A GLORIOSA GLÓRIA

A Praça Paris é símbolo do bairro

Luisa Prochnik

Difícil começar uma reportagem quando se tem tanto para falar sobre um assunto e infinitos inícios possíveis. O assunto? É o bairro da Glória, lugar queridinho da cidade no momento. Pode-se começar escrevendo sobre a vida cultural no local, cada vez mais pulsante, opções gastronômicas, do boteco ao restaurante, ou sobre a Feira da Glória, com gastronomia e samba, que daria mais que uma matéria, mas uma revista inteirinha. Outras possibilidades? Muitas. Iniciar falando da quase secreta Prainha da Glória, com águas mais limpas e na crista da onda. Outro bom início é destacar a localização do bairro, um dos motivos do seu sucesso – entre o centro da cidade, bairros da zona sul e com uma estação de metrô. A Praça Paris é uma forma elegante de atrair o leitor logo na primeira linha, e um tema que também encheria sozinho páginas e páginas, da inauguração ao ponto de encontro que se tornou nos dias de hoje, ou o lindo Outeiro da Glória e o passado histórico de batalhas até a Belle Époque, com destaque para o Rio Antigo. De repente, abrir com o quilombo urbano, e sim, lá tem um, com sua deliciosa e já famosa feijoada e, também, samba. Pode-se falar também que todo este agito impõe um preço em desconforto, barulho para os moradores e uma cobrança enérgica de melhor organização do espaço.

Em meio a tantas dúvidas sobre como começar a falar deste bairro que se moderniza e já ganhou o apelido de Marais do Rio – citação do bairro nobre de Paris que um dia foi um pântano fétido pode ser umaboa ideia falar de Aline Duque e sua página na rede social chamada @diasdegloria_rj.

– Quando eu vim para a Glória, primeiro eu procurava o que fazer aqui e não achava ninguém falando sobre o lugar, e isso começou a me incomodar. Por exemplo, tinha uma menina, que é até minha amiga hoje, que falava sobre Santa Teresa no perfil ‘Tô em Santa’. Sobre outros lugares, tinha muita gente falando, Leblon, Ipanema, mas sobre a Glória não tinha nada. Eu lamentava: gente, não é possível, quero ir a um restaurante diferente aqui na Glória e não acho – conta Aline, sobre o início das postagens relacionadas ao bairro em que morava.

Aline chegou na Glória há seis anos, parece pouco tempo, e historicamente é, ainda mais para um local que tem uma batalha sangrenta registrada no ano de 1567 entre os portugueses e os indígenas Tamoios, resistentes ao processo em curso de colonização. O que são seis anos perto desse tempo todo? Uma eternidade, quando se fala sobre o atual status da Glória, de um bairro adormecido e pouco explorado para o local mais descolado do momento na cidade.

– A oportunidade foi a Glória, porque ninguém queria, em 2011. Ainda era um bairro em que nada acontecia, aí eu comprei esse local e só pude abrir em 2022 –  relembra Denise Milfont, atriz e gestora cultural, dona do Tropigalpão, um espaço cultural bacanérrimo, que volta a ser citado aqui em breve.

– Queríamos vista, apartamento amplo, não precisava ser novo, queríamos que tivesse playground, área de lazer, salão de festa, academia. Na época, a Glória era um bairro com bons preços e tudo descrito acima – explica Denise Mesquita de Barros, ao falar sobre sua opção feita em 2019, mesmo período em que Aline se mudou para o bairro.

Aliás, voltando à Aline, ela foi uma espécie de guia desta reportagem. Diante de tanto a se contar, uma especialista local, hoje com quase 30 mil seguidores em sua página, é um luxo. Aline é enfermeira, apaixonada por história e, ao caminhar com ela pelas ruas da Glória, interrompidas por uma kombi anunciando a venda de frutas, a sensação é de se estar em casa. No caso, na casa dela, que, muito gentilmente, abriu as portas para a apresentar à ‘Rio Já’. A primeira parada é em um estiloso café, o Heimen, que se apresenta como ‘espaço de convívio e descanso’. Uma decoração estilo industrial, com banco da praça pichado e obras do artista Márcio de Carvalho. “Um café latte gelado, por favor”.

– O Café Heimen abriu como uma experiência e precisavam de um barista, eu fui indicada, dei match e estou aqui até hoje, há três anos fazendo o meu trabalho – diz Maiara Batista, enquanto prepara as deliciosas bebidas. Ela não mora, trabalha na Glória, mas já está habituada com a diversidade de visitantes

– É todo tipo de pessoa, até os animais são bem-vindos aqui, todo mundo vem, da criança até o mais velho. Aqui não é um lugar para se tomar um café e sair correndo, é realmente um lugar para se ficar aconchegado, sentar, trocar uma ideia.

