Aydano André Motta
Vem aí um filme sobre a trajetória de dois totens da luta contra a ditadura inaugurada em 1964, José Dirceu e Vladimir Palmeira – e vai nascer na Região dos Lagos, a partir da experiência vivida por José de Abreu em Maricá. À frente de iniciativas culturais na cidade, o ator de 78 anos concebeu a produção a partir de sua cinquentenária amizade com os dois emblemas da esquerda brasileira. “José Dirceu é meu comandante”, avisa, sem rodeios.
Mas terá pegada diversa do habitual, quando se aborda a heróica luta contra o arbítrio nos anos de chumbo. “Foi a nossa geração que tirou o sapato e trocou pelo topa-tudo, um tênis grande da Alpargatas, baratíssimo, de lona com sola de borracha que durava a vida inteira. Topa-tudo era o sapato da passeata, era o sapato da esquerda”, relembra o artista, dando o tom da obra.
“A gente trocou a calça de vinco pelo jeans, sentou no chão, deixou o cabelo crescer. Vieram a minissaia, a pílula anticoncepcional, a grande revolução dos costumes”, acrescenta ele. A revolução comportamental no bojo da luta pela democracia e pelo socialismo, o proibido-proibir, o pensamento que emergiu na França em maio de 1968 serão o pano de fundo do filme.
A produção atesta a inesgotável energia de José de Abreu a serviço da ideologia de uma vida inteira. Autoassumido Lulista de carteirinha (“O maior político que a gente já teve”), ele encarna permanentemente o guerreiro em defesa dos governos petistas, papel que o transformou em grande influenciador nas redes sociais, a ponto de enfurecer Bolsonaro e a direita brasileira. Rendeu ainda 19 derrotas em processos judiciais, mas tudo certo, a luta continua.
A relação com Maricá ostenta frutos mais atuais. O ator dá aula de teatro na Escola Aderbal Freire-Filho, com parceiros arregimentados na UniRio e na CAL (Centro de Artes de Laranjeiras, formados de gerações de atores). “A receptividade está enorme, os professores adoraram o grupo que selecionei, com 30 de 19 a 70 anos”, festeja.
A viagem pelas artes cruza as fronteiras e desembarca em Cuba. Abreu trabalha na intermediação de um convênio com a Escola de Cinema de lá, a partir de encontro que teve, na ilha caribenha, com o deputado Washington Quaquá. Além disso, articula parceria com o Balé Nacional cubano para a implantação de uma filial em Maricá.
A vida segue a pleno vapor para o paulista (que muitos tomam por gaúcho) casado há 7 anos com a maquiadora Carolynne Junger, com cinco filhos e cinco netos. Uns mais ativistas, outros menos – mas todo mundo de esquerda, porque, ensina o aforismo, quem sai aos seus não degenera.
Ao longo de duas horas, José de Abreu viajou pela própria trajetória, em emocionante entrevista à ‘Rio Já’:
Rio Já: De onde vem sua consciência política?
José de Abreu: Fui criado no interior de São Paulo, numa cidade muito pequena, Santa Rita do Passa Quatro, lugar que ficou parado no tempo, e hoje é bom porque não tem fábrica nem poluição. Tinha 13 mil habitantes quando eu morava lá (hoje são 28 mil). Mudei para a capital com 14 anos, mas não tinha consciência política – ouvi o discurso do João Goulart na Central do Brasil na casa de um milionário paulistano que tinha fazenda em Santa Rita. Senti uma revolta muito grande dos ricos, e acho que foi a primeira vez que pensei em política. Logo depois veio o golpe e fiz a relação entre o discurso das reformas de base do tal do Jango com a chegada da ditadura, em 1º de abril de 1964.
Rio Já: Começou aí?
José de Abreu: Entrei na Faculdade de Direito da PUC de São Paulo em 1966, e foi uma porrada. Era na Rua Montalegre, em Perdizes, prédio muito antigo, espécie de convento, com aquele quadrado onde veste o claustro, mas na frente tinha um gramado. No primeiro dia de aula vieram os dirigentes do centro acadêmico recepcionar os calouros. O presidente era José Dirceu de Oliveira e Silva, e de cara houve afinidade muito grande entre a gente. Tinha sotaque de caipira, ele também; ele é de Passa Quatro, sou de Santa Rita do Passa Quatro. Tinha outro calouro, o José Mentor, também do interior de São Paulo (futuro deputado federal pelo PT) e a gente criou uma turminha.
