóvão-Ipanema) e 462 (São Cristóvão-Copacabana), aproximando os suburbanos do Atlântico. Não prestou – os moradores da Zona Sul, que desde sempre se acham donos das regiões onde vivem, desfilaram preconceito e demofobia. Deu numa reportagem histórica, de Joaquim Ferreira dos Santos, na capa do Caderno B do “Jornal do Brasil” de 4 de novembro de 1984, sob título inesquecível: “Nuvens suburbanas sobre o céu de Ipanema”. Caía fulminada pela intolerância a fantasia da praia inclusiva, da hospitalidade gratuita. Mas a intolerância perdeu – os ônibus estão aí até hoje, agora com a companhia do metrô.


1988 – O verão da lata
Ainda na primavera de 1987, apareceram boiando, em praias de Rio e São Paulo, latas grandes, jogadas do navio australiano Solana Star. Dentro, havia maconha de excelente qualidade. O destino da carga seria Miami, após uma troca de embarcação no litoral norte fluminense, mas a operação vazou e, para se livrar do flagrante, a tripulação atirou tudo no mar. Durante algumas semanas – já no início do verão –, as latas chegaram à costa, para começar a festa. Muitas pessoas que encontraram os recipientes jamais tinham usado maconha. Alguns botaram fogo, para espantar mosquitos, outros usaram a erva para cozinhar. O grande consumo “convencional” foi na Zona Sul do Rio, enfeitiçada pela qualidade da droga. Virou até gíria: “da lata”, como sinônimo de alta qualidade.

2023 – O verão da volta
Como o resto do planeta, o Rio mergulhou no buraco profundo da pandemia e atravessou dois verões com a nuvem pesada e tempestuosa da Covid-19 encobrindo o sol. Mas, com a vacina, passou – e a estação de 2023 materializou o reencontro da terra carioca com sua estação típica, em verdade seu destino. Além das praias novamente lotadas, o turismo renasceu, com números contundentes, garantindo a grandiloquência que fascina os nativos. A ocupação dos hotéis bateu 96%, o percentual de visitantes estrangeiros atingiu 35% do total e a arrecadação de ISS (Imposto sobre Serviços, tributo municipal) do turismo chegou a R$ 64 milhões, crescimento de 20% em relação ao verão anterior. O Carnaval voltou a seu lugar no calendário – com o baile todo, blocos e escolas de samba – retomando o status de ápice da temporada de calor.