Lucila Soares
O prédio de linhas neoclássicas que ocupa o número 203 da Avenida Presidente Wilson faz parte da paisagem do Centro do Rio desde 1922, quando abrigou o pavilhão da França na Exposição Internacional do Centenário da Independência. No ano seguinte, foi doado à Academia Brasileira de Letras pelo governo francês. É uma réplica do Petit Trianon, em Versailles, cuja fachada combina muito bem com a imagem elitista que marcou a ABL. Não só elitista, mas tediosa, como resume uma charge publicada na revista Dom Casmurro, na década de 1930. Nela, um senhor de aspecto respeitável dirige-se a uma senhora igualmente distinta, iniciando o seguinte diálogo:
“Creio que já dormimos juntos.”
“Como?”
“Numa palestra de Pedro Calmon.”
(Historiador e professor eleito para a ABL em 1936)
Quase cem anos depois, os acadêmicos continuam a tomar chá nas tardes de quinta-feira, a organizar posses solenes, com longos discursos e a se intitular imortais. Mas os fardões verdes com bordados dourados, inspirados no figurino da Academia Francesa de Letras (claro), vestem um grupo bem diferente. Em 1977 o traje de gala teve que ganhar modelagem feminina para vestir Rachel de Queiroz, a primeira mulher acadêmica, e em 2024 foi usado pelo ambientalista, filósofo, poeta e líder indígena Ailton Krenak, com uma faixa de cabeça típica de seu povo. Nesse meio tempo, foram eleitos para a ABL outros “estrangeiros”: os cineastas Nelson Pereira dos Santos (2006) e Cacá Diegues (2018), o cantor e compositor Gilberto Gil e a atriz Fernanda Montenegro, ambos em 2021.
“Sem querer ser exagerado, há poucas academias no mundo com a força e a representatividade da brasileira”, diz o poeta Antonio Carlos Secchin, secretário geral da ABL desde 2022, quando o jornalista Merval Pereira foi eleito para a presidência da casa pela primeira vez.
Entre as atribuições de Secchin está a coordenação da programação, que é gratuita e levou à ABL quase dez mil pessoas em 2024. Tem de tudo. Palestras sobre futebol, inteligência artificial, gramática, samba, recitais de poesia, apresentações musicais. Uma conferência de Krenak sobre a natureza, feita logo depois de sua posse, lotou o teatro Raimundo Magalhães, que tem 360 lugares. O mesmo aconteceu com a aula-show do compositor e poeta José Miguel Wisnik, que mostrou como se interpenetram palavra e música na canção brasileira, com exemplos de Tom Jobim e Chico Buarque, Gilberto Gil e outros. Em dezembro, Marina Lima emocionou o público com um recital em homenagem a seu irmão e parceiro, o poeta e acadêmico Antonio Cícero, morto em outubro. A dupla compôs alguns dos maiores sucessos da MPB, como Fullgás, À Francesa e Virgem.

Na abertura da programação de 2025, Fernanda Montenegro protagonizou uma apoteose. Por uma falha no sistema on-line de reservas, o evento “Uma Academia toda prosa”, com leitura de textos de acadêmicos diversos, levou à ABL um público muito superior à capacidade do teatro, o que obrigou boa parte das pessoas a assistir ao espetáculo em um telão. É evidente que a apoteose de Fernanda, aos 95 anos, deve-se a seu posto de grande dama do teatro brasileiro, com papéis antológicos também na televisão, e teve contribuição do Oscar de melhor filme estrangeiro para “Ainda estou aqui”, de Walter Salles. Mas o público estrondoso confirma o acerto da guinada pop da vetusta ABL.
Essa guinada tem outras faces, uma delas bem visível desde a calçada da Avenida Presidente Wilson. A estátua de Machado de Assis, que fundou a ABL em 1897, ganhou no ano passado a companhia de um painel gigantesco, de 150 metros quadrados, que faz parte do projeto “Negro Muro” – sim, a ABL “desembranqueceu” oficialmente seu fundador. Foi pintado em comemoração aos 185 anos do autor de “Dom Casmurro” na fachada do Palácio Austregésilo de Athayde, prédio de 28 andares onde funcionam o teatro e a Sala José de Alencar, com capacidade para 65 pessoas, que tem programação às quintas-feiras. A maior parte do prédio é alugado para empresas e garante a maior parte do orçamento anual da ABL.
