FERNANDA TORRES: DA TIJUCA PARA O MUNDO

Fernanda Torres wins the Best Performance by a Female Actor in a Motion Picture – Drama for “I'm Still Here" during the 82nd Annual Golden Globes held at The Beverly Hilton on January 05, 2025 in Beverly Hills, California..

Aydano André Motta

A iluminada ciclovia em volta da Lagoa Rodrigo de Freitas se estende por 7,5 quilômetros, oferecendo alguns dos cenários mais deslumbrantes do Rio: as montanhas e a floresta que sobe por elas, o Cristo Redentor e o Morro Dois Irmãos – além do próprio espelho d’água, sua vegetação e fauna. A depender da hora, pode-se topar ainda com a carioca que é a primeira ganhadora brasileira do Globo de Ouro de melhor atriz: Fernanda Torres. 

Diariamente, pela manhã, ela desce de seu apartamento, na Avenida Epitácio Pessoa, para caminhar ou pedalar na ciclovia, ritual comum a milhares de cariocas. Nascida na cidade, a atriz – filha de dois ícones da cultura brasileira, Fernanda Montenegro e Fernando Torres – viveu em regiões diferentes, até encontrar na Lagoa a morada ideal com os dois filhos, Joaquim e Antônio, e o marido, Andrucha Waddington.  

A relação dela com o Rio também influencia seus trabalhos e a cidade serve de cenário para várias produções. Na última, o aclamado “Ainda estou aqui”, Fernanda vive Eunice Paiva, mulher do ex-deputado Rubens Paiva, desaparecido em 1971, num dos crimes mais famosos cometidos por agentes do Estado durante a ditadura militar. A casa no início do Leblon, no número 80 da Avenida Delfim Moreira (esquina com Almirante Pereira Guimarães), não existe mais – no lugar está um desses prédios envidraçados, modernosos. Assim, a locação levou o elenco para um imóvel na Urca, bairro meio parado no tempo, ideal para produções de época. 

Nos intervalos das gravações, a atriz costumava passar o tempo fazendo crochê, hábito adquirido há anos, nos estúdios de TV. Por coincidência, ganhou uma parceira na tarefa, a colega Valentina Herszage, que vive uma das filhas de Eunice no filme. “Cheguei com meu kit e ela carregava o dela. O trabalho manual nos ajuda com a concentração”, explica. 

As duas costumavam se sentar lado a lado, às vezes em silêncio, outras falando um monte, enquanto teciam vestidos e blusas. Um dos assuntos frequentes, claro, era o Rio. “Fernanda é carioca como eu, ambienta suas histórias na cidade, que faz parte da obra dela”, comenta Valentina. 

A visão de quem está próximo constrói uma pessoa de facetas diversas. “Ela é muito risonha, conversadora, mas por vezes se isola em silêncio, buscando se concentrar para alguma cena”, descreve a jovem atriz. “Nunca é do mesmo jeito, mas na interação está sempre bem humorada e faz a gente rir horrores! E particularmente me impressiona pelo foco”, completa. 

A concentração de Fernanda Torres também aparece nas caminhadas pela Lagoa. De fone (com fio, como os incas e os maias) no ouvido, chapéu para proteger a pele muito branca, quase sempre dá a volta completa sem parar. Evita interações e normalmente tem sucesso, dentro da bula carioca de normalizar as celebridades que surgem no dia a dia. 

A cruzada pela saúde prossegue na ginástica em casa. Com a assessoria do personal trainer Chico Salgado, ela transforma a sala em academia, praticando musculação, yoga e boxe. Naturalmente magra, Fernanda aprendeu a urgência de fortalecer os músculos, ainda mais com a proximidade dos 60 anos, que ela completa no próximo 15 de setembro. “Quando era mais nova, vivia na sanfona da dieta e da engorda”, narrou, à revista “Quem”. “Tinha em torno de 20 anos, e um namorado me recomendou malhar. Passei por 50 modalidades, até que achei a yoga e, depois, a musculação. Não tem escapatória, precisa malhar!”, prega. 

