A ONÇA, A SERPENTE E OCARNAVAL SUPERTECNOLÓGICO

A cobra da Viradouro: um dos destaques dos desfiles

Aydano André Motta

A 92ª edição do desfile das grandes escolas de samba, a de 2024, passará à História como a do duelo entre a onça e a serpente que inaugurou a era supertecnológica do espetáculo. O felino preto e gigante da comissão de frente da Grande Rio e a cobra que rastejou na abertura da campeã Viradouro sinalizaram novo tempo para a disputa dos bambas. Dobra-se a aposta na tecnologia como cereja do bolo de música, ritmo, dança e beleza da Sapucaí.

Não se trata, nem de longe, da substituição de qualquer preceito, tampouco de concessões a estrangeirismos. A procissão em samba, com fantasias e alegorias, na competição entre as escolas continua toda lá, mas a festa mantém sua vocação mutante. Começa agora nova etapa da odisseia quase secular que se consolidou como a melhor cara do Rio – e do Brasil.

O show das comissões de frente, aposta permanente na inovação que mobiliza os sambistas, deu o salto para as escolas decifrarem como utilizar a nova iluminação da Passarela do Samba. Aumentou a interação da plateia, que ganhou novas atrações, ampliando as alternativas para atrair a atenção de mais gente e o potencial de repercussão nas redes sociais. Assim, valoriza-se o espetáculo como um todo.

A Grande Rio enfeitiçou o público com a abertura criada pela dupla de coreógrafos Hélio e Beth Bejani para o enredo “Nosso destino é ser onça”, sobre o mito Tupinambá descrito em best-seller de Alberto Mussa. Um felino gigante, preto, entrou deitado, de frente para o restante da escola. No clímax da apresentação para os jurados, se levantou, rugiu com a boca aberta e balançou os braços, ganhando vida diante dos milhares de queixos caídos. Em seguida, o Velho Onça (personagem-chave da história) surgiu iluminado no coração da alegoria. A iluminação planejada para o momento serviu como moldura precisa.

Arquibancadas, frisas e camarotes ainda participavam do negócio. Antes do desfile, a Grande Rio distribuiu 55 mil pulseiras, que piscavam a cada uma das três apresentações (nos módulos de julgamento). Além de entreter a avenida, prendeu a atenção do público ao longo de toda a apresentação.

A onça negra passou na primeira metade da maratona do paticumbum e só foi encontrar rival na escola derradeira.

Perto do raiar da Terça-Feira de Carnaval, a Unidos do Viradouro pisou a Sapucaí e, logo na abertura, uma cobra alaranjada com oito metros de comprimento surgiu sob um elemento cênico, rastejando veloz entre os dançarinos da comissão de frente. Ponto de partida do melhor desfile do ano, campeão com sobras.

Criação dos multipremiados Priscilla Mota e Rodrigo Negri (chamados, na bolha foliã, de Casal Segredo, pela comissão da troca de roupa, responsável pelo título da Unidos da Tijuca em 2010), a apresentação anunciava o enredo do carnavalesco Tarcisio Zanon, sobre o vodun serpente, simbolismo de Oxumarê no candomblé de Ketu, orixá representado também pelo arco-íris. A coreografia dos 15 integrantes complementava a história com perfeição.

A ideia surgiu de um brinquedo de Davi, filho de Priscilla e Rodrigo: uma cobra que funciona por controle remoto. Wesley Torquato, bailarino da comissão nascido no Morro da Providência (primeira favela do Rio), recebeu a incumbência de pilotar, deitado, o carrinho que fazia o equipamento rastejar. (O movimento, como o da onça, foi concebido por artistas importados do Festival de Parintins, dos bois Garantido e Caprichoso.) A Sapucaí delirou quando o bicho surgiu por uma passagem num canto da alegoria.

Para dar certo na apresentação à vera, onças, serpentes e todas as outras comissões de frente exigem treinamentos infinitos, numa dedicação fundamentalista dos artistas. A partir de agosto, começam os ensaios, normalmente escondidos nas madrugadas, para preservar o segredo. Com a aproximação do desfile, vira insanidade: treinos diários, repetições incontáveis, na busca da eliminação dos erros. Dançarinos e coreógrafos se assemelham a equipes olímpicas, tamanha a dedicação.

E custa caro. A comissão de frente da Grande Rio, a da onça, se aproximou de R$ 1 milhão (só as pulseiras e a logística de distribuição consumiram perto da metade), mostrando a urgência do incremento da receita para os grêmios carnavalescos. Daí, a aposta do futuro presidente da Liesa, Gabriel David (revelada em entrevista à Rio Já de fevereiro), em turbinar as fontes de arrecadação. A nova encarnação do espetáculo imortal será tecnológica – e, como sempre, irresistível.