A HISTÓRIA DA IMPRENSA VAI À LEILÃO

O prédio da Avenida Brasil 500 onde hoje é o Into

Jan Theophilo

Curiosamente, dois fatos absolutamente distintos mostraram o apogeu e a crise de um dos maiores mitos da imprensa brasileira: o Jornal do Brasil. Fundado em 1891, e tendo alcançado marcas como o jornal mais lido na América Latina, não apareceu um único interessado semanas atrás no lance inicial de R$ 1,9 milhão em um pacote que inclui outras marcas, como a então inovadora e hoje falecida Rádio Cidade. Quando o advento da internet deu aquele empurrãozinho final na derrocada financeira do jornal, o valor destes ativos chegou a ser estimado em quase R$ 250 milhões. Por outro lado, chegava às livrarias “JB – A invenção do melhor jornal do Brasil, conduzida por Odylo Costa, filho”, do jornalista Luiz Gutenberg. Nele, o autor narra como um jornal em crise, que sobrevivia de pequenos anúncios, se transformou num veículo que mudou a forma de fazer jornal e expressou, como nenhum outro, as transformações culturais e políticas do país.

Lançado basicamente para ser um panfleto pela volta da Monarquia, o JB não demorou a ser empastelado pela jovem República e acabou comprado primeiro por Ruy Barbosa, o Águia de Haia, e depois por uma holding liderada pelo conde Cândido Mendes. Foi o primeiro auge. Em 1900, o JB foi o primeiro veículo a enviar exemplares para todo o território nacional, e se tornou o jornal mais lido da América Latina, com uma tiragem de 60 mil exemplares, superando o argentino La Prensa. Mas, com as crises provocadas pela Primeira Guerra Mundial, a empresa passou por diversas mudanças societárias, até que em 1919 o conde Pereira Carneiro tornou-se acionista principal do jornal, nomeando como chefe de redação um jovem de 27 anos chamado Assis Chateaubriand, posteriormente o primeiro magnata da comunicação brasileira. Mas os anos seguintes não seriam fáceis para o JB.

Sofrendo com censuras e crises econômicas, o JB viveu nos anos 1930 sua fase de menor prestígio. No sufoco, passou a dar menos enfoque ao conteúdo e mais aos anúncios, sobretudo de serviços domésticos, que abarrotavam as páginas –  o comercial chegou a criar uma seção de classificados mais caros na primeira página, que formavam um “L” que ficou clássico na história da diagramação. A medida, embora tenha pagado as contas, levou o jornal a uma queda vertiginosa de qualidade, ganhando o apelido preconceituoso de “jornal das empregadas”, porque oferecia empregos de baixos salários. Em 1954 o conde morreu, e logo em seguida o jornal iniciaria um processo de mudanças que influenciaria a imprensa no mundo inteiro.

O livro de Luiz Gutenberg narra essa transformação, mas lançando novas luzes em seus três personagens principais: Maurina Pereira Carneiro, viúva do conde; seu genro, Manoel Francisco Nascimento Brito, o “Dr Brito”, diretor-executivo do jornal; e, naturalmente, Odylo Costa, filho, o chefe da redação que reuniu uma Seleção de 1982 (aquela que perdeu, mas jogou mais bonito) entre o que havia de melhor no jornalismo brasileiro da época. Jânio de Freitas chegou para reformular a primeira página. Carlos Castello Branco assinava a principal coluna de análise política do país. Carlos Lemos trouxe ares boêmios da Zona Sul da cidade e introduziu o uso de uma linguagem mais leve. E a escalação vai longe, com nomes como os de Wilson Figueiredo, Sérgio Noronha (o “Seu Nonô”, para os mais jovens), Ferreira Gullar e, entre muitos outros, Amílcar de Castro, que elevou a diagramação jornalística ao estado da arte. 

Sua reforma gráfica lançou mão de uma série de recursos que são hoje canônicos do design moderno. As fotos passaram a ser usadas de maneira ostensiva, dando importância estrutural para a composição de cada página. A preocupação com a legibilidade e a clareza de informações tornou-se prioridade. “Tudo que não era essencial à leitura, tirava para clarear um pouco o jornal, pra dar mais força à matéria escrita”, afirmou ele certa vez em entrevista. Amílcar foi ainda o criador do Caderno B, dedicado às artes e espetáculos, criando uma tendência copiada até hoje em praticamente todos os jornais do país. 

Em 1962 Alberto Dines chegou para vestir a camisa 10 e tornou-se editor-chefe do jornal, no qual permaneceu por doze anos. Era uma segunda fase áurea, que culminou na venda do belo edifício da Avenida Rio Branco e a mudança uma nova e moderníssima sede, na Avenida Brasil, 500, onde hoje é a sede do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO). “No dia da mudança me disseram que era para levar apenas minha caneta”, contou Carlos Lemos. Tudo na nova casa era o que havia de mais novo e moderno. O dono do jornal acreditava que a cidade iria recuperar a Zona Portuária, e embora tenha sido visionário pelas lentes de hoje, logo a nova e suntuosa sede havia se desvalorizado como um carro possante, assim que sai da concessionária.