A concentração de Fernanda Torres também aparece nas caminhadas pela Lagoa. De fone (com fio, como os incas e os maias) no ouvido, chapéu para proteger a pele muito branca, quase sempre dá a volta completa sem parar. Evita interações e normalmente tem sucesso, dentro da bula carioca de normalizar as celebridades que surgem no dia a dia 

O principal cômodo do apartamento na Lagoa é o escritório, onde Fernanda Torres exerce outro ofício pelo qual ganhou reconhecimento nacional: o de escritora. Trabalha na mesa estategicamente de frente para janela, ao lado do quarto, nos fundos do imóvel, a parte mais silenciosa, com a vista opulenta da Mata Atlântica que (ainda) ocupa a encosta. “Sou sociofóbica”, resumiu, rindo, numa entrevista ao GNT. “Tenho necessidade muito grande de me isolar”. Ali, consegue, cercada de memórias e muitos livros, cuidadosamente organizados na estante herdada do avô, o médico Manuel Torres. Bonecos temáticos anunciam o gênero das obras: Shakespeare na parte de teatro; Einstein na de ciência; Napoleão na prateleira de história. 

No “Café com ideias”, programa de Gabriel Chalita no canal do Sesc-RJ, ela descreveu, com o proverbial bom humor, sua viagem pelas letras. “Aos 30 anos, me arrependi de ser atriz e resolvi virar escritora. Comecei a escrever crônicas, mas como nunca fiz universidade, minha formação prática é um queijo suíço, cheia de buracos”, brincou, lembrando a educação básica, no Instituto Souza Leão, escola de ensino experimental construtivista. ”Graças ao colégio, li ‘O tempo e o vento’, de Erico Verissimo; ‘O cortiço’, de Aluísio Azevedo; ‘Dom Casmurro’, de Machado de Assis; e ‘Capitães de areia’, de Jorge Amado”, entre outras obras fundamentais”, escreveu, em uma coluna na “Veja Rio”, em 2017.  

“Copacabana é o purgatório da terceira idade”

A versão escritora surgiu em 2007, pelas crônicas. Sete anos depois, ela publicou o primeiro romance, “Fim”, que vendeu mais de 200 mil exemplares, foi traduzido para sete países e, adaptada pela autora, virou minissérie de 10 capítulos no Globoplay. Na obra, aliás, o Rio vira personagem – a trama se desenrola em Copacabana, onde moram os protagonistas. “Copacabana é o purgatório da terceira idade. Foi icônico nos anos 1950 e 60, e se transformou na salada geral brasileira, com rico, pobre, aposentado, LGBTQI+ tomando sol do lado de viúvas da ditadura”, ela descreve. “É puro suco de Brasil, de todas as classes do Brasil. O livro e a série falam da última geração de machos criados livres, que floresceram e decaíram no bairro. Não havia lugar melhor”. 

Fernanda tem outra origem, expressa em seu perfil no X, o ex-Twitter. Lá, ela se chama @atijucana, referência ao bairro de parte infância. (Inegociavelmente progressista, não posta na rede de Elon Musk desde 2012, apesar de ter quase 400 mil seguidores.) A vitória no Globo de Ouro virou homenagem na temporada carnavalesca. No domingo 12 de janeiro, o bloco Braba Igual à Mãe saiu pela Rua Padre Elias Gorayeb, na Tijuca, Zona Norte, onde a atriz cresceu. O saxofonista Thales Browne, criador do bloco, explicou a escolha do tema, que homenageou também Fernanda Montenegro. “Assim como a Fernanda Torres, sou tijucano. Esse bloco é uma homenagem a ela, à música brasileira e ao Carnaval. Terminamos em frente ao busto do Rubens Paiva [localizado na Praça Lamartine Babo, diante do quartel do 1º Batalhão de Polícia do Exército]”. 

A influência da mãe – provavelmente a mais importante atriz brasileira de todos os tempos – está presente o tempo inteiro. A filha é a primeira a reverenciar sua própria ancestralidade, do jeito bem-humorado, que marca seu estilo. “Não tenho a força da minha mãe. Sou amante do ócio criativo”, define-se. “Faço crochê, pinto, desenho, toco um piano ruim. Tento comer direito, e peco, mas pouco”, garante, no despojamento típico dos cariocas. 

Fernanda estará de volta à rotina da Lagoa somente em março, após a temporada de premiações cinematográficas. Na bagagem, estará o Globo de Ouro e, sonhar não custa nada, o Oscar. Assim, chegará ao auge o orgulho pela atriz natural do Rio de Janeiro, que uniu os brasileiros.