ANCESTRALIDADE: REPARAÇÃO HISTÓRICA

Jan Theophilo

Dizer que o Rio vai ganhar um novo centro cultural é pouco para contar a última novidade que veio dar à praia, ou melhor, ao histórico Cais do Valongo, na Saúde, região portuária do Rio. Após um concurso disputado por 36 escritórios de arquitetura, a Prefeitura anunciou a construção do Centro Cultural Rio-África. Com previsão de lançamento para 2027, ele será instalado em um terreno onde funcionava a maternidade Pro Matre, na esquina da Avenida Venezuela com a Rua Barão de Tefé. Lá, vieram ao mundo personalidades da política e da cultura brasileira, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em 1931, ou o cantor Erasmo Carlos, dez anos depois. “A gente precisa contar a história do que aconteceu aqui. É o povo africano que construiu a nossa identidade, cultura, arquitetura, com seu esforço, suor e trabalho escravizado. Que construiu essa civilização carioca, a civilização brasileira. É preciso ser antirracista e resgatar essa dívida histórica com o povo negro”, afirmou o prefeito Eduardo Paes.

O Estúdio Módulo, dos arquitetos Marcus Damon, Guilherme Bravin e Érica Tomasoni, venceu o concurso promovido pela Prefeitura e organizado pelo Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RJ). A premissa era que o projeto não fosse apenas “mais uma construção”, mas um gesto profundo de valorização da história da Pequena África, um legado que merece ser reconhecido e celebrado. “O Centro Cultural Rio-África terá um imenso simbolismo e importância cultural, não só para o Rio de Janeiro, mas também para o Brasil e os países africanos que compartilham uma história de desafios e conquistas. Nossa proposta vai além de fomentar o debate e a reflexão; queremos que o espaço ofereça um lugar de contemplação e respiro”, diz o arquiteto Marcus Damon.

O Centro Cultural terá dois prédios de três andares cada e ocupará uma área total de 6.810 metros quadrados, mas do o que dobro da veterana Pro-Matre. A fachada será feita com tijolos de barro, inspirados no trançado e no muxarabi, abordagens que influenciaram o cobogó brasileiro. Além disso, o desenho da cobertura que fará a ligação entre os blocos reinterpreta as texturas dos tecidos Kuba Showa, originários do Congo, trazendo uma camada adicional de conexão cultural. Nos pilares, um sistema construtivo de madeira simbolizando a vitalidade das árvores e a reverência que estas possuem na cultura africana. O local contará ainda com salas para exposições, debates e atividades educativas, além de um pátio arborizado onde haverá o plantio de espécies nativas, como o jacarandá; e africanas, como agapanto, moreia ou capim-do-texas. Marcus Damon conta que uma de suas inspirações para pensar a praça que impressionou os jurados veio do Norte do continente africano, “na tradição das casas escavadas em Matmata, na Tunísia, onde a integração com o ambiente natural é essencial”, explica.

Claro que como tudo que acontece nessa cidade houve um pequeno quiproquó. Com luvas de pelica e muito cuidado para não ferir nenhuma suscetibilidade, houve gente que lembrou que o Rio já tem pelo menos um museu dedicado à cultura africana: o Museu da História e da Cultura Afro-Brasileira (Muhcab). “Não falta museu, falta gestão”, diz o pesquisador Wilson da Silva: “você pega os casos da Praça XV ou do Campo de Santana. São regiões repletas de equipamentos históricos, mas que não conversam entre si para planejar uma programação combinada, que faça o visitante passar mais tempo por ali e, assim, incrementar a economia local”. Já segundo Yago Feitosa, coordenador de Promoção da Igualdade Racial da Casa Civil da Prefeitura do Rio de Janeiro, o diferencial do novo ambiente será abarcar “um maior número possível de linguagens artísticas, como artes visuais, cinema, música e teatro”. Yago é o representante da Prefeitura no Comitê Gestor do Sítio Arqueológico Cais do Valongo.

