REVOLUÇÃO DESLUMBRANTE

POR JAN THEOPHILO

Nada evoluiu tanto na avenida nas últimas décadas do que as apresentações das comissões de frente das escolas de samba. A cada ano mais surpreendentes, elas viraram quase um espetáculo à parte, aguardadas com mais e mais expectativa pelo público. E existe quase uma unanimidade em torno do momento em que essas mudanças se concretizaram e pautaram quase tudo o que aconteceu no futuro: a noite de 14 de fevereiro de 2010, quando a Unidos da Tijuca entrou na Marquês de Sapucaí para defender o enredo “É segredo”, com a famosa comissão de frente criada por Priscila Mota e Rodrigo Neri onde os integrantes trocavam de roupa à vista de todos na Marquês de Sapucaí. “A partir dali o quesito ganhou uma grande reformulação, principalmente em termos de investimento e notoriedade, provando que pode sim fazer diferença e até trazer um campeonato para a escola como aconteceu com a gente”, diz Priscila Mota.

Durante décadas as comissões de frente foram um show de mesmice. Limitavam-se a passagem de baluartes, membros da velha guarda dos compositores ou diretores, fazendo reverência ao público. Nos anos 1970, o carnavalesco Fernando Pamplona começou a introduzir no Salgueiro a ideia de que a Comissão de Frente deveria ter uma concepção de figurino que fizesse parte da estrutura do enredo. Mas foram precisos outros 20 anos para a revolução explodir para valer. “Nos anos 1990 a gente via duas vertentes claras: uma protagonizada pelo Fábio de Mello na Imperatriz Leopoldinense, que começa a usar estruturas, no sentido de ganhar maior desenvolvimento cenográfico e, paralelamente, o trabalho do Carlinhos de Jesus, que era coreografado, mas numa estrutura mais do artista, ligado à escola, e ao samba como movimento de dança”, diz Marcelo Misialdis, responsável pela comissão da Beija-Flor, com 25 anos de carnaval e um dos mais longevos representante do plantel de artistas deste setor.

Segundo ele, a partir destes movimentos, as comissões de frente foram ganhando mais liberdade e “se livrando do excesso de regras limitadoras”. Hoje, praticamente a única regra é que ela tem que ter no máximo 15 integrantes em cena. “No fim dos anos 1990, uma escola que não lembro agora queria fazer uma comissão sobre patins e foi proibida. Porque, acredite, naquela época qualquer coisa sobre rodas era considerada pelo regulamento carro-alegórico. Devido a essa discussão, no ano seguinte liberaram as rodinhas, e aí abriu espaço para os tripés”, conta Marcelo. “Virou um inferno, porque os figurinos ficaram enormes e precisávamos achar homens de mais de 1,85 para conseguir carregar aquelas cangalhas”, brinca Marcio Moura, coreógrafo da Vila Isabel.

“O fato é que a apresentação da comissão de frente da Unidos da Tijuca em 2010 foi uma virada artística que tirou todo mundo da zona de conforto”, diz Hélio Bejani, coreógrafo da Grande Rio: “A partir dali houve entre as comissões de frente uma coisa meio “deixa os coreógrafos viajarem”, e aí a gente viajou mesmo”. E então os anjos tronxos do vale do silício invadiram a Sapucaí. Teve gente voando, piscina com água de verdade na avenida, Nossa Senhora gigante feita com leds que mudavam de cor. As inovações tecnológicas cresceram tanto que em sua “Enciclopédia da Brasilidade”, o ex-reitor da UFRJ, Carlos Lessa, chegou a afirmar que as escolas haviam perdido para a espontaneidade dos blocos o protagonismo do verdadeiro carnaval carioca, porque estavam se transformando em megaespectáculos estilo Broadway.