Machado é protagonista de outra grande modernidade acadêmica. No ano passado, ganhou um avatar que recebe e interage com o público das visitas guiadas à ABL. Construído em parceria com a empresa Euvatar Storyliving, o personagem é alimentado por um banco de dados que tem como fontes a obra do escritor e os estudos desenvolvidos na Academia sobre ele. No lançamento, a representação eletrônica de Machado foi criticada por não retratar fielmente sua raiz étnica. A empresa responsável alegou que a representação é fiel à imagem que a própria ABL faz do escritor – de um homem mestiço. A resposta dada à pergunta pelo próprio avatar foi que ele é, sim, um homem negro, porém considera que essa é uma questão secundária:
“Mais do que a representação da minha origem e raça em determinado momento, o que verdadeiramente importa para mim é a maneira como as minhas ideias e visão de mundo continuam a ressoar e a impactar as pessoas nos dias de hoje.”
Secchin conta que o avatar vai estar no estande da ABL na próxima Bienal do Livro, em junho. Ali serão vendidos, a preços populares, livros de imortais publicados pela Academia. No auditório, haverá mesas redondas com três acadêmicos por dia para falar da sua relação com o Rio de Janeiro, cidade escolhida pela Unesco como Capital Mundial do Livro em 2025.
“A literatura não está só no livro literário, a Academia está mostrando isso a um público que poderia passar a vida sem entrar aqui”, comemora Secchin.

Nem só na língua portuguesa. É o que defende Ailton Krenak, como disse na véspera de sua posse:
“Espero que o Brasil inteiro possa entender que nós estamos virando uma página da relação da ABL com os povos originários. Venho para cá para trazer línguas nativas do Brasil para um ambiente que faz a expansão da lusofonia”, disse.
Veja aqui alguns eventos programados pela ABL para abril e maio
Abril:
8/4: Início do ciclo “Os poetas da canção”, com conferência sobre Tom Jobim pelo poeta, compositor, dramaturgo e acadêmico Geraldo Carneiro e pelo ator e cantor Alfredo Del-Penho.
15/4: Conferência sobre Cartola, pelo roteirista e cineasta Hilton Lacerda.
29/4: Conferência sobre Caetano Veloso, com o poeta e compositor José Miguel Wisnik.
Maio:
6/5: Início do ciclo “Em torno de Ariano Suassuna”, com a conferência “O barroco sertanejo de Ariano Suassuna”, pelo escritor, compositor e dramaturgo Bráulio Tavares.
13/5: “Cantos e encantos nordestinos”, por Gilberto Gil.
20/5: “Saudades de reis, dos reinos e reinações: o sertão armorial de Ariano Suassuna, pelo historiador Durval Muniz Júnior.
27/5: “Ariano: eu não sou mamulengo de ninguém”, pelo advogado e educador Joaquim Falcão
ABL RECONHECEU MÚSICOS ANTES DO NOBEL
A Academia Brasileira de Letras antecipou-se à Academia Sueca, que concede o Prêmio Nobel de Literatura, na ampliação de seus critérios de admissão. Em 2006 o cineasta Nelson Pereira dos Santos, um dos ícones do Cinema Novo, foi eleito para a cadeira 7. Só dez anos depois, em 2016, o Nobel de Literatura foi concedido pela primeira vez a um “estrangeiro”, o compositor Bob Dylan.
Na ocasião, Sara Danius, secretária permanente da Academia Sueca, foi questionada sobre o que seria uma ampliação radical dos critérios de premiação e respondeu recorrendo aos poetas gregos:
“Pode parecer que sim, mas, se olharmos para trás, bem para trás, descobrimos Homero e Safo, que escreveram textos poéticos ou peças que foram feitas para ser ouvidas, apresentadas, frequentemente junto com instrumentos. É a mesma coisa com Bob Dylan. Ele pode e deve ser lido.”
A ABL também saiu na frente na admissão de mulheres. Elegeu Rachel de Queiroz em 1977, enquanto seu modelo inspirador, a Academia Francesa, só elegeu a primeira mulher em 1980: Marguerite Yourcenar, cujo livro mais conhecido é “Memórias de Adriano”. Uma curiosidade: a Academia Francesa não exige nacionalidade francesa, Yourcenar é belga. Mais recentemente, deixou também de exigir obra escrita em francês. Em 2021, elegeu o escritor peruano Mario Vargas Llosa.