COMPORTAMENTO: LEITE PARA TODOS OS BEBÊS

O rosto da campanha anual do ano passado foi de uma mãe negra com deficiência visual amamentando

Luisa Prochnik

Todas as pessoas têm o direito de amamentar e todos os bebês têm o direito de serem amamentados. Com esta premissa, e atentos a grupos humanos sempre esquecidos, a ENSP/Fiocruz, o IFF/Fiocruz e a Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano se dedicam a garantir o “aleitamento materno inclusivo”. Mães com deficiência e bebês com deficiência tornaram-se o foco de uma revolução no sistema de saúde pública. 

– Muito além de ser mulher e de ser mãe, nós, pessoas com deficiência, temos uma representação social carregada de capacitismo pelas outras pessoas que não têm deficiência. A gente representa a incapacidade, a falta, a necessidade de vigilância por outras pessoas. A gente sempre representa a lacuna – pontua Cinthya Freitas, profissional, ativista, mãe com deficiência visual.

– Os profissionais parecem ter algum receio ao se comunicarem comigo e tomar ciência de que sou pessoa surda, mesmo sendo oralizada, o que significa que verbalizo e consigo me comunicar oralmente por meio da leitura orofacial, e com fluência em língua portuguesa.

Ou seja, no ambiente hospitalar, simplesmente não vinham nem tentar estabelecer um mínimo de diálogo – conta Sabrina Lage, doula, educadora perinatal, consultora de amamentação, servidora pública federal, mãe com deficiência auditiva de duas meninas e idealizadora do Mamãe Surda.

– Lógico não só eu quanto qualquer pessoa que se propõe a ter um filho precisa de ajuda, não porque tem ou não deficiência, mas porque tem direitos – completa Cinthya.

Em uma sociedade em que pessoas com deficiência são invisibilizadas, as mães com deficiência têm seu protagonismo na maternidade questionado e as necessidades dos bebês com deficiência também são preteridas, o que pode ser constatado seja por falta de políticas públicas como por dificuldade de aplicação das políticas já existentes. Diversos estudos apontam para a importância da construção de uma rede de apoio para pessoas que amamentam e bebês, como bem resume uma frase atribuída a um provérbio africano: ‘É preciso uma aldeia inteira pra cuidar de uma criança’. Mas, quando se fala sobre mães com deficiência ou mães de crianças com deficiência, a demanda por apoio é vista como um problema, chamado por muitos de ‘maternidade atípica’, terminologia desconstruída por Lais Costa, doutora em Saúde Pública pela ENSP/Fiocruz, onde atua como pesquisadora, mãe de duas crianças, sendo a primogênita com deficiência intelectual.

– Maternidade é maternidade. Quem define quem está no pacote do normal e quem está fora do pacote do normal? – questiona.

Diante de diversas consequências negativas que essa falta de cuidado provoca, está a dificuldade de se estabelecer e de apoiar o aleitamento materno inclusivo – que deve ser oferecida  durante o pré-natal, o parto e a permanência de mãe e filho em ambiente hospitalar e após a ida para casa. Tira-se o direito de a criança ser amamentada e da mãe de prover ao seu filho um alimento saudável e gratuito nos seus primeiros anos de vida. E múltiplos estudos relacionados à primeira infância citam problemas físicos e cognitivos em pessoas que tenham sofrido de insegurança alimentar durante os seus cinco primeiros anos de vida.

– São barreiras distintas que interpelam o aleitamento materno se a mulher tiver deficiência física, auditiva, visual, intelectual ou autismo. De todas, no entanto, há relatos em maior ou menor grau do julgamento, uma sensação de constrangimento, como se ficasse quase concreta a ideia de que aquela mulher não poderia ser mãe. Mães com deficiência visual e a depender da deficiência física muito frequentemente nem recebem os seus bebês para amamentar. A mãe com deficiência intelectual é a mais ignorada e, muito frequentemente, é afastada do seu bebê, ou seja, os obstáculos ao aleitamento são ainda maiores – relata Lais, a partir de leitura de artigos e conversas com mães com deficiência.

