CARNAVAL: A REVOLUÇÃO DE TRÊS NOITES

Foto aérea da Mangueira no Sambódromo no Rio de Janeiro

Aydano André Motta

Uma revolução vai sacudir o Carnaval de 2025. Pela primeira vez, o desfile das grandes escolas de samba acontecerá ao longo de três noites e madrugadas, e não mais em duas, como ocorreu nas últimas quatro décadas, desde a inauguração do Sambódromo. Serão quatro agremiações por noite, de domingo a terça, cada uma com tempo pouco maior para atravessar os 800 metros da avenida: 82 minutos, dez a mais do que antes. Com isso, o desfile, previsto para começar às 22h, não acabará mais ao amanhecer. 

Terminada a passagem da última escola de cada dia, uma roda de samba ocupará a Praça da Apoteose, para o povo do tradicional arrastão que fecha as maratonas de samba. Projeto do presidente da entidade, Gabriel David, a redivisão enlouqueceu a bolha do Carnaval. Choveram críticas nas redes sociais, argumentando que os três dias favorecerão ainda mais os camarotes, encarecendo o espetáculo para os “verdadeiros sambistas”. 

De seu lado, a Liesa acena com a redução no preço do ingresso das arquibancadas, mais estrutura para os desfilantes na concentração e melhorias na carcomida Passarela do Samba. “Conseguiremos democratizar ainda mais o acesso à Sapucaí, com mais gente conseguindo estar presente em dias diferentes”, aposta David. “A competição também ficará mais uniforme, porque minimizamos o risco de alguma escola desfilar inteiramente sob a luz do dia, uma vez que, atualmente, o recurso tecnológico da iluminação pode fazer a diferença no desempenho de cada uma”.

A mudança teve a aprovação unânime dos presidentes das escolas do Grupo Especial, animados com o óbvio aumento do dinheiro para tourear gastos, dívidas e salários de trabalhadores dos barracões e quadras, além de compromissos com fornecedores. O número de ingressos à venda – principal receita do espetáculo – aumentará em um terço, mitigando também a demanda crescente por lugares na avenida.

Mas o que pensam os artistas e estudiosos da festa? Dos mais talentosos formuladores de enredo da atualidade, o professor e pesquisador Mauro Cordeiro enxerga mais dúvidas do que respostas. “Não era uma pauta das agremiações, muito menos dos desfilantes e parece ter sido decisão puramente comercial. Amamos a festa e, obviamente, quanto mais melhor, mas não parece que se trata disso, diante da manutenção do número de participantes”, pondera. 

O professor lamenta que as escolas operem como vendedoras de um produto: o desfile. “Parecem ter se esquecido que surgiram como associações comunitárias em territórios periféricos produzindo arte e cultura no contexto do pós-Abolição”, alerta Cordeiro. “A função primordial delas não é gerar lucro e o aumento do poderio econômico não tem desembocado na melhoria das condições dos profissionais, na formalização do emprego ou investimento social nas comunidades. Existe uma grave crise de identidade. Para a continuidade histórica, é importante se repensar”.

Com lugar de fala único, por estar na Sapucaí desde a inauguração, Lucinha Nobre, porta-bandeira da Unidos da Tijuca, defende que quanto mais escola de samba, melhor – mas prefere esperar acontecer. “Poderia ter mais escolas também, mas falta espaço para barracão na Cidade do Samba”, comenta ela, lembrando que há apenas 14 barracões (em três dias, teriam que ser 15 escolas). “São mudanças para serem feitas com calma e carinho. De qualquer jeito, estou ansiosa”, admite, reivindicando mais ingressos para as comunidades dos sambistas.

Coreógrafo (ao lado da mulher, Beth) da comissão de frente da Grande Rio, Hélio Bejani discorda da crítica de que quatro escolas encurtarão a festa. “Acabam sendo muitos dias e acabou a ressaca da terça-feira, até então o dia do desapego da Sapucaí”, atesta. “O Carnaval busca mudanças, mas tudo na vida tem prós e contras. Ir um dia só até esse ano permitia ver metade das escolas. A partir de 2025, será um terço”, reflete.

A criação de Hélio e Beth em 2024 foi dos grandes momentos do ano: a comissão de frente da onça gigante, que se erguia iluminada diante do público em êxtase. O fato de a tricolor de Caxias ter caído, pelo sorteio, na terça-feira, agradou o coreógrafo por razão prosaica. “Ganhamos mais um dia para trabalhar no projeto. Dá para fazer muita coisa em 24 horas”, garante, na obsessão por perfeição protocolar entre os artistas da folia. “Acredito que haverá mais torcida das escolas do último dia”, aposta.

Satisfeito por, no sorteio, sua escola ter ficado na segunda-feira (“Com Exu abrindo o caminho, é especial”), João Vitor Araújo, carnavalesco da Beija-Flor, se engaja na turma numerosa que pede mais agremiações por dia – cinco, em vez das quatro de 2025. “A novidade assusta, provoca, cria uma série de interrogações na nossa cabeça. Mas vamos lá, eu boto fé”, aprova.

