CANTOS E VIVÊNCIAS INDÍGENAS CONQUISTAM ROCK IN RIO

Katú Mirim: rap para falar dos desafios em torno dos povos originários. Foto divulgação

Aydano André Motta

A luta ancestral dos povos originários estará presente na edição 2024 do Rock in Rio, com a presença de duas cantoras indígenas em espaços diferentes do festival. Kaê Guajajara, cantora e compositora maranhense criada no Conjunto de Favelas da Maré, e Katú Mirim, de Campo Limpo Paulista (SP), levarão suas obras de vanguarda, pontilhadas de engajamento, a palcos diferentes da maratona musical que virou emblema carioca.

Filha de mãe indígena e pai branco, Kaê viralizou nas redes sociais em 2020 com a música “Mãos vermelhas”, do EP “Uzaw”, na qual inverte a narrativa da propaganda do agronegócio. “O Agro não é tech/ Não é pop e também mata/ Vestem rosa ou azul/ Com as mãos manchadas de vermelho”, prega a letra sem meias palavras.

Nascida numa aldeia não demarcada em Mirinzal, interior do Maranhão, Kaê tem lugar de fala – viveu a tragédia comum aos indígenas na luta pela terra. Sua família trabalhava na troca de farinha, numa região cercada de latifúndios da monocultura. “Vivi a infância marcada pela insegurança, a falta de autonomia”, narra a artista. Sem segurança fundiária, eles decidiram tentar a vida na cidade, e vieram para a Nova Holanda, na Maré, repetindo a saga de muitos brasileiros em vulnerabilidade social.

Katú viveu a tragédia social mais urbana, no interior de São Paulo. O pai, indígena Boe Bororo (etnia oriunda do Mato Grosso, mas escravizada em terras paulistas), era alcoólatra e pessoa em situação de rua; a mãe, extremamente pobre, decidiu dar a filha ainda bebê para adoção. Aos 13 anos, Katu Mirim descobriu sua origem biológica, início de uma vivência que marca sua obra, no rap e no hip-hop.

Fundadora do Coletivo Azuruhu, Kaê escreveu o livro “Descomplicando com Kaê Guajajara – O que você precisa saber sobre os povos originários e como ajudar na luta antirracista”. Na música, conjuga hip-hop, instrumentos tradicionais e elementos da língua materna Ze’egete (“a fala boa”), para denunciar o duro cotidiano dos povos indígenas não aldeados e o apagamento de suas identidades.

O reconhecimento não tardou. Ela venceu o Prêmio Arcanjo de Cultura na categoria melhor álbum, com “Kwarahy Tazyr” (“Filha do Sol”), em 2021, e foi indicada a melhor show do ano pelo Womens Music Event em 2022 e 2023.

Kaê Guajajara: indígena criada na favela une as lutas dos povos vulneráveis Foto Lisi Potyguara

Mas o preconceito a perseguiu por boa parte de seus 30 anos. Na adolescência, as meninas da favela debochavam das sementes que usavam como joias e ameaçavam cortar seu cabelo liso, duvidando da etnia indígena. Ganhou apelidos como Da Mata e Mãe Natureza. Aos 17, começou no grupo de rap Crônicos da Maré mas, iniciando seu letramento, se incomodou com o tema único da negritude. Dois anos depois, começou carreira solo, falando do território indígena na favela.

Katú Mirim estreou no rap ao mesmo tempo em que descobria os desafios em torno dos povos originários. Viralizou com vídeo em que levantava o bordão #índionãoéfantasia, questionando o uso indiscriminado dos símbolos indígenas. Em 2017, estreou no rap com o single Aguyjevete voltando para o cenário musical com uma música que fala da resistência do povo indígena e negro. Fundou no mesmo ano o movimento “VI Visibilidade Indígena”, que luta pelos direitos e representatividade dos povos. Ainda enfrenta o racismo e a lesbofobia no ambiente do hip-hop.

A luta das duas encontra a consagração conjunta no Rock in Rio. “Chorei muito quando recebi o convite. Eu, indígena favelada, não imaginava chegar tão longe”, recorda Kaê, que vai se apresentar no sábado 21 de setembro, no Espaço Favela. “Agora, vou poder mostrar as vivências e violências que transformei em arte. Muito emocionante e importante conseguir esse espaço”, festeja ela. “Será um divisor de águas para mim”, exalta Katú. “O consenso é pensar o rap indígena na língua da etnia e sobre demarcação de terras. Somos e podemos muito mais, fora do nicho”, garante a rapper, que estará no Global Village (espaço novo, da música como conexão entre os povos) na sexta-feira 13 de setembro.