Rio Já: E a carreira artística?
José de Abreu: José de Abreu: Entrei no Tuca, o grupo de teatro da Universidade Católica. A última coisa que eu fazia era ir à aula. A lista de presença não ficava com os professores, que eram celebridades como Franco Montoro e não iam ficar fazendo chamada. Aí, a secretaria passava a lista de presença, e sempre tinha o sub do sub, meio corrupto, eu trazia goiabada de Santa Rita e ele sempre me deixava assinar. Lembro do Franco Montoro, que lecionava Filosofia do Direito, quando me viu no dia do exame oral: “você tem certeza que está na sala certa?” Realmente a faculdade começou a perder o sentido, porque a luta política ficou cada vez maior.
Rio Já: E mais pesada…
José de Abreu: Em 1968, teve a morte do Edson Luiz Souto, no restaurante Calabouço, aqui no Rio. Vim representando a PUC no enterro, conheci o Vladimir (Palmeira), o Jean Marc von der Weid e o Luiz Travassos, então presidente da UNE. Dirceu era da dissidência do Partidão e o Travassos da dissidência da AP, organização que dominava o movimento estudantil nacionalmente.
Rio Já: Você chegou a ser preso?
José de Abreu: Fui preso entre os 780 estudantes no Congresso da UNE, em Ibiúna, do qual participei da organização.
Rio Já: Apanhou ou foi torturado?
José de Abreu: Não. A gente era estudante, fazia passeata, até queimava carro, mas só levava cascudos, não tinha choque elétrico, pau de arara… Até na porrada tinha uma elite. Mas cheguei a ir para o presídio Tiradentes, perto da boca do lixo, no qual ficavam as prostitutas. Aí eles trancaram as putas no primeiro andar e a gente ficou no terceiro. Numa noite nos botaram num ônibus sem janela e levaram para o Carandiru. Fiquei quase três meses. Quando minha mãe me viu no meio daquele monte de presidiário, quase enfartou ali mesmo.
Rio Já: No período mais pesado da ditadura, você continuou na militância?
José de Abreu: Como apoio logístico. Vim para o Rio, fugido de São Paulo, porque saí no jornal invadindo o Citibank. Houve uma invasão do Mackenzie pelo CCC, o Comando de Caça aos Comunistas. O objetivo era acabar com aquele enclave da Rua Maria Antônia, onde ficavam três faculdades, que formavam uma resistência à ditadura. A briga durou três dias e acabou com mais um secundarista assassinado com tiro no peito. Saímos em passeata, queimamos 12 carros da polícia. Quando quebrei o Citibank, um repórter do Estadão me publicou na capa do Jornal da Tarde. O vidro caindo, quebrado, e meu rosto em primeiro plano, enorme. Por causa disso, vim para o Rio.
Rio Já: Na fase mais aguda do regime, o que você fez?
José de Abreu: Depois do AI-5, fui trabalhar na IBM, olha que coisa. Passei num concurso para ser representante comercial, vendia máquina de escrever elétrica. Ganhava bem, tinha um DKV Fissori, um dos carros mais caros na época, e transportava companheiros. A IBM inventou o crachá para evitar que terroristas, como chamavam os guerrilheiros (como eu prefiro), entrassem nos edifícios. Era chiquérrimo: eu de Fissori, terno, gravata, crachá da IBM no peito, a maior barra limpa. Depois, começaram a me mandar todo fim de semana para São Paulo. Parava o carro na Lapa, abria o porta-malas e virava os retrovisores até escutar o porta-malas fechando. Ia para São Paulo e parava perto do Presídio Tiradentes; abria o porta-malas, vinha uma pessoa, tirava alguma coisa, que nunca vi. Anos depois soube que transportei dinheiro do cofre do Adhemar (de Barros, ex-governador de São Paulo, que continha US$ 2,5 milhões e foi roubado por organizações de oposição à ditadura). Transportei muitos daqueles dólares, sem saber.
Rio Já: Como o Fernando Gabeira no “O que é isso, companheiro?”, você também faz autocrítica?