Orgulhoso frequentador da Sapucaí, ele mudará o jeito de viver a terça-feira, até hoje o hiato entre a tensa apoteose do desfile e a taquicardia da leitura das notas, na Quarta-Feira de Cinzas, “dia de uns sorrirem e outros chorarem”. Planeja manter o hábito de brincar nos blocos, mas à noite, voltará à avenida para o dia derradeiro. No ofício, ele cita a parceira Rosa Magalhães, multicampeã da festa. “A resposta dela era sempre a mesma: tem mais um dia para deixar a alegoria pronta, fazer aquele carinho a mais no trabalho, na alegoria, na fantasia. Um dia a mais para caprichar”, explica, ecoando a profissão de fé dos artistas carnavalescos.

A revolução dos três dias se dará, também, com enredos que exaltam a africanidade dos bambas e artistas fundamentais, para a festa e a cultura brasileira (veja no quadro nesta reportagem). As escolas passarão com outra mudança: mais uma cabine de julgamento, que agora serão quatro. Na apuração das notas e no Sábado das Campeãs, tudo segue como sempre: respectivamente, leitura do icônico Jorge “10, nota 10” Perlingeiro e seis escolas no desfecho do babado.

“Se hoje estou na presidência da Liesa é porque, acima de tudo, amo o samba e o Carnaval. E estou muito orgulhoso em ver que temos equipe muito competente, que tem esse mesmo sentimento pelo grande espetáculo”, comemora Gabriel David. “Cada profissional foi escolhido porque tem muito a oferecer e, em breve, vamos ver novos projetos se desenvolverem”.

OS ENREDOS DE 2025, NA ORDEM DO DESFILE

DOMINGO

Unidos de Padre Miguel

“Egbé Iya Nassô”. A trajetória da africana Iyá Nassô e do emblemático terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, o mais antigo do Brasil, em Salvador, será o enredo da vermelho e branco, que volta ao Grupo Especial.

Imperatriz Leopoldinense

“Ómi Tútú ao Olúfon – Água fresca para o Senhor de Ifón”. A Certinha de Ramos reproduzirá a ida de Oxalá ao reino de Oyó com a intenção de visitar Xangô. A saga do Orixá, os percalços do trajeto e seu desenrolar são o conteúdo de um tradicional Itã, espécie de relato da mitologia ioruba.

Unidos do Viradouro

“Malunguinho: o mensageiro de três mundos”. O líder quilombola que virou entidade afro-indígena será o tema da agremiação niteroiense, atual campeã e favorita ao bi.

Estação Primeira de Mangueira

“À flor da Terra – No Rio da negritude entre dores e paixões”. A verde e rosa abordará a alma carioca, atrevida por essência e banhada da ancestralidade bantu, forjada por dores e paixões, carregando na memória a cruel violência, mas também as experiências revolucionárias de liberdade, que desafiam a morte, celebram a vida e fazem Carnaval.

SEGUNDA-FEIRA

Mocidade Independente 

de Padre Miguel

“Voltando para o futuro, não há limites para sonhar”. Com o retorno do casal Márcia e Renato Lage, a Estrela Guia da Zona Oeste fará viagem intergaláctica, para se reconectar a seu brilho mais intenso e questionar os próximos passos, em um manifesto pelo futuro da humanidade.

Beija-Flor 

de Nilópolis

“Laíla de todos os santos, Laíla de todos os deuses”. A deusa nilopolitana vai celebrar o mítico carnavalesco e diretor de Carnaval que liderou a escola em quase todos os seus títulos. Um dos grandes sambistas de todos os tempos, ele será lembrado também como artista múltiplo, fundamental para a festa.

Acadêmicos 

do Salgueiro

vão passar na avenida, com a escola do bairro de Noel.

Unidos de 

Vila Isabel

“Quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece”. As assombrações que movimentam o imaginário popular e atraem multidões para filmes e novelas vão passar na avenida, com a escola do bairro de Noel.

TERÇA-FEIRA

Unidos da Tijuca

“Logun-Edé, santo menino que velho respeita”. A escola do pavão carrega os mesmos azul e amarelo do Orixá que será seu enredo. A partir da coincidência, desfilarão as histórias do garoto reverenciado pelos antigos, conforme a sabedoria oral dos candomblés.

Paraíso do Tuiuti

“Quem tem medo de Xica Manicongo?” Melhor enredo da temporada, apresentará a saga da rainha trans do Congo arrancada de seu reino e, escravizada, trazida para o Brasil, onde se transformou em liderança e entidade.

Acadêmicos do Grande Rio

“Pororocas Paranawaras. As águas dos meus encantos nas contas dos Curimbós”. Com o maior patrocínio do ano 

(R$ 15 milhões, reunidos pelo governo do Pará), a tricolor exaltará cultura do estado, num profundo mergulho nas águas amazônicas e uma jornada mística que mistura palácios, pajelanças, incensos, igarapés, encantarias e terreiros de Tambor de Mina.

Portela

“Cantar será buscar o caminho que vai dar no sol – Uma homenagem a Milton Nascimento”. A mais tradicional das escolas fechará a odisseia reverenciando o grande intérprete da MPB.