E é essa a proposta da Aline para continuar o bate-papo sobre a região, que passa por um processo de revitalização da prefeitura chamado ‘Dias de Glória’, iniciado em 2022, quando  o bairro ainda fazia parte da subprefeitura da Zona Sul. Em 2023, o prefeito Eduardo Paes, através de um decreto, transfere a administração do bairro da Glória para a subprefeitura do Centro.

– Teve essa mudança na época e todo mundo ficou apreensivo. Geograficamente, a Glória segue sendo Zona Sul, mas administrativamente não. A revitalização da Glória vem junto com um processo de revitalização do centro da cidade – especula Aline. 

O ‘Dias de Glória’ inclui recapeamento de várias ruas, revitalização de áreas dentro do bairro e inclusão de placas de informação para turistas, além de restauração de bens tombados, abundantes na região: para cada canto que se olha há uma casa antiga, uma estátua e até mesmo as árvores – as amendoeiras da Praça Paris – são tombadas. A museóloga e moradora da Glória Mariana Várzea, encantada com o museu a céu aberto que por aqui encontrou, criou o projeto ‘Ó Glória’, que, segundo o próprio site, “ilumina a riqueza cultural carioca a partir da história urbana da Glória, bairro que possui uma das maiores densidades de bens arquitetônicos preservados por metro quadrado do Rio de Janeiro”. Peça ilustre desse grande museu, construída em 1926, restaurada e reinaugurada em 1992, quando ganha grades, a Praça Paris, como o próprio nome sugere, teve inspiração francesa.

– Lá, eles aproveitam o sol o tempo todo. E a gente é o contrário, a gente precisa de sombra. Então, inicialmente, o projeto era sem nada, e, depois, eles viram a necessidade, plantaram as amendoeiras em volta da praça toda – conta Aline, que frequenta a praça, que fica aberta de 06h às 22h, assim como grupos de corrida, famílias e bandas de bloco e pernaltas, que ensaiam por lá.

O Café Heimen está no térreo do Tropigalpão e é no segundo andar que estão as obras de Anísio Couto e o próprio artista para contar tudo sobre sua arte. Ao abrir sua sala de exibição, ele canta. E diz que se inspira em outros artistas, “luzes que iluminam o seu caminho”. As pinturas de Anísio seguem o estilo artístico que se caracteriza por ser espontâneo, original e intuitivo, a arte naïf. Quadros coloridos, que contam sobre o Brasil, retratando engenho e plantação de Cacau, que exibem cenas singelas e cotidianas, como jogo de bola de gude no recreio da escola, e que trazem imagens impactantes e originais, criadas pelo artista, que ele chama de ‘olho de espinho’, inspirado livremente no mandacaru e no abacaxi. Anísio nos conta sobre o uso da tinta francesa e nos convida a olhar, lateralmente, um de seus quadros.

– Você pode chegar até mais perto, está vendo? Dentro do olho, ela brilha – ele guia até que o brilho aparece. Brilho proveniente da tinta por ele escolhida e, também, de toda a alegria e do amor pela arte que Anísio transborda durante toda a apresentação de seus quadros.

Cultura e bens materiais, amendoeiras e praia. Sim, a Prainha da Glória, conhece?

– O projeto de despoluição da Baía de Guanabara, que é antigo, que vem desde a Olimpíada, está se refletindo refletindo agora. A prainha da glória tem uma placa e está liberada para banho – exalta Aline, com confirmação do Instituto Estadual do Ambiente (Inea), que, desde 2024, passou a monitorar a balneabilidade do local e os banhistas estão liberados para aproveitar o local.

Se o bairro está cada vez mais badalado, o grande destaque vai para a Feira da Glória. A ‘Rio Já’ esteve por lá, ano passado, em reportagem de Caroline da Rocha. Continua linda. A Feira é tradicional e, nos anos 80, já se destacava como pólo gastronômico. Mas, agora, ela é simplesmente a queridinha máxima do carioca. Na página em rede social produzida pelos feirantes, eles afirmam que é “a maior feira livre do Rio”. Os superlativos valem também para as filas. A barraca mais comentada é a de Comida Nigeriana da Latifa, e a espera por um de seus pratos aglomera tanta gente, que a qualidade fica mais que comprovada. À tarde, a música começa. Tem chorinho, tem pagode, tem roda de samba, todos os finais de semana. Destaque para a ‘Gloriosa Roda se Samba’, que se apresenta no terceiro domingo do mês, declarada oficialmente Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial da Cidade do Rio de Janeiro.

De volta ao Tropigalpão, após o passeio entre as cores de Anísio Couto, encontra-se no último andar um lindo jardim. Gastronomia, cultura e natureza, tudo junto e misturado, bem o estilo “gloriano” de ser. Mas a surpresa fica por conta de uma revelação da Aline Duque, enquanto se sobe uma escadaria, com resquícios de tinta verde e amarela da última Copa do Mundo. Mal dá tempo de recuperar o ar quando ela avisa: aqui também tem quilombo, um quilombo urbano: o Quilombo Ferreira Diniz. Famoso pela feijoada da tia Cida, com samba, simpatia e resistência, sempre.