De fato, entre os coreógrafos, existe uma discussão nos bastidores do carnaval sobre se ele deve absorver os truques internacionais por uma questão puramente competitiva (ou seja, quem copiar algo lá de fora primeiro talvez surpreenda os jurados e ganhe mais pontos), ou se as novas tecnologias devem ser acolhidas, porém abrasileiradas. A questão é que para a importância do Carnaval na economia do Rio, não é razoável apostar em um formato de espetáculo com truques e mágicas que um turista americano ou europeu tenha visto semana passada no cassino de sua cidade. “Eu acho que o grande barato é que o carnaval sim, se desenvolva em todos os aspectos que envolvem a contemporaneidade do espetáculo, mas que haja um investimento em originalidade e um processo criativo ligado ao modelo de espetáculo genuinamente brasileiro, carioca: esta ópera de rua que é o nosso carnaval”, diz Marcelo Misialdis.

“Não faz sentido nenhum a gente querer fazer aqui a Parada da Disney”, pondera Carlinhos de Jesus: “mas sim usar a tecnologia, modernizá-la e acrescentar a nossa criatividade”. O coreógrafo, que marcou época Mangueira, apresentou em 1999 uma das maiores comissões de frente da história do carnaval, trazendo “do céu” 14 baluartes do samba já falecidos: Clementina de Jesus, Tia Ciata, Clara Nunes, Mestre Fuleiro, Noel Rosa, Sinhô, Donga, Nelson Cavaquinho, Natal, Ismael Silva, Carmen Miranda, Noel Rosa, Candeia, Pixinguinha. Cada um portando um objeto que servia como marca pessoal e uma espécie de amuleto de incorporação. Em alguns casos, originais, como os óculos de Cartola. Foi uma comoção na avenida. Ao ponto de Lygia Santos, filha de Donga, tentar entrar na Passarela do Samba para pedir benção ao pai!

Naquele ano, a Verde e Rosa se preparava para tentar o bicampeonato. Em uma noite da disputa para a escolha do hino da escola, Carlinhos de Jesus avistou uma faixa entre os torcedores no Palácio do Samba com os dizeres: “Sinhô, Ismael, Pixinguinha. Cartola, Noel, Candeia. Ecoa no céu, Mangueira. Traz todo samba pra Estação Primeira”. Era o refrão do meio do samba concorrente de Adalberto, Jocelino e Jerônimo. A inspiração bateu na hora. “Quando saiu o resultado e o samba ganhou, o presidente me perguntou brincando qual seria a comissão de frente. E eu disse tá vendo ali, vou trazer aqueles caras do céu”, brinca Carlinhos.

“Como?”, perguntou Elmo dos Santos, o presidente da escola. “Com máscaras”, respondeu Carlinhos, sem dar mais detalhes. O empolgado presidente, então, lembrou que na rua da Alfândega, no Centro do Rio, era possível comprar máscaras de plástico de personalidades, sem fazer a menor ideia do ambicioso plano do responsável pela comissão. Meses antes, num raro dia de folga, Carlinhos se viu assistindo ao filme “O professor aloprado”, de Eddie Murphy, e ficou impressionado com as caracterizações dos vários personagens diferentes interpretados no filme pelo mesmo ator. Decidiu então ir à luta, e pesquisar como obter o mesmo resultado na avenida.

O primeiro passo foi contratar o maquiador Vavá Torres, então principal responsável pela caracterização de personagens na TV Globo. A dupla foi até Nova York comprar a mesma mousse de látex usada no filme e pesquisar texturas. “Cada lata de 20 litros custava uns sete mil dólares na época. Precisávamos de pelo menos umas três. E ainda tinha toda uma burocracia para entrar com aquilo no Brasil”, lembra Carlinhos. O resultado valeu a pena e tornou-se um marco. “Brasileiro faz da garrafa pet um diamante”, diz Carlinhos de Jesus: “e quanto mais as comissões de frente trouxerem algo que cause um efeito impactante, dentro do enredo, sem monstruosidades tecnológicas sem sentido, melhor. A gente tem de aproveitar a tecnologia, quebrá-la, trazer o impacto do espetáculo e da surpresa, mas sem perder a brasilidade. Porque é essa nossa criatividade que faz a visibilidade mundial do carnaval carioca”.