José de Abreu: A gente era utópico, sonhador. É um carma você ter consciência, não conseguir deixar de agir numa situação de anomalia como aquela. O AI-5 acabou com o habeas corpus, é inimaginável um estudante de Direito aceitar isso. Mas tenho um lado meio cristãozão, se estivesse com um PM na minha frente, não ia matá-lo, como aconteceu com outros companheiros.
Rio Já: E a carreira de ator?
José de Abreu: Eu me dividia entre a militância e o teatro. Fiz “Morte e Vida Severina”, no Tuca; o “Sítio do Picapau Amarelo”, e, no cinema, “Anuska, manequim e mulher”, com Francisco Cuoco, Dina Sfat e Bibi Vogel, quando ganhei meu primeiro salário. A estreia profissional no teatro foi em “Electra”, de Sófocles. Comecei com uma tragédia grega!
Rio Já: Chegou a ir para o exílio?
José de Abreu: Fui para a Europa em 1972 e voltei para Pelotas (RS) em 1974, onde dei aulas de teatro na Escola Técnica Federal da cidade. Com dois processos na Lei de Segurança Nacional, virei professor. Usava cabelo até os ombros, vindo de Londres, totalmente riponga. O Dops tinha editado um livrinho com a foto da gente, mas tirei atestado de bons antecedentes para entrar na IBM. As forças de repressão faziam merda a rodo.
Rio Já: E a volta ao Rio?
José de Abreu: Uma produtora do Rio de Janeiro precisava de dois atores gaúchos para um filme e os críticos foram unânimes em citar meu nome. O diretor, o argentino Carlos Hugo Christensen, fazia um filme baseado no conto “A intrusa”, de Jorge Luis Borges. Fiquei como protagonista, ganhei o Kikito de ator no Festival de Gramado e fui contratado pela Globo lá. Assinei meu primeiro contrato em novembro de 1980.
Rio Já: Você é mais um daquela frase do Roberto Marinho, “dos meus comunistas, cuido eu”?
José de Abreu: Contam que no início a Globo patinava e o Walter Clark, antecessor do Boni, disse ao Roberto Marinho: “Quer estourar? Começa a contratar comunistas. Ninguém está trabalhando, porque a censura não deixa”. Aí o Boni botou esse pessoal no limite da criatividade, com a exigência absurda do tal padrão Globo de qualidade. Hoje em dia, só se faz com amor, ninguém mais grita na Globo, porque será demitido. E o Boni fala: “quando chamava de filho da puta, não era você, era seu trabalho”. Prefiro o amor, mas já fui tratado na porrada e o resultado foi maravilhoso.
Rio Já: Você nunca temeu que a militância pudesse atrapalhar sua carreira?
José de Abreu: Uma vez, encontrei o Lula em São Paulo, no governo da Dilma, e ele me falou: “acho que você está passando do ponto, a Globo vai te demitir”. Tempos depois, encontrei o João Roberto Marinho (um dos donos da emissora) e contei a conversa. O João falou que não aconteceria por três motivos. “Primeiro, você é um puta de um ator; segundo, você é um puta de um ator da Globo; e terceiro, você é a prova física de que a Globo não interfere na vida dos seus contratados. Você não fazendo nada que seja contra a nossa norma de comportamento social. Você é um cidadão brasileiro”. Foi a única vez que tive esse tipo de conversa, o que me deixou mais seguro.
Rio Já: Você nunca teve medo?
José de Abreu: Às vezes, sim, mas o medo é inerente ao ser humano. O negócio é não ser dominado por ele. Saí da Globo como todo mundo, com essa coisa de obra certa (contratos para uma produção específica). Fui demitido junto com o Antônio Fagundes e o Tarcísio Meira. O Tarcísio era centro-direita, no mínimo, odiava o (ex-presidente do STF) Joaquim Barbosa porque estava demorando a botar o Lula na cadeia. Pelo motivo contrário!
Rio Já: Artistas como Chico Buarque, que sempre esteve no mesmo lugar, vão na sutileza. Você bate boca nas redes sociais.
