Bruno Agostini
Recentemente, o festival “Comida di Buteco” se tornou Patrimônio Cultural, Gastronômico e Imaterial do Estado do Rio de Janeiro, através de Projeto de Lei sancionado na Assembleia Legislativa. Assim como vários bares da cidade também são considerados Patrimônio Cultural Carioca, honraria concedida pela Prefeitura do Rio a casas tradicionais, como Adonis, Bar Urca, Bracarense, Jobi, Bar Brasil, Paladino, Casa Urich, Pavão Azul e Adega Pérola, entre muitos outros.
Botequim está na moda. Hoje, a cidade é tomada de eventos dedicados ao tema. Há chefs com formação em escolas importantes de gastronomia atuando nas cozinhas desses estabelecimentos. E, de uns anos para cá, esses ambientes que eram frequentados basicamente por homens, passaram também a receber mulheres desacompanhadas, o que raramente acontecia.
— Eu acho que o botequim se popularizou e se democratizou, porque antes mais restrito a homem, era aquele negócio de pé-sujo mesmo, só quando as mulheres começaram a vir sozinhas. Porque, sempre teve mulher? Teve, mas vinham com o marido, ou grupos de amigos. Mas mulher vindo sozinha, vindo para tomar uma cerveja, ou em dupla, e mesmo uma mesa só de mulheres, era muito mais difícil. E quando houve essa mudança é que realmente o botequim cresceu – diz Sérgio Santos, hoje à frente do Pavão Azul (e outros Pavões de Copacabana). – Foi a partir de 2002, quando as mulheres assumiram aqui que o Pavão cresceu – completa, em referência ao trabalho de sua mãe, Vera Afonso e da tia, Beth Afonso, o sucesso da casa.
Mas, afinal, o que é um boteco?
Para responder a pergunta, procuramos vários especialistas no assunto. Como João Paulo Campos, do Velho Adonis, em Benfica, que foi ressuscitado por ele.
— Pra mim, boteco tem que ser aquele bar em que o dono é amigo dos clientes, principalmente, e os clientes fazem parte da vida do dono do botequim. Vão lá para ficar conversando com ele. Tem que ter uma boa vitrine, que sirva um bom prato do dia. Isso dá a sua própria identidade da casa. E o bar, acima de tudo, tem que ser aquele lugar democrático, onde todos possam vir, e ser servidos com a maestria do dono, do cozinheiro, do garçom. Esse é o autêntico botequim – diz ele, que fez carreira em casas como Fasano e Antiquarius.
Outro empresário do ramo, e frequentador assíduo desta categoria de estabelecimentos com a cara do Rio, Kadu Thomé, do Bracarense, no Leblon, segue raciocínio similar.
— O conceito principal não muda. O boteco é o ponto de encontro. Ele tem uma função meio que de praça pública, sabe? Um lugar onde todas as pessoas podem ir, e vão para discutir sobre política, futebol, moda, cabelo, sei lá. É o lugar onde a vida acontece.
O que vem mudando é o nível de exigência, né? Trabalho com isso desde 2000. Antigamente, se o cara tinha um bom chope, um bom bolinho, um bom petisco, estava tudo resolvido. Hoje em dia, se o cara não for asseado, com banheiro impecável, e atendimento bacana, está fadado à falência. E o pessoal vai buscando diferenciais para poder se destacar. Gosto muito de entrar naquela birosca antiga, que mexe com a memória afetiva. Isso é muito bacana – comenta Kadu, que hoje está mais em São Paulo, no comando do Braca Bar.
Vitorioso em edições do Comida di Buteco, e destaque em jornais, revistas e programas de TV em todo mundo, David Bispo chamou a atenção para o morro Chapéu Mangueira, no Leme, através de sua birosca premiada.
— Fala-se muito na questão da gourmetização. Se for para melhor, eu não tenho nada contra. Trazer produtos melhores, apresentação melhor, mas sem perder a essência, não tem problema. O boteco tem que ter a presença do dono. A presença da família, eu fico mais focado nisso, em não perder as raízes.
Resumindo: comida de boteco é culinária de raiz, é coisa nossa, brasileira. Os portugueses trouxeram os botequins para cá, e essa cultura contaminou todo o Brasil, e todo mundo quer se contaminar – conta o dono do Bar do David.