Que para má sorte dos que reclamam fica a exatos dois minutos de uma caminhadinha leve até o endereço do novo centro cultural. A relevância histórica do local é inegável. Construído em 1811, ele servia ao desembarque de pessoas escravizadas e, estima-se, que mais de um milhão de homens e mulheres africanas foram tenha entrado no Brasil por ali. Com o fim da escravidão, o Valongo foi, primeiro, aterrado para a construção do cais onde desembarcou a futura imperatriz Teresa Cristina; e, depois, aterrado de vez durante a renovação do Centro no governo Pereira Passos. Em 2011, durante obras de drenagem para o projeto do Porto Maravilha, foi descoberto o sítio arqueológico, onde se encontraram ossos humanos e uma série de objetos, como uma caixinha de joias, búzios, colares e pulseiras. O Cais “escavado” do Valongo é hoje monumento aberto à visitação pública e foi tombado em 2017 pela Unesco, que concedeu ao lugar o título de Patrimônio Histórico da Humanidade.

Para o coordenador do escritório do Ministério da Cultura no Rio, Eduardo Nascimento, o centro cultural pode funcionar ainda como um agregador de diversas iniciativas governamentais que podem turbinar toda a Pequena África. “O BNDES, por exemplo, acaba de lançar um programa de R$ 20 milhões para capacitação de afro empreendedores, tendo recebido apoios cada vez mais significativos de entidades como a Fundação Ford, a Open Society Foundations e o Instituto Ibirapitanga”, diz Eduardo. O banco de fomento também está apoiando a Embratur no projeto Viva Pequena África,  que apoia iniciativas culturais para fortalecer a preservação e valorização da memória e herança africana no entorno do Valongo, além de criar uma rede de instituições representantes dessa herança africana. “Pela primeira vez, o afroturismo é uma bandeira central de uma política pública do governo federal. E os resultados já são muito fortes. Quando a gente apresenta o Brasil através do afroturismo, apresenta o país que a gente quer viver”, afirmou o presidente da Embratur, Marcelo Freixo. Segundo ele, o afroturismo é responsável por uma geração de emprego e renda com um novo protagonismo. “é um processo pedagógico e de reafirmação de uma política de direitos humanos”, diz.

“Em outras intervenções, mesmo quando voltadas ao resgate histórico e valorização do espaço urbano, o resultado foi a exclusão e a gentrificação, com o encarecimento do custo de vida, expulsão dos antigos moradores e aprofundamento da segregação socioespacial, exatamente porque não se buscou a participação, o empoderamento dos coletivos ali presentes: isso é exatamente o que queremos evitar”, explicou a diretora Socioambiental do BNDES, Tereza Campello. Com tudo isso, e muito mais, a Pequena África pode estar diante de uma nova abolição.

DIÁSPORA AFRICANA NO BRASIL

A diáspora africana é um capítulo importantíssimo da história do Brasil. É um tema complexo e multifacetado que continua a influenciar nossa sociedade até hoje. Cerca de 40% dos 12 milhões de africanos trazidos para as Américas como escravos desembarcaram no Brasil, o que representa uma grande parcela da população brasileira atual. Entre os sequestrados, estima-se que um milhão desembarcou no Cais do Valongo.

Os africanos que chegaram ao Brasil vieram de diversas regiões do continente, mas alguns grupos étnicos foram predominantes, como os angolas, cabindas e benguelas, da região da atual Angola; e os minas, da atual Nigéria. Essa imigração forçada teve um impacto profundo na cultura, na sociedade e na economia do país. A influência africana pode ser vista na música, na dança do samba, na culinária e na religião brasileira. 

Além disso, a luta pela abolição da escravidão foi um movimento de capilaridade e impacto social vigorosos, e que recentemente começaram a ser redescobertos pelos pesquisadores e historiadores. A diáspora africana no Brasil deixou um legado histórico importante. A luta contra a escravidão e a igualdade racial ainda é um capítulo fundamental da história do país.