José de Abreu: Tenho sangue italiano. Minha mãe era italiana, barraqueira. E falou mal do Lula, a bola é minha. Falou mal da Dilma, a bola é minha. Falou mal do Zezinho (Dirceu), a bola é minha. Não tem conversa. O Geddel (Vieira Lima, ex-deputado) falou uma merda qualquer da Dilma e dei-lhe uma porrada: “vai para a cadeia, vagabundo”. Ele respondeu que ia encontrar minha mãe. Três meses depois, estava na cadeia. Encontrou a mamãe e ficou em cana um tempão.
Rio Já: Isso nunca atrapalhou pessoalmente?
José de Abreu: Só quando me processam, perco todos, porque a justiça é mais à direita.
Rio Já: Você não é mais réu primário?
José de Abreu: Sou, porque nunca é no criminal. Eles pedem grana. Paguei a primeira, mas alguém fez uma vaquinha e me devolveu o dinheiro. Dei metade ao Retiro dos Artistas e a outra a uma entidade que cuida de crianças com câncer em Santa Maria. Teve uma que perdi e em 12 horas levantei o dinheiro. Aí virou moda me processar. São 19 processos. Mas a lista é maravilhosa: (Deltan) Dallagnol, (Silas) Malafaia, o Véio da Havan, Diogo Mainardi, Mário Sabino. Pessoal legal, bacana. É uma lista que dá currículo.
Rio Já: Quando Bolsonaro venceu, deu vontade de desistir do Brasil? Qual foi a sua reflexão?
José de Abreu: Primeiro, uma tristeza infinita. Mas começa lá atrás, tudo isso é uma série de consequências. A direita foi dando passos cada vez mais largos. A prisão do Lula foi a pior coisa que podia ter acontecido. A vitória do Bolsonaro foi consequência. Os caras se organizaram bem. Melhores do que a gente.
Rio Já: Você optou por um exílio voluntário?
José de Abreu: Fazia uma novela e ia morar fora. França, Grécia, Nova Zelândia, Los Angeles… Quando Bolsonaro ganhou, eu não podia sair na rua porque era pau toda hora. Uma noite, estava jantando num restaurante japonês e sentou um cara do meu lado: “carioca filho da puta, flamenguista nojento, favelado, petista, ladrão da Lei Rouanet. Respondi: “sou paulista, do que você está falando? Se você está me xingando é porque me conhece pelo meu trabalho, como posso ser vagabundo? Você me conhece porque trabalho na Globo”. Aí dei uma cuspida e foi um auê dos infernos. Não teve a cuspida na mulher, porque eu estava já sem cuspe (risos). A menina que estava comigo, jogou o copo de cerveja da própria mulher na cara dela. Aí comecei a ficar lá fora. Fui para a Nova Zelândia estudar inglês com a minha mulher, quando chegou a Covid-19. Só vinha fazer novela.
Rio Já: Você ficou assim por quantos anos?
José de Abreu: Começou mesmo depois da minha ida ao (Domingão do) Faustão. Fiquei 20 minutos defendendo a Dilma e atacando o impeachment. Depois dali o bicho pegou: entraram nos celulares da minha família e publicaram os números. Durante o governo Bolsonaro, me autoproclamei presidente, ele falou de mim três vezes. E era, claro, uma grande piada. Um dia desci no aeroporto e três policiais federais foram à porta do avião; achei que iam me prender, mas estavam ali para me proteger. Depois, fiquei quatro horas tirando fotografia no Amarelinho (bar icônico da Cinelândia), algo inédito. No Rio, ninguém pede pra tirar foto! Mas não era o ator e sim o “presidente do Brasil”.
Rio Já: E novos trabalhos na Globo?
José de Abreu: A média é fazer uma novela a cada quatro. Foi assim nos últimos 50 anos, tomara que continue.
Rio Já: Qual é sua avaliação do atual Governo Lula?
José de Abreu: Nota 8. Acho que tem coisas muito boas e outras que ainda estão patinando. O Frei Betto falou coisa muito interessante: o Lula governa com duas tornozeleiras eletrônicas, porque o Bolsonaro transformou o Brasil num parlamentarismo disfarçado quando deu o orçamento todo para o Congresso. O Bolsonaro é um vagabundo, nunca trabalhou, dormia no plenário. E como presidente também nunca fez porra nenhuma. Mas ele vai acabar na cadeia, não tenho a menor dúvida.
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