Toninho do Bar do Momo, na Muda, praticamente nasceu dentro do bar da família, outra casa que coleciona prêmios.
— Boteco faz parte da minha história, né? Começou a ser chamado assim, aqui no Rio, tem uns dez anos. Eu fui criado dentro de um botequim, atrás do balcão do botequim. Vendo pessoas, e convivendo com elas.
É o espaço mais democrático do mundo, onde o sujeito com formação acadêmica convive com outros que não tiveram oportunidades na vida, e discutem em pé de igualdade.
A característica do Bar do Momo é ser um ambiente familiar. Lá estamos eu, meu pai, minha mãe, minha irmã. Uma das características dos botequins antigos do Rio era a família, que sempre estava trabalhando atrás do balcão. E a gente atende os clientes como se fossem também da nossa família. A grande sala de estar do carioca é o botequim. É um lugar de acolhimento, muito mais do que um lugar de comida e bebida. Um lugar de encontro, um lugar para você guardar na sua memória afetiva – lembra o cozinheiro, que hoje chefia uma rede. — O Bar do Zeca é isso também, mas em maiores proporções. Para levar para o Brasil inteiro. Estamos em expansão. Já abrimos em São Paulo, com essa ideia, de mostrar para o resto do Brasil o que é a cultura do boteco carioca – continua Toninho do Momo, como é conhecido.
Com formação no Bar Xavier, de seu pai, na Tijuca, em 2010 Cezar Cavalieri abandonou a faculdade de Direito para ir para Londres, onde começou a sua carreira na cozinha.
— O boteco pra mim é um lugar de comer e beber e ficar à vontade. É um lugar em que se come e se bebe sem se gastar uma fatia importante do salário. É um lugar em que se está na rua, mas deve-se sentir em casa! O boteco, verdade seja dita, é uma encruzilhada. O botequim é uma fresta, um respiro. É um lugar em que se vai para encontrar amigos e amigas para celebrar feitos ou dividir angústias – escreveu o dono do Botica, em Botafogo, um sucesso de crítica e de público. — É um lugar de encontros e também de solidão. É um lugar em que se fala sobre tudo, mas o silêncio também tem seu lugar, e deve ser respeitado. É um lugar em que um sujeito assovia uma melodia e um outro, do outro lado do balcão, complementa com um batuque improvisado… e quiçá um terceiro ainda emenda uma letra, e daí faz-se um samba.
É um lugar pra se ir depois de um dia difícil de trabalho, ou também pra se curtir um dia de folga relaxado. É um lugar pra se ir depois de ver seu time ganhar ou perder no Maracanã. O boteco também é um lugar em que há um pouco mais de espaço para a tradição do que para a inovação. E ai está um saboroso desafio: tentar ser criativo e ao mesmo tempo propor um produto facilmente legível. O juiz apita, a bola rola, e esse jogo só se ganha com muito suor e perseverança – conta o criador de acepipes como salpicão de língua e salada de feijoada (ambas deliciosas receitas, que ficam no balcão refrigerado do bar).
Edu Araújo tem várias operações na cidade, de perfis variados, como Quartinho, Pope, Dainer e Café 18 do Forte. Mas está por trás também de duas biroscas que já nasceram um sucesso: o Chanchada, em Botafogo, e o SuruBar, naquela zona boêmia entre a Lapa e a Glória.
—Botequim hoje, seja na Zona Sul, no Centro, Baixada ou Zona Norte, tem ganhado um lugar cada vez maior de experimentações, seja na gastronomia, seja na coquetelaria. Acho importante esse movimento, mas me acende uma luz amarela, pois estabelecimentos assim, quando era criança e meu pai me arrastava para aliviar o peso dos esporros da minha mãe, sempre foi um simples palco da rotina de um bairro, onde o objetivo primordial e inicial é a conversa, nada pode atrapalhar esse movimento, o papo, e esse papo não é furado, ele tem cadência, tem motivo, tem início, mas não tem fim, o dia seguinte serve para equilibrar e manter o ciclo da rotina.
Por assim dizer, um botequim de bairro tem café da manhã, petiscos, almoço de vitrine, chocolate para o filho que veio obrigado, cachaça forte para as mágoas apressadas, cachaça boa para os entusiastas, cerveja ou chope para constância da conversa.
