Jan Theophilo
Nem Lula, nem Bolsonaro. O que realmente mexe com corações e mentes da população da pequena cidade de Cantagalo, a quatro horas do Rio, é a vida e obra do escritor e jornalista Euclydes da Cunha, nascido em 1866 na Fazenda da Saudade, no distrito cantagalense de Santa Rita do Rio Negro. Passados 157 anos, a fazenda deu lugar a uma fábrica de cimento, mas manteve na entrada um busto do autor do clássico “Os Sertões” e o distrito mudou seu nome para Euclidelândia. Há outro busto na praça do centro da cidade, uma farmácia euclidiana, uma padaria e uma escola de mesmo nome e até um sabor de pizza chamado “Os Sertões” — de queijo, molho de tomate e galinha caipira. Euclides é assunto obrigatório nas escolas, há vários grupos de estudo sobre sua obra e um orgulhoso “movimento euclidiano” entre habitantes da cidade que está comemorando uma vitória: a reabertura da Casa de Euclides da Cunha, fechada 12 anos por querelas burocráticas, e que guarda, entre inúmeros itens pessoais e da Guerra dos Canudos, uma relíquia um tanto bizarra: o encéfalo de Euclides da Cunha.
Mas calma lá, Brasil. O cérebro do famoso autor não fica exposto em algum tipo de aquário para deleite de seus fãs. Preservado em formol, ele está sob uma redoma de mármore, localizada bem ao centro da sala principal. “Quando ele veio para cá, chegou a ficar sim em exibição. Mas depois a Funarj fez esse monumento, e hoje ele está quase meio metro abaixo da terra, numa redoma de vidro, rosado e meio gosmento, coberto por esta placa de mármore”, explica o diretor da Casa de Euclides da Cunha, Vinícius Stael: “mas é o que atrai mais curiosidade para a casa”. Para os muito curiosos, há um álbum de fotos do escritor com celebridades como o ex-presidente da ABL, Austregésilo de Athayde. “Existe também uma lei dizendo que corpos humanos não podem ficar expostos. E seria um pouco invasivo para a família, ‘ah, é o cérebro do meu tataravô'”, justifica Stael
Não que a Casa de Euclides da Cunha seja efetivamente o antigo endereço do escritor. Ela faz parte de uma espécie de rixa entre as “cidades-irmãs” de Cantagalo e São José do Rio Pardo, no interior paulista, onde Euclides de fato escreveu, durante cinco anos, “Os Sertões”. “Da casa mesmo onde ele nasceu só restaram essas pedras aqui” brinca Vinícius. Já em São José há uma reprodução da cabana onde Euclides viveu enquanto escrevia e trabalhava como engenheiro na construção de uma ponte. Protegida por uma redoma de vidro, ele reúne em seu acervo outras preciosidades, como o banquinho e a mesa de madeira rústica que serviram de escrivaninha para o escritor, a Caderneta de Campo com anotações da campanha de Canudos e, entre documentos e objetos, 70 fotos originais do fotógrafo Flávio de Barros, que retratou o conflito. À beira do rio, fica a herma doada pelo jornal O Estado de S. Paulo em 1918, em homenagem a Euclides, que foi repórter do jornal, e o mausoléu que recebeu seus restos mortais, exumados do Cemitério São João Batista, em 1982.
A Casa de Euclides em Cantagalo foi criada em 1965 numa jogada inteligente do então prefeito Henrique Luiz. Disposto a criar o museu, ele escreveu para o então governador do Rio de Janeiro, o marechal Paulo Torres, nascido em Cantagalo, sugerindo a construção de uma escola na cidade para homenagear sua mãe, Maria Zulmira Torres. No projeto da escola, o alcaide “embutiu” o espaço cultural. Funcionou. Mas somente em setembro de 1983 o encéfalo foi transferido para lá. “Um dia, li em um jornal que o encéfalo de Euclides estava no Museu Nacional. Fui ao escritor Joel Bicalho, casado com uma neta de Euclides, e perguntei se eles podiam doar”, recorda Fany Abrahim, professora aposentada, que dirigiu o museu por mais de três décadas. “A gente tem testemunhos de que a cidade literalmente parou na chegada do encéfalo. Houve um cortejo, com soldados em trajes de gala, que passou pela prefeitura, pela Câmara. Foi um momento histórico para o município”, lembra Vinicius Stael.