Gutenberg em seu livro trata sobretudo de Odylo, e sugere que os problemas do Jornal do Brasil teriam se originado bem antes da mudança da sede, como comumente se supunha. Odylo assumiu o Jornal do Brasil 11 meses após a posse de Juscelino Kubitschek, e não era necessariamente um admirador do presidente Bossa Nova. Sua linha de oposição nem era tão dura assim, mas o bastante para a obra registrar que o poeta Augusto Frederico Schmidt, amigo de JK, certa vez comentou: “o obstáculo único nas relações do presidente com o Jornal do Brasil, tem nome, sobrenome e indicativo de filiação: Odylo Costa, filho”.

No dia seis de agosto de 1958, o secretário de estado dos Estados Unidos, John Foster Dulles, veio ao Rio para uma reunião com JK. No dia seguinte, a primeira página do JB trazia uma fotografia da reunião, na qual aparecem Juscelino, de pé, com as mãos espalmadas, e um Dulles de cara feia, olhando para baixo lendo um papel. Até aí tudo bem. Mas no Carnaval anterior fizera muito sucesso a marchinha “Me dá um dinheiro aí”, e como se sabia que o governo queria pedir empréstimos aos Estados Unidos, correu a história de que a legenda da foto repetira o versinho. A casa caiu. 

O ministro da Justiça queixou-se a Odylo de que a foto foi entendida como uma ofensa ao presidente. O governo congelou o processo de importação de novas rotativas para o JB e encerrou as conversas sobre a concessão de um dos dois canais de televisão que seriam concedidos– e que acabaram com Silvio Santos e o grupo Bloch. Em dezembro Odylo foi avisado que deveria demitir 40 jornalistas de uma redação já desidratada a 87 profissionais. Ele preferiu pedir o boné e ir para casa.

Com o advento da Ditadura Militar parecia que as coisas poderiam ganhar novo embalo. Ao contrário do mito corrente até hoje de que o JB era de esquerda, o jornal foi um dos maiores apoiadores do regime, segundo depoimentos de jornalistas como Jânio de Freitas e Elio Gaspari. Este, em sua série de livros sobre a Ditadura, relata que o “Dr Brito”, dono do jornal, recebia a deferência de três ligações semanais para falar de política com o general Golbery do Couto e Silva, que por sua vez reuniu-se mais de uma vez com os editorialistas do jornal para falar sobre o Serviço Nacional de Informações. 

Mas o fato é que, ainda assim, o JB sempre foi o jornal da elite pensante da Zona Sul da Guanabara. E, durante a ditadura, à medida que ela se distanciava da truculência militar, o jornal teve alguns de seus grandes momentos. Quando o caldo entornou de vez e foi baixado o AI-5, imediatamente instaurou-se a censura prévia nos meios de comunicação. Mas o JB acabou fazendo no dia seguinte um manifesto da inteligência contra a força. O que não podia ser dito, foi insinuado pela criatividade de toda uma redação. Na previsão do tempo, num quadrinho no alto da capa, um “editorial” arrasador: “Tempo negro. Temperatura sufocante. O ar está irrespirável. O país está sendo varrido por fortes ventos. Máx:38 graus em Brasília. Mín. 5 graus nas Laranjeiras”, bairro onde ficava a residência presidencial.

Outro drible de Garrincha do JB na Ditadura aconteceu após o golpe de estado que derrubou o presidente socialista Salvador Allende, do Chile. A redação do jornal recebeu um comunicado formal da Polícia Federal de que o assunto não deveria ser tratado nem com foto nem com manchete. Mas a dupla Alberto Dines e Carlos Lemos astutamente desmoralizou os censores: desenharam uma primeira página sem título, como queriam as autoridades, mas preenchida inteiramente com um único texto, dramatizado tipograficamente. Foi o silêncio mais clamoroso já registrado na imprensa do país. Por outro lado, mais uma vez caiu sepulcral silêncio sobre financiamentos do governo para a substituição das exauridas gráficas do jornal ou do sonhado canal de televisão.

Nos anos seguintes, o JB foi sangrando financeiramente, antecipando-se a uma crise que atinge toda a imprensa escrita. E mesmo enquanto suas estrelas iam aos montes para outros veículos, conseguiu ser inovador, tendo sido o primeiro jornal a lançar em 1995 sua versão online no Brasil. Houve ainda duas tentativas de grupos empresariais, sem sucesso, de devolver o velho matutino aos seus dias de glória. Agora, aguardava-se a definição de um novo lance mínimo para o leilão da marca. Mas o passivo trabalhista e financeiro do Jornal do Brasil assusta qualquer investidor. E para registro histórico, na bem-feita pesquisa de Luiz Gutenberg, comprova-se que a legenda verdadeira da foto que deixou JK pistola não era a letra da marchinha, mas a talvez não menos provocativa “Tenha paciência…mister”.