Não se falava muito sobre o que é servido num botequim, a não ser para esculhambar ou falar bem da comida corrente, com isso o estabelecimento ia evoluindo, ou não no ritmo daquele bairro, ou rua. Com a vida corrida e muito trabalho, o papo já não é mais o grande precursor no bar, o vazio criou espaço para aumento das críticas e elogios sobre produtos e o papo se voltou para o que se vê na mesa do botequim, e não mais para a vida dos que ali estavam. Hoje, espero que estejamos caminhando para o equilíbrio, onde a vida nossa de cada dia seja o real assunto de um bar, mas que a comida e bebida não passem batida, assim todo mundo ganha, o estabelecimento e as almas – filosofa.
Subprefeito da Tijuca, Felipe Quintans é profundo conhecedor de bares, no Rio, em todas as regiões, e do mundo, sobretudo da Galícia, origem de sua família, região famosa pelos seus bares, que escreveu o seu recado:
— Boteco pra mim é onde se bebe cerveja muito gelada e é necessário ter pelo menos uma carta modesta de bebidas quentes. Comida caseira de estufa com preço acessível para a classe trabalhadora. Na minha visão de boteco, não se deve ir em grupo, marcar aniversário ou gargalhar. No boteco se conversa baixo, caso vá com outra pessoa. E se for sozinho fale três vezes apenas:
1. Bom dia, me dá uma cerveja, por favor.
2. Te devo quanto, chefia?
3. Obrigado e abraço — foi a mensagem que enviou, via WhatsApp, por onde se desenrolaram as conversas desta reportagem.
Outro chef que tem o toque de Midas, e transforma seus negócios em sucesso, é Lucio Vieira, do Lilia, que tem indicação de “Bib Gourmand”, do Guia Michelin, criador dos três Labutas: Bar e Braseiro, no Centro, e Mar, na Glória.
— Falar de boteco é bom demais. É o lugar onde se come, e se bebe, e também é um lugar extremamente acolhedor, acessível e diverso. É o lugar onde você vai encontrar o pessoal da construção civil, o engravatado advogado, o médico, o cozinheiro saindo do expediente. E esse é o lugar comum de todas essas pessoas, de todas essas classes, de todas essas profissões. Esse é o boteco para mim, é o lugar onde você vai, se quiser ir sozinho, para pensar um pouco na vida. Se quiser ir em grupo, você vai. Um lugar democrático, acolhedor, onde se come, e se bebe de maneira simples, e da maneira que se gosta essencialmente – comenta.
Elia Schramm é mais um cozinheiro com sólida formação, acadêmica e profissional, que faz muito sucesso com suas casas, a Babbo Osteria e o Sichou, em Ipanema, e a Scuola, em Botafogo. Apreciador de botecos, em breve vai ter um para chamar de seu, na Rua Real Grandeza: vai ser o Jurubeba.
— Sempre que falar de algo assim é bom fazer uma digressão histórica. A palavra boteco vem de botequim, que é o diminutivo de botica. Aliás, esse é um dos meus botecos prediletos, o Cezar faz um trabalho excelente ali. Hoje, como a gente entende, significa um bar pequeno, normalmente, onde você serve comida e bebida a preços democráticos. Isso é o que eu acho que tem que ser. Essa é a palavra: tem que ser um lugar democrático, um lugar do povo, um lugar onde as pessoas possam acessar, e curtir, onde vão se encontrar, com aquilo que o brasileiro, principalmente o carioca, tem de melhor, a informalidade, um clima alegre. Por que? Porque as pessoas estão todas relaxadas, aí você cria ali uma energia ligada ao bom-humor, o que torna um lugar descontraído, um lugar animado.
Um lugar com comidas que remetam à tradição dos antigos botequins, à comida dos portugueses, mas também dos escravizados. Um lugar de encontros, onde a cordialidade sempre tem que imperar. Todo mundo tem o seu de estimação. As pessoas variam menos os botecos do que os restaurantes, né?
No Jurubeba, eu vou trazer exatamente esse espírito. Uma gastronomia que vai beber no que a tradição dos botecos tem de melhor pra oferecer. Obviamente com meu toque, a minha sensibilidade. É isso – diz o cozinheiro.
Então, resumindo: o boteco é um lugar de encontros, democrático, acolhedor, onde comemos e bebemos bem, onde podemos ir sós, ou acompanhados. Com a cara do Rio. Fácil entender porque amamos isso.
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