Por Jan Theophilo
A Sapucaí vai falar o sotaque de uma região do país que reza pela cartilha da esquerda: seis das 12 escolas de samba do Rio exibirão em seus enredos temas ligados ao Nordeste, sua história, cultura e ancestralidade
Caetano Veloso disse certa vez que é na Mangueira que o Rio é mais baiano. Ôxe, pode até ser. Mas, na verdade, o Nordeste brasileiro é uma região de expressão cultural tão vibrante e poderosa, que leva a quem trabalha com cultura e arte a contar com um material muito rico para explorar. E o resultado é que este ano, na Marquês de Sapucaí, nada menos que seis das 12 escolas do Grupo Especial apresentarão temas ligados a histórias da turma que vota na esquerda e tira nota boa no Enem. Arre, égua!
Os “enredos nordestinos” fogem dos temas questionadores que andaram em moda no universo das escolas de samba. Eles enfocam temas regionais onde celebram a informação e conhecimento versados nas artes carnavalescas, uma combinação que em muitos carnavais trouxe desfiles memoráveis, conquistando, inclusive, títulos. Em 1961 a então pequena Tupy de Braz de Pina colocou seu nome na história ao desfilar com o enredo “Seca no Nordeste”. O samba, que contou com lirismo e poesia as dificuldades da terra seca nordestina, se tornou um dos mais belos de todos os tempos. Jamelão, o maior intérprete do carnaval, dizia ser seu samba favorito. A obra foi regravada por grandes nomes da música brasileira, como Clara Nunes, Fagner e Ivan Lins.
Na Mangueira, a pegada continuará sendo a de tratar temas sérios, como política, sociedade e racismo, a partir da alegria do carnaval. A verde e rosa vai abordar a ancestralidade e a cultura afro-brasileira com o título “As Áfricas que a Bahia canta”. O enredo fará uma homenagem aos antigos cortejos afro do Carnaval baiano, mostrando como eles foram fundamentais em um processo de resistência, lutas e de reafricanização do território baiano. “E a gente refaz esse processo destacando principalmente o protagonismo feminino nesses cortejos, sejam como líderes políticas, artísticas ou musicais”, diz o carnavalesco da escola, Guilherme Estevão. “E a partir da ancestralidade desses cortejos, a gente procura desmontar uma visão deturpada, racista até, que a África e os africanos que chegaram no Brasil eram uma coisa só. Com isso, ao longo de dois ou três séculos, os cortejos foram, além de arte e diversão, uma forma de conquista de direitos da população preta de Salvador”.
Já na Beija-Flor, o enredo “Brava gente! O grito dos excluídos no Bicentenário da Independência”, promete bater mais forte. Saem de cena os Bragança e as conspirações da corte no Rio para ganhar destaque o 2 de julho de 1823, data que comemora a expulsão dos portugueses de Salvador. “A gente quer trazer um pouco das batalhas que aconteceram pós-independência e principalmente nas que aconteceram no Norte e no Nordeste do país. Por quê? Porque muitas dessas batalhas, quando a gente estuda, são tratadas como conflitos regionais, periféricos. Quando na verdade elas são de extrema importância para a conjuntura nacional do momento”, explica o carnavalesco André Rodrigues.
Além da vitória baiana sobre os portugueses, a escola lembrará de outras sublevações de fundamental importância para a história nacional, como a pernambucana Confederação do Equador (1824), ou a Cabanagem (1835), que ocorreu na Província do Grão-Pará, que englobava os atuais estados brasileiros da Região Norte. “Mas o mais legal mesmo é o 2 de julho, que marca o desquite entre a Bahia e Portugal”, empolga-se André Rodrigues: “Além do que, os principais personagens deste movimento são mulheres, e, principalmente, mulheres pretas. A Maria Quitéria, tudo bem, não era exatamente preta, mas tem a Maria Felipa, que é importantíssima. E todas essas personagens estarão no desfile, encarnados por convidados especiais da diretoria da escola”.
A Imperatriz Leopoldinense, por sua vez, foi beber na fonte da literatura de cordel para desfilar com o enredo “O aperreio do cabra que excomungado tratou como má-quebrança e o santíssimo não deu guarida”. Ariano Suassuna ia delirar. A narrativa tem como base obras populares do gênero, como “A chegada de Lampião no inferno”, “O grande debate que teve Lampião com São Pedro” e “A chegada de Lampião no céu”. Será um “delírio narrativo”, conforme explica o carnavalesco Leandro Vieira. “Vamos ter, por exemplo, o Lampião, mas um Lampião muito louco, com imagens muito loucas. É um Lampião que vai ao céu e ao inferno. E como eu nunca fui a nenhum desses dois lugares, estou inventando como era. Então só pode ser uma loucura”, diz ele. Além dos cangaceiros, a escola levará outros personagens nordestinos conhecidos, como o Padre Cícero ou Mestre Vitalino, um dos maiores artistas da arte do barro do Brasil.
E a presença nordestina não para por aí. A Vila Isabel vai levar para a Sapucaí a poética das festas de cunho religioso que mobilizam a população brasileira com o enredo “Nessa festa, eu levo fé”, do carnavalesco Paulo Barros. A Mocidade falará de arte popular nos levando para Pernambuco, mais especificamente para a cidade de Caruaru, na região conhecida como Alto do Moura, onde está localizado o maior Centro de Artes figurativas das Américas. E a Unidos da Tijuca mostrará uma das mais belas regiões do nosso país: a Baia de Todos os Santos, na Bahia. Ao fim e ao cabo, são todas histórias que possuem imensa riqueza cultural e visual, com boas possibilidades de surpreender principalmente, aqueles sudestinos que acham que o Nordeste se limita ao quadrado de Trancoso.