Além do encéfalo, a Casa de Euclides da Cunha possui itens como a lupa do escritor, a rede na qual dormiu durante a cobertura da Guerra de Canudos, munições da época, mais de três mil livros sobre Euclides e a cultura de Cantagalo, diversas edições de “Os Sertões” em vários idiomas e verdadeiras preciosidades. Entre elas uma máquina fotográfica Brownie, produzida pela Kodak em 1900, que pertenceu a Euclides, e a primeira edição de “Os Sertões”, que abriga uma curiosidade: todos os primeiros dois mil volumes foram corrigidos a mão pelo escritor. “Quando chegaram os primeiros exemplares ele encontrou erros de acentuação, vírgulas no lugar errado, daí corrigiu um a um, usando estilete. Foi um trabalho longo, mas ele era muito metódico”, conta o professor Henrique da Cunha, um dos integrantes do movimento euclidiano de Cantagalo.
Durante 50 anos a Casa de Euclides da Cunha funcionou de forma ininterrupta. Entre 1980 e 2012, ela foi administrada pela professora Fany Abrahim, e quando ela se aposentou nenhum outro servidor da Funarj (dona do imóvel) foi deslocado para a cidade. Começou um longo jogo de empurra. A prefeitura de Cantagalo tentou assumir a gestão e solicitou a doação do espaço, o que foi negado pela fundação sob alegação dela estar dentro do terreno da escola que leva o nome da mãe do marechal. Mas, no fim das contas, surgiu uma solução caseira. “Com a última mudança de presidência na Funarj, o movimento euclidiano fez muita pressão política. E como sou cantagalense e servidor da Funarj me fizeram o desafio de voltar pra cá e, finalmente, após 12 anos fechada, conseguimos reformá-la e reabri-la”, conta Vinicius. E além da reabertura vem mais coisa boa por aí. O atual diretor está em tratativas com a Casa de Antônio Conselheiro, em Quixeramobim (CE), para uma parceria técnica. Não, não haverá troca de cérebros.
UMA EPOPEIA EM LÍNGUA PORTUGUESA
Publicado em 1902, “Os Sertões” é considerado o primeiro livro-reportagem brasileiro. Ele trata da Guerra de Canudos (1896-1897), ocorrida no município do interior da Bahia, a qual Euclides da Cunha presenciou como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. Pode ser entendido como uma obra de Sociologia, Geografia, História ou crítica humana, mas não é errado lê-lo como uma epopeia da vida sertaneja em sua luta diária contra a paisagem e a incompreensão da elite.
“Há um culto muito grande por Euclides e o que eu vou te falar é doideira, mas é pela obra. As pessoas até esquecem que ele tem outras obras. Mas ‘Os Sertões’ ficou tão marcado historicamente, tanto pela literatura, quanto para entender que havia um Brasil fora do litoral, que havia pessoas diferentes dos homens do litoral, com uma outra cultura”, explica o professor Henrique Cunha do movimento euclidiano de Cantagalo.
“Alguém entender a terra, porque é seca, ou porque chove esporadicamente, e quando vem é uma bruta chuva seguida de uma grande seca. Olha, ninguém tinha pensado nisso tudo até então e misturado isso com boa literatura. Que é poética, quando você vai ler, percebe que tem um ritmo. É algo meio new journalism. Uma obra tão rica e tão densa que as pessoas percebem que tem de se perpetuar”, diz ele.
Para Henrique, embora denso, “Os Sertões” não é um livro que assuste a juventude. “Dá para ler, mas precisa de algum preparo. Ler da forma correta, que são os capítulos Terra, Homem e Luta. Mas vejo que a maioria quer começar pela Luta, que é a parte mais agitada”, diz. Segundo ele, “Os Sertões” é considerado um clássico porque dialoga com diferentes disciplinas que vão da história e sociologia até a biologia. “É um livro que não se esgota”, afirma ele.