– A minha avó veio antes. Depois, trouxe os filhos. Eu nasci aqui – diz Rodrigo Ferreira Lopes, filho da tia Cida – as pessoas agora estão começando a se interessar mais pela história do bairro. E aí, com isso, trouxe um pouco mais de visibilidade para cá e menos preconceito, porque assim, por ser um quilombo dentro de um bairro de classe média, que é a rua Cândido Mendes, na Glória, as pessoas aqui eram muito discriminadas. Então, com esse boom, todo o bairro, hoje, sendo um dos bairros mais cultos do mundo, trouxe às pessoas o interesse na história do lugar. Então, acho que a gente está passando por um momento de desenvolvimento, conhecimento e respeito também.

A Glória foi escolhida o nono bairro mais legal do mundo em lista da revista britânica, a “Time Out”. Ao falar sobre o bairro, o texto da reportagem diz: “”está passando por uma transformação, e graças a um público mais jovem que está agitando as coisas, há muitos motivos para visitar essa área há muito negligenciada”. A Glória também foi escolhida para ser cenário da nova versão da novela “Vale Tudo”, da TV Globo. Pois é, a família Roitman agora mora na Glória, em um casarão no alto, impedindo que eles se misturem com o povo e com as maravilhas do bairro. Pena para eles.

O crescimento exponencial da Glória inclui a chegada de novos bares e restaurantes. Além dos tradicionais e bem servidos locais e dos botecos típicos, agora tem opção de frutos do mar até pizza quadrada com dj. A irreverência, no entanto, cobra um preço. Um preço alto. Na página @informegloriano, uma postagem séria mostra o tormento que muitos moradores, a maioria nem é contra o crescimento e o reconhecimento do bairro, estão vivendo.

– Aqui na Glória e em bairros vizinhos, como o Centro, a quantidade de eventos tem aumentado, refletindo a rica e pulsante cultura local, que traz vida e movimento à região. No entanto, parte desses eventos não respeita as regras estabelecidas, e muitos acontecem em áreas estritamente residenciais, bem embaixo dos prédios, onde o barulho invade os lares dos moradores. O que poderia ser uma celebração da cultura acaba se tornando uma fonte de estresse e prejuízo à qualidade de vida dos que ali vivem – trecho da publicação da página, que tem como título: Barulho em excesso também mata: estudo associa ruído constante a doenças graves.

– Sugiro que faça um controle de volume e de horário, respeitando as leis. Bom senso! Como o que os moradores da Gávea conseguiram com os shows no Jóquei.

A Marina (Marina da Glória, que sempre tem grandes eventos, shows) tem esta preocupação e uma equipe mede o som. Eu já os chamei até a minha casa para medirem e viram o absurdo – relata Denise, a entrevistada que chegou ao bairro em 2019, atrás de uma linda vista e bons preços – O fato de ter se tornado o parque de diversões da cidade, incomoda demais. E olha que gosto de música, de Carnaval, de corrida. No momento que te escrevo, está tendo um show na Marina, uma roda de samba na praça, uma festa no Boqueirão e o Labuta lotado. Moro no 10° andar e o som invade a minha casa de um jeito inacreditável. Tenho janelas anti-ruídos que amenizam um pouco mas tem noites que é impossível dormir. Todo mundo se incomoda. Todo domingo tem festa no Boqueirão e corrida no Aterro começando cedinho. O “animador” ao microfone faz o favor de acordar a vizinhança por volta das 7h.

O sucesso do bairro traz barulho e também preços mais caros para quem, agora, quer por lá morar. O metro quadrado está valorizado e os preços não são mais acessíveis como já foram um dia. Até mesmo o consumo local vai ganhando opções mais sofisticadas e caras, como, por exemplo, restaurantes mais badalados, e o que um dia já foi mais barato, como uma cerveja gelada no boteco, também tem aumento de preço.

Um lugar descolado é um lugar que tem um caráter moderno, inovador, criativo. Não barulhento e desagradável. E nem inacessível. No entanto, essa é uma combinação comum, bem conhecida, quando uma região cresce e, de fato, é muito mais bem cuidada, o que sempre é uma ótima notícia para a cidade como um todo. Agora, como achar o equilíbrio? Essa resposta o bairro da Glória terá como desafio para os próximos anos. Enquanto as respostas definitivas não vêm, os moradores, como Denise e tantos outros que lutam por regras mais claras e que as mesmas sejam obedecidas, aproveitam os encantos locais e o privilégio de se estar em uma região tão cobiçada nos dias de hoje.

– Adoro caminhar no Aterro pela manhã e no fim da tarde. A Casa da Glória, O Labuta Mar, O Palácio Presidencial. Gosto de ir a pé para o MAM, para o Teatro Adolpho Bloch, para o Centro e para o Santos Dumont (sem bagagem vou e volto tranquilamente, de dia). Caminhar pelas ruas admirando a arquitetura e história do bairro – conta Denise.