Aydano André Motta
Ícone da revolução urbanística que fez renascer a região portuária da cidade, o Boulevard Olímpico ostenta agora a mais sedutora cereja no seu bolo de encantos. O Al Farabi renasce nas franjas da Baía de Guanabara, vizinho da Candelária e da pira dos Jogos de 2016, firmando-se como atração numa das regiões mais bonitas da terra carioca. Por lá, vigora a irresistível conjugação da vida na rua, com boa comida, música de primeira, exposições e uma inegociável celebração da cultura. Melhor receita.
Inaugurado no último inverno, o lugar rapidamente atraiu público cativo e numeroso, no boca-a-boca clássico de quem conhece os caminhos do Rio. Observar a multidão atenta aos debates e palestras ou em torno da batucada, em meio a brindes, garrafas e sorrisos, certifica a revitalização da área historicamente degradada, agora definitivamente reintegrada à cidade. O Alfa (apelido ultracarioca dado pelos frequentadores) é um sucesso.
E em verdade, trata-se de um renascimento. Aberto em 2004, o Al Farabi foi inicialmente um sebo, na Rua do Rosário, mas para contornar a crise que se abateu sobre as livrarias com a tempestade causada pela internet, em 2007, a casa transfigurou-se no formato híbrido de bar e loja de livros usados. Aos poucos, e com os muitos eventos que animavam o lugar – rodas de samba nas terças e sextas, feijoadas aos sábados, concorridos lançamentos literários –, tornou-se dos mais badalados pontos do Centro.
A versão atualizada carrega predicados até estruturais: suas instalações dão acesso a dois pátios, onde ficam as mesinhas ao ar livre: de um lado, a Rua do Mercado, com seu casario tradicional; do outro, o Boulevard Olímpico, que se abre para a Baía de Guanabara e sua moldura de montanhas. O ambiente interno apresenta belos móveis em madeira e estantes de livros usados, garantindo o clima aconchegante e caseiro.
“Imaginar sermos herdeiros do Zicartola é uma honra imensa. Claro que bar antológico serve de inspiração e referência. Nossa proposta acaba reunindo, no dia-a-dia, intelectuais, professores, escritores, e todo um público que enxerga a cultura como a gente: acontecendo a toda hora, em todos os campos – inclusive num bar”
(Evelyn Chaves, sócia do lugar com as amigas Cândida Carneiro e Monica D’Ângelo)
“A ideia sempre foi transformar o sebo em um ponto de encontro cultural, onde não se consome apenas cerveja, petiscos e drinks, mas também vivências culturais únicas”, traduz Evelyn Chaves, sócia do lugar com as amigas Cândida Carneiro e Monica D’Ângelo. “Visitamos vários imóveis para locação, mas quando nos deparamos com a loja com dois pátios – um deles no Boulevard Olímpico – imaginamos instantaneamente o lugar cheio de clientes se divertindo, com samba, jazz, bebidas e petiscos”, relembra.
Evelyn narra com entusiasmo contagiante a aventura de três mulheres num setor ainda muito masculino. “O botequim foi construído historicamente como ambiente da classe trabalhadora, essencialmente machista. Ser dona de bar é desafiador e enriquecedor, mas a experiência frequentemente traz à tona as desigualdades de gênero. Às vezes ainda ouvimos perguntas como ‘Você entende mesmo de bebidas?’”, admira-se, acrescentando que a estranheza une clientes e fornecedores, mas não dura muito. “Apesar desses desafios, a gente acredita que ser dona de bar é também espaço de transformação e empoderamento. Esperamos encorajar mais mulheres a investir no ramo”.
Criado com a consultoria do chef Rogério Germano, o cardápio oferece almoço com pratos tradicionais da culinária brasileira, como o picadinho carioca (carne picada na ponta da faca, molho roti, farofa de alho, arroz branco, ovo pochê e banana assada). Tem também novidades como a suculenta costelinha de porco assada, servida com barbecue de maçã e salada de repolho roxo e fritas. Sextas e sábados especiais entram em cartaz clássicos consagrados, como o bobó de camarão, servido com farofinha dendê e arroz branco, e a feijoada tradicional (carne seca, lombo, rabo, paio e linguiça, acompanhados de arroz branco, couve com bacon e laranja). Para obedecer à contemporaneidade gastronômica, há pratos vegetarianos, como lasanha de berinjela. Uma vitrine chama atenção com opções de bons petiscos para serem compartilhados. Por fim, de terça a quinta, o menu executivo, renovado semanalmente.
Mas o Alfa mata todo tipo de fome, especialmente a de cultura. Tem como eventos fixos o Samba do André Diniz (todo primeiro domingo do mês, sempre com um convidado especial), o Enredos do meu Samba (segundo domingo, quando convidados tocam sambas-enredo clássicos e atendem pedidos da plateia), o Canta Canta Minha Gente (segundo sábado, show dos netos de Martinho da Vila Raoni e Dandara Ventapane) e o Roda na Rua (terceiro sábado, sempre com convidado especial; no dia 23 será Gabriel da Muda).
Virou ponto de artistas que apostam no jeito mais carioca de se apresentar. Roberta Sá e Moacyr Luz cantaram no Samba do André Diniz; ícones da Sapucaí, como Rosa Magalhães, Renato Lage e Mestre Ciça ganharam tardes de homenagens emocionantes. E ainda teve exposição com obras inéditas de Nelson Sargento.
O Alfa se firma, assim, como herdeiro de empreendimentos representativos, como o Zicartola, restaurante de Cartola e Dona Zica que funcionou na década de 1960 num sobrado na Rua da Carioca. Virou rapidamente ponto de encontro de sambistas como Elton Medeiros, Hermínio Bello de Carvalho, Nelson Cavaquinho, Zé Ketti, Ismael Silva e Aracy de Almeida, além de palco no início das carreiras de Paulinho da Viola e Clara Nunes.
“Imaginar sermos herdeiros do Zicartola é uma honra imensa. Claro que bar antológico serve de inspiração e referência. Nossa proposta acaba reunindo, no dia-a-dia, intelectuais, professores, escritores, e todo um público que enxerga a cultura como a gente: acontecendo a toda hora, em todos os campos – inclusive num bar”, explica Evelyn, referindo-se também à curadoria do historiador Luiz Antonio Simas.
Maomé Alfarábi foi um filósofo árabe que influenciou uma gama de filósofos muçulmanos na Idade Média, e era interessado tanto por química, ciências naturais e física, quanto por ética, ciência política e filosofia da religião
E esse nome? Maomé Alfarábi foi um filósofo árabe que influenciou uma gama de filósofos muçulmanos na Idade Média, e era interessado tanto por química, ciências naturais e física, quanto por ética, ciência política e filosofia da religião. De seu nome derivam as palavras alfarrábio, referente aos livros antigos, e alfarrabista, que designa os sebos, ou pessoas que vendem ou trocam livros usados.
Agora, na mais irresistível filosofia carioca.
SERVIÇO
Al Farabi Bar e Sebo: Rua do Mercado 34 (Entrada pelo Boulevard Olímpico). Metrô: Estação Carioca. Tel: 21-3553-1518. Instagram: @alfa_bar_e_cultura. Horário: quartas, de 12h às 17h; quintas a domingos, de 12h às 19h. Dias de evento: de 12h às 21h.