O aleitamento materno exclusivo nos primeiros seis meses e a amamentação até dois anos de idade ou mais, patamar estabelecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), já é ousado diante de tantas dificuldades relacionadas à carga de trabalho materna fora de casa, deslocamentos em grandes cidades, falta de apoio institucional e empresarial, abandono paterno e ausência de familiares em rede de apoio. E torna-se ainda mais inalcançável para mães com deficiência, que não são vistas pela sociedade na sua integralidade, sofrem taxa maior de abandono de seus companheiros e questionamentos de familiares, segundo estudos de caso, não têm suas necessidades mapeadas e demandas atendidas. Os problemas relacionados à falta de inclusão são estruturais na nossa sociedade e, portanto, reproduzidos também na área da saúde, da atenção primária ao ambiente hospitalar, como no cuidado com gestantes e puérperas.

Diante de relatos na literatura e em rodas de conversa com mulheres com deficiência e de mulheres sem deficiência mães de criança com deficiência, uma inquietação tomou conta da pesquisadora Lais Costa: o direito ao aleitamento materno encontra mais obstáculos a ser efetivado junto a esse grupo de pessoas. Lais divide essa percepção com João Aprigio, fundador e coordenador da Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano, em reunião capitaneada por Marco Menezes, diretor da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/Fiocruz).

– Na medida em que a pesquisadora Lais Costa contou um pouco sobre o trabalho dela com inclusão, a questão da invisibilidade tornou-se visível demais para mim. Pedi uma reunião. A Rede de Bancos de Leite é muito mobilizada, tem um nível de ativismo impressionante. Nós reunimos o Brasil inteiro e pedi que passassem as estatísticas – conta João Aprigio.

Não havia números sobre atendimentos a mães com deficiência e a mães de crianças com deficiência. Alguns casos foram lembrados, mas não eram consolidados, mapeados. A partir daí, o projeto ‘Aleitamento Materno Inclusivo na Rede Brasileira de Bancos de Leite Humano’, uma ação interunidades ENSP/IFF – rBLH, é escrito e inscrito em um edital interno da Fiocruz, o Inova, voltado a iniciativas inovadoras, que tragam respostas concretas a desafios da sociedade.

– Fizemos um conjunto de reuniões entre profissionais, ouvimos relatos de mulheres, suas experiências, vivências. Agora, o momento é de buscar iniciativas que porventura já existam, que estejam sendo praticadas em diferentes instituições que compõem a Rede. Sempre mantendo o nosso maior compromisso: ampliar o espaço de compartilhamento, de conhecimento, de saberes, atitudes e práticas, conhecimento científicos, tecnológicos e culturais nesse campo – continua Aprigio.

O rosto da campanha anual de amamentação da ENSP/Fiocruz do ano passado foi de uma mãe negra com deficiência visual provendo leite materno ao seu filho. Mudança cultural, portanto, está em andamento, assim como o entendimento da necessidade de tornar a informação acessível para mães com deficiência – como cartilhas em libras. Mas, além da comunicação, o grande foco é mobilizar, sensibilizar, preparar os profissionais de saúde que mantê interlocução cotidiana com a população.

– O profissional de saúde, o médico obstetra, a enfermagem, os auxiliares e todas as pessoas que acompanham o pré-natal, o parto e o puerpério têm que ter o mínimo de conhecimento e a educação continuada – observa Cinthya Freitas, que além de atuar em equipe de pesquisa com a Lais, é presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência no Município do Rio de Janeiro e vice-presidente da Associação dos Deficientes Visuais do Estado do Rio de Janeiro (ADVERJ).

– Temos um campo de prática muito importante para experimentar esse projeto que é na ENSP e no território junto com o Centro de Estudos Germano Sinval Farias (responsável por atividades no âmbito da atenção básica). Vamos experimentar aqui, no IFF e a ideia é fazer outro pólo inicial em Brasília. O fundamental nesse processo para a ENSP é que ele seja construído a partir e junto com as pessoas com deficiência. Não somos nós ensinando, mas construindo junto – contribui Marco Menezes.

Há, nos próximos passos, a intenção de construir e lecionar disciplinas específicas sobre aleitamento materno inclusivo, dedicadas a profissionais de saúde que atuem no Sistema Único de Saúde, o SUS, e uma defesa por transversalizar esses saberes, tornando-os presentes em todo o curso de formação. Isto é partir do princípio básico da inclusão: não excluir. Entender que as pessoas com deficiência estão em todos os lugares, ou, ao menos, deveriam ser dadas ferramentas para que elas estejam.