Aydano André Motta
A 93ª edição do desfile das grandes escolas de samba do Rio conjugou avanços e retrocessos, sinalizando dores e delícias para o futuro do espetáculo. Agora dividida em três noites, a maratona do Grupo Especial dissolveu mazelas antigas, mas sofreu com outras invencíveis. De um lado, sumiram os bicões da pista, enfim exclusiva dos bambas; de outro, os camarotes martelaram gêneros musicais alienígenas, infernizando o distinto público sambista.
Na disputa das grifes de nossa cultura popular, uma arrebatadora Beija-Flor conquistou o título após seis anos de jejum. Vitória da emoção do enredo sobre Laíla, maior nome de sua história, que teve como cereja do bolo a derradeira vez de Neguinho da Beija-Flor como intérprete, fechando trajetória cinquentenária com o 15º campeonato.
Outras duas escolas fizeram desfiles no mesmo nível da deusa nilopolitana: a Imperatriz Leopoldinense, linda com o itã (a história) da visita de Oxalá ao reino de Xangô; e a Grande Rio, deslumbrante na viagem às Pororocas Parawaras e as encantadas do Pará. No dramático resultado final, um décimo separou as três – a quarta colocada, a então campeã Viradouro, ficou a distantes quatro décimos, abismo na contagem carnavalesca.
Na nova ordem do babado, as odisseias de batucada encolheram, com quatro escolas que se foram (bem) antes do amanhecer. A ideia da Liesa de oferecer rodas de samba para atrair parte da plateia – e assim, garantir alguma segurança no retorno para casa sob a luz do sol – micou. Deu num hai kai folião, com os apaixonados condenados ao gosto amargo da festa breve. Para piorar, a maioria da multidão que lotou a Passarela foi embora ao mesmo tempo e a saída virou um caos, inviabilizando trânsito, metrô, ônibus e trens.
O cardápio de enredos seguiu a trajetória de brilho dos últimos anos, enfileirando consciência crítica, exaltação ao povo de África, sua religiosidade e seus ícones. Jamais por acaso, produziu-se nova safra excelente de sambas, com destaque para Beija-Flor, Grande Rio, Imperatriz e Unidos de Padre Miguel. Outras escolas apresentaram excelentes momentos, como a comissão de frente com robôs da Mocidade Independente, a engajada homenagem a Xica Manicongo (primeira travesti a viver no Brasil, no século 16) no Tuiuti ou a justa reverência a Milton Nascimento na Portela.
Cantando Laíla, a Beija Flor enfeitiçou os componentes, e muitos atravessaram a avenida em lágrimas. A bateria contribuiu com uma incrível paradona, deixando a condução do hino nilopolitano exclusivamente com os componentes. Um espetáculo
Mas o auge da emoção ficou mesmo com a campeã Beija-Flor. O desfile sobre o Laíla, mítico diretor de Carnaval que inventou a comunidade da escola e morreu de covid-19 em 2021, enfeitiçou os componentes, e muitos atravessaram a avenida cantando em lágrimas. A bateria contribuiu com uma incrível paradona, deixando a condução do hino nilopolitano exclusivamente com os componentes. Um espetáculo.
Para completar, Neguinho da Beija-Flor concluiu sua odisseia de meio século na avenida de maneira difícil de imaginar até na mais delirante ficção: o derradeiro desfile, como o primeiro, terminou com o título. Aos 75 anos, ele liderou sua comunidade com o vigor e a competência que se consolidaram como assinatura. Vira a página da própria história carnavalesca como a voz de todas as 15 conquistas da azul e branco nilopolitana, que carrega na carteira de identidade – e na alma.
O Carnaval de 2025 – primeiro de Gabriel David na presidência da Liesa – terminou com o predomínio da emoção na pista, escolas de cofres cheios pela noite a mais para vender ingressos (que praticamente esgotaram) e um punhado de desafios pela frente. A enxurrada de patrocínios precisa ser mais bem equalizada – uma lástima o tradicional arrastão dos foliões ao fim de cada dia ser prejudicado pela imensa bandeira de um aplicativo de apostas, em ação de marketing totalmente antipática.
Os grandes vilões voltaram a ser os camarotes mastodônticos (e em permanente viés de alta). Um deles realizou show de música eletrônica para 5 mil pessoas, num espaço montado ao lado da Sapucaí. O som era tão alto que a arquibancada sobre ele vibrou durante o furdunço. Milhares de queixas das pessoas que pagaram (caro) para ver as escolas se acumularam nas redes sociais e nos canais da Liesa. Mas a cena mais revoltante do ano fica com o camarote Mar e um casal que resolveu jogar altinha na beira da pista, durante os desfiles da Série Ouro. Se a bola cai durante a apresentação de uma escola, influenciaria decisivamente toda a disputa.
A Liesa garantiu que os camarotes infratores receberão multas pesadas – a conferir. De qualquer jeito, está de pé o questionamento de por que aqueles espaços tão desinteressados em samba, de tanto menosprezo pela cultura popular, precisam estar ali, nas franjas do espetáculo das escolas. Deveriam ceder o lugar a quem gosta da festa dos bambas.
Assim, a Passarela criada por Darcy Ribeiro, 41 anos atrás, seria poupada de virar uma gigantesca rave ao fim de cada noite dos desfiles, o batidão enfumaçado indo até o meio da manhã. Uma gente lamentável, sem ligação nem interesse pelos fundamentos daquele lugar mágico.
Para 2026, os organizadores do desfile estão desafiados a domar os camarotes, obrigando a mudança de foco, até a devida valorização dos artistas que passam na pista. O Carnaval pode viver no capitalismo – desde que se imponha o limite da preservação de manifestação tão preciosa, a melhor cara do Brasil.