“Os Sertões” ganhou edições em espanhol, inglês, sueco, francês, dinamarquês, italiano, holandês, chinês e alemão, entre outras. Em 2010 teve sua primeira adaptação para os quadrinhos, pela editora Desiderata, com roteiro de Carlos Ferreira e desenhos de Rodrigo Rosa. (JT)
DUELO DE 13 TIROS QUE MATOU O ESCRITOR TRAÍDO
Escrita por Gloria Perez, dirigida por Wolf Maia e lançada pela TV Globo em 1990, a minissérie “Desejo” buscou ser uma resposta ao sucesso na época da novela “Pantanal” da TV Manchete. A trama contava, de forma romanceada, o episódio conhecido como “A Tragédia da Piedade”, quando o escritor Euclides da Cunha (Tarcísio Meira) foi morto por Dilermando de Assis (Guilherme Fontes), amante de sua mulher Ana Emília Ribeiro (Vera Fischer). O caso foi registrado assim pelo jornal Correio da Manhã na edição de 16 de agosto de 1909:
“Tal como a reportagem pôde apurá-la, Euclides entrando pela casa onde os irmãos Dilermando e Dinorah residiam, estava verdadeiramente desvairado. Dinorah, que tomava café na sala levantou-se surpreendido. “Onde está Dil”? “Ainda está deitado”. E Dinorah indicou o quarto da frente da casa, que se encontrava fechado por dentro. Euclides tentou abri-la, mas encontrando resistência, arrombou-a com um pontapé. O arruído fez Dilermando levantar-se de um salto, encontrando já a sua frente Euclides da Cunha apontando-lhe um pequeno revólver Smith & Wesson. Um segundo depois estalou o primeiro tiro, que se perdeu. Dilermando corajosamente atirou-se sobre o escritor tentando desarmá-lo, o que não pôde fazer, recebendo nessa ocasião um tiro, que o feriu de raspão no pulso e no peito. Um outro tiro foi feri-lo no ventre. Intervindo nesta ocasião Dinorah, que também tentou desarmar Euclides. Este voltou-se rapidamente e alvejou o outro rapaz, ferindo-o na base da coluna vertebral.
“Nesse meio tempo Dilermando armou-se do seu revólver, fazendo com ele dois disparos contra a parede, no intuito de intimidar seu agressor. Não logrou efeito este expediente. Um novo projétil foi ferir Dilermando em uma das virilhas. Ele então, cego de dor, fez quatro disparos seguidos contra Euclides da Cunha, em cujo corpo se foram cravar as quatro balas: uma sobre o rim, outra no pulso, a terceira no braço e a quarta no tórax, todas no lado direito. No tiroteio foram detonadas treze balas. Mortalmente ferido Euclides cambaleou até a porta da entrada onde foi cair, estertorando. Mesmo feridos, os dois rapazes o levaram até a cama de Dilermando, onde ficou durante seus poucos instantes de agonia”.
Ana e Dilermando se casaram e tiveram outros filhos, o que escandalizava a sociedade carioca da época, que considerava o militar um assassino. Mas a situação ainda ia ficar pior, quando em junho de 1916 outra tragédia aconteceu. Disposto a vingar o assassinato do pai, Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, aspirante da Marinha, encontrou Dilermando em um cartório e abriu fogo contra ele. As balas atingiram Dilermando nas costas, no episódio que ficou conhecido como o “Segundo ato de uma tragédia emocionante”. O desfecho, contudo, não foi nem um pouco diferente do primeiro: mesmo machucado, o novo marido de Ana conseguiu atirar em Quidinho, matando o jovem filho de Euclides da Cunha. Dilermando seguiu carreira no exército até chegar ao generalato e morreu em São Paulo, em 13 de novembro de 1951, aos 63 anos de idade, devido a um infarto. Sua morte ocorreu seis meses depois da morte de Ana, sua ex-mulher, vítima de um câncer.