Antônio Gonzaga*
Um pedaço de flecha, as asas de um anjo caído, as penas de uma arara gigante, plumas, chapéus, brilhos, paetês, isopor, mais isopor, um par de sandálias quase novas, um estandarte com o nome de uma escola de samba gravado em um pedaço de alegoria. Meu Carnaval – pelo menos o Carnaval que me vem em lembrança remota – era mais ou menos isso.
Um Carnaval periférico, vivido por um menino (mais um) levado pelos pais nas manhãs em busca dos carros alegóricos de uma Presidente Vargas que se misturava aos vestígios da noite anterior de festa na Sapucaí. Um Carnaval feito de pequenas partes, restos, frestas, luxos, lixos, deslumbres, cacos, material que eu levava para casa para montar meu próprio desfile já na quarta-feira de cinzas – símbolos de encantamento que dominava meus sonhos.
A história das escolas é feita desses dois pilares. O primeiro é o que formulou meios de agregar o povo preto recém-alforriado em torno de métodos de sobrevivência, da tomada das ruas, das suas redes de proteção e afeto, no culto aos antepassados e preservação dos saberes. O segundo é o que formula a sedução capaz de agregar pessoas pela festa, na capacidade de fazer e guardar a festa, na liberdade de farrear. Luta e festa, luta e festa, luta e festa. Escolas de samba.
Sou negro, filho de mãe negra e pai branco. Quando um menino negro (serve para o menino não negro sensibilizado pela cultura popular) se vê diante dos fundamentos da escola de samba, será, certamente, tomado pelo pertencimento e pelo êxtase. As duas coisas. O pertencimento está no reconhecimento daquilo tudo que forma a escola – a fantasia, os enredos, a ilusão, o batuque, a síncope, o não imaginado, o giro da baiana, o samba em sua plenitude. Já o êxtase está na possibilidade de vivenciar aquilo, viver (d)aquilo. Foi esse pertencimento e esse êxtase que me transformaram, nesse momento em que escrevo esse texto, em carnavalesco.
Estar no chão de fábrica da Cidade do Samba me faz um operário da festa. Cada um dos muitos que estão comigo no barracão da Portela são também pintores, costureiras, aderecistas, designers e, de muitas maneiras, carnavalescos também. São nossos ofícios. Somos encantados do Carnaval.
Nas primeiras vezes que estive no Sambódromo, descobri um outro Carnaval. Assistia ao Carnaval sem assistir. Demorei alguns anos antes de sentar pela primeira vez no cimento da arquibancada e dividir salgadinho e refrigerante com meus irmãos e primos. Até ali, meu Carnaval acontecia nas cercanias da Passarela. Lá eu acompanhava de perto a montagem dos carros alegóricos, o vaivém dos trabalhadores que botam a engrenagem para funcionar, as brigas, a felicidade tangível, a correria, o medo, o silêncio que antecede o estrondo. Queria ser como aqueles caras e aquelas garotas, estar com eles, sofrer e vibrar como eles, construir, participar daquilo. Aquilo já era Carnaval – e havia arte ali.
Sou carnavalesco como mais uma parte das muitas coisas que já fui no Carnaval. Desde sempre fui espectador e amante das escolas de samba (e isso é status para mim). Já fui compositor. Já fui aderecista, pintor, costureiro. Fiz estampas, desenhei fantasias, forrei e empurrei carro alegórico. Brinquei em ala – e quem sabe fui o grande amor do mestre-sala?
Estar no chão de fábrica da Cidade do Samba me faz um operário da festa. Cada um dos muitos que estão comigo no barracão da Portela são também pintores, costureiras, aderecistas, designers e, de muitas maneiras, carnavalescos também. São nossos ofícios. Somos encantados do Carnaval.
Por isso importa que as escolas de samba – através de suas escolas mirins, das iniciativas de inclusão, das ações nas redes sociais e na indústria da diversão, na ocupação de museus e espaços públicos, nos ensaios de rua – façam valer de sua vocação: ser escola. Lugar de aprendizado e conquistas, ponto de lançamento de sonhos e encantamentos. Para que a passista mirim apareça, o cavaquinhista mirim apareça, o costureiro mirim apareça, os novos carnavalescos se revelem.
Continuo a ser o menino encantado que recolhia os restos da festa no asfalto em volta da Sapucaí, o que fazia carro alegórico de lego e desenhava croquis para as porta-bandeiras de todas as escolas. Ele dorme (nos últimos tempos bem pouco), acorda e sonha comigo todos os dias. Torço muito para que esse menino nunca me abandone.
*Antônio Gonzaga é Carnavalesco da Portela, que estreia em 2024 no Grupo Especial