Luisa Prochnik
Um capítulo importante da história musical brasileira veste farda e apaga incêndios, dependendo da escala do dia. A fachada vermelha imponente do Quartel Central do Corpo de Bombeiros dá o tom de solenidade. Dentro, o pátio segue a mesma partitura, ocupa um espaço enorme com caminhões estacionados, prontos para apagar incêndios e salvar vidas. Dali, há saídas diversas para outras áreas dentro do batalhão. Caso você se perca, diz um oficial, peça ajuda no caminho.
As paredes do pátio, também vermelhas, estão ocupadas por histórias, feitos e tradições. Perder-se parece o mais provável, mas a ajuda chega em notas musicais, na melodia do saxofone tenor, um guia confiável para alcançar a “Sala de Ensaio Mestre Anacleto de Medeiros”. O nome é referência ao primeiro maestro da Banda Sinfônica do Corpo de Bombeiros, criada em 1896, quando o Rio ainda era a capital do país.
– As bandas marciais são patrimônios indispensáveis para instituições militares. Destinam-se ao adestramento da tropa, elevando o ânimo do soldado através do acompanhamento das tropas em marchas, ritmando os movimentos por meio da cadência, despertando o espírito cívico e patriótico através da execução dos hinos pátrios – explica o maestro titular da Banda e comandante do Grupamento de Bombeiros Músicos (GBMus), Franquimar Francisco Fernandes.
O dever marcha lado a lado com prazer, o ritmo militar se mistura ao popular. Ainda no fim do século XIX e começo do XX, sob o comando de Anacleto de Medeiros, a Banda do Corpo de Bombeiros apresentava-se em eventos solenes, mas também protagonizou as primeiras gravações em disco realizadas no país, na Casa Edison, tocando música de artistas diversos e composições próprias. No catálogo de 1902, editado por Frederico Figner, com a relação dos primeiros discos etiquetados para a venda no Brasil a Banda tocava valsas, polcas, marchas, tangos, entre outros ritmos, como conta o livro ‘A Casa Edison e seu Tempo’, de Humberto Franceschi.
Segundo artigo acadêmico de Antonio J. Augusto, doutor em História Social:, “desde a estreia, a Banda do Corpo de Bombeiros desenvolveu uma trajetória de sucesso marcada pela realização dos primeiros registros sonoros feitos no Brasil, pela profissionalização de vários músicos importantes da nossa história e pela consolidação do mais importante acervo de música escrita para banda de nosso país”.
De volta a 2023, a Banda apresenta-se em formaturas, em eventos do Corpo de Bombeiros por todo o Estado do Rio, em festividades na Assembleia Legislativa, no Poder Judiciário e na Polícia Federal. E está presente em eventos mais populares, sociais, shows, às vezes incluindo instrumentos como guitarra para uma versão mais pop. O repertório de cada apresentação é definido pelo maestro e envolve desde composições próprias e históricas da Banda, como músicas clássicas, rock nacional e internacional, sambas, marchinhas e mais.
A Banda Sinfônica do Corpo de Bombeiros foi declarada Patrimônio Cultural Imaterial do povo carioca em 2015. No argumento que defende este projeto, há uma releitura do lema dos Bombeiros para uma versão mais sonora, que diz: “salvar vidas através da arte e proteger a riqueza musical de nosso país com suas lendárias apresentações”.
Daniel Kaeser, subcomandante responsável pelo sax tenor, que guiou a Rio Já até a sala de ensaio, ingressou na Banda em 2002, através de concurso. Assim como os outros músicos, no entanto, ele se divide entre o sax, serviços administrativos e combate a incêndios.
– Fiquei por oito anos como clarinetista até passar para o saxofone barítono por necessidade da banda e de meu interesse. Hoje, também estou tocando o saxofone tenor por necessidade da banda, devido a um longo período sem abrir concursos — conta o subcomandante.
– Nós temos o naipe de clarinetas, flautas, saxofones, trompetes, trombones e percussão. Todavia, todos estão incompletos. Faltam os naipes de oboés, fagotes, clarones, trompas, tubas, contrabaixos acústicos. Entretanto, por ocasião do concurso para 3º Sargento Músico que está em pauta, vamos completar a escalação – afirma o maestro Franquimar.
Com a chegada de novos músicos – atualmente são 57 – os planos são transformar a banda em uma Orquestra Sinfônica. Enquanto o projeto não se concretiza, o sax tenor do subcomandante Daniel Kaeser aquece com a escala, mas não está mais sozinho. Outros músicos já chegaram e flautas, clarinetas, trompetes e trombones concorrem com seus timbres diferenciados. As partituras são distribuídas, cadeiras ocupadas e instrumentos afinados.
O ensaio começa. “Banda. Sentido”. Músicos de pé prestam continência ao maestro. A primeira música é “Weare the Champion”, do Queen, e, na sequência, tocam “Jesus Joy’s of Men Desiring”, de Johann Sebastian Bach. Nos intervalos, acertam os arranjos, refinam a harmonia e repetem até a perfeição.
A manhã musical envolve também gravações para as redes sociais. Todas as sextas são publicados vídeos nos canais digitais do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, com homenagens a datas festivas e a personalidades da música. Roberto Carlos, Raça Negra, Lulu Santos, sambas, frevos, marchinhas, baladas românticas, entre outros estilos musicais. No dia da nossa visita, Rita Lee, falecida na véspera, foi relembrada com o clássico: “Caso Sério”.