Mangueira elege Guanayra Firmino, mulher negra e do morro, presidenta, e quebra o protetorado dos homens brancos no poder carnavalesco
Por Aydano André Motta
O Brasil desfila nas escolas de samba pelo encanto da música, a magia dos desfiles, a força dos tambores, a tenacidade de sua gente – mas também pela teimosia de suas mazelas. Basta observar, por exemplo, gênero e cor da pele dos detentores do poder, para surgir o país que atravessa o samba na injustiça social. Especialmente na era contemporânea (e mais próspera), os presidentes são, em sua esmagadora maioria, homens brancos.
Agora, o protetorado monocromático sofreu abalo contundente, com o passo firme da Mangueira na direção da representatividade. No início de maio, Guanayra Firmino assumiu a presidência até 2025 – a primeira mulher eleita nos 94 anos de história da escola. (De 2008 a 2010, Eli Gonçalves da Silva, a Chininha, ocupou o posto com a renúncia de Percival Pires.)
Nada trivial, tampouco desimportante. A Estação Primeira ocupa, ao lado da Portela, o olimpo da importância carnavalesca; desde sempre, as duas, inventoras de rituais, conceitos e fundamentos, funcionam como farol para as outras – e agora, a verde e rosa sinaliza que a fila da representatividade andou.
“Comandar a Mangueira, que faz parte da minha vida, da minha história e da minha ancestralidade, é acima de tudo uma honra. Faremos uma gestão plural, participativa e democrática”, resumiu a presidenta, logo após a posse. “É uma alegria que não cabe no peito. Agora, temos muito trabalho pela frente”, acrescentou ela, avessa a entrevistas e fotos posadas.
Amigos e companheiros de convívio na mítica comunidade de Cartola, Carlos Cachaça, Delegado, Neide, Dona Neuma, Dona Zica, Nelson Sargento e tantos bambas descrevem a nova mandatária como discreta, mas de posições firmes e – atenção para o traço comum a quem carrega o DNA mangueirense – inflexível nas suas convicções. “Estou aqui desde que nasci, mas há nove anos, pelo desafio do meu irmão (e ex-presidente) Chiquinho da Mangueira, voltei à administração da escola”, relata ela. “Sempre trabalhei nos bastidores e, presidenta, vou continuar. A gente não precisa estar no palco para fazer alguma coisa. Trabalhar independe de aparecer”.
Guanayra Firmino dos Santos nasceu 58 anos atrás no Morro da Mangueira, numa família que está na comunidade desde antes de a escola ser fundada. É descendente de Benedita de Oliveira, a lendária Tia Fé, benzedeira que em 1910 criou o rancho Pérolas do Egito. Seu bisavô, Júlio Dias Moreira, foi o segundo presidente da verde e rosa (1935-37), e o primeiro a comandar os ensaios dos sambistas, na casa de número 30 do Buraco Quente, trecho mais famoso da favela reveladora de bambas. O tio Darque Dias Moreira, seu Sinhozinho, presidiu a verde e rosa de 1974 a 1976.
Filha da baluarte Emergenilda Dias Moreira, a Dona Gilda, começou sua trajetória aos 5 anos na ala das crianças, pelas mãos de Dona Neuma (uma das grandes damas do samba). Foi passista e atuou por 10 anos como secretária da Velha Guarda da Mangueira, nas gestões de Aluízio do Violão e Ed Miranda.
Seu pai, Roberto Firmino, presidiu a escola de 1992 a 1995 e ela foi vice-presidente da Comissão de Carnaval e integrante da Comissão de Festas, juntamente com o ex-presidente Elmo José dos Santos (o grande líder vivo Estação Primeira). No mesmo período criou a Ala da Comunidade.
Retornou à gestão no mandato de Chiquinho da Mangueira (2013-18), reassumindo a vice-presidência da Ala da Comunidade, ganhando dois Estandartes de Ouro (2017 e 2018). Integrou ainda a Comissão de Carnaval em 2019, ano do arrebatador desfile “Histórias para ninar gente grande”, do samba que cita Marielle Franco, o do último título verde e rosa.
Funcionária federal aposentada, dois filhos, Guanayra inaugurou sua gestão dobrando a aposta comunitária. Escolheu gente do morro para cargos estratégicos – o diretor de Carnaval (segundo posto mais importante na estrutura), Amauri Wanzeler; a diretora de barracão, Tania Bisteka (maior rainha de bateria da história mangueirense); e os mestres de bateria, Rodrigo Explosão e Taranta Neto.
No outro braço da escola, o dos projetos sociais, ganhará atenção especial da dirigente, ex-vice-presidente da associação de moradores da Mangueira. “Faço desde a adolescência. Agora mesmo na pandemia, a gente distribuiu mais de 15 mil cestas básicas”, relata. “Muitos legumes, álcool em gel, confeccionamos muitas máscaras, tudo isso idealizado por mim. Faz parte da minha vida e agora, junto com a Evelyn (Bastos, atual rainha de bateria), vamos fortalecer isso”.
A firmeza do discurso e a solidez da própria trajetória garantirão a Guanayra o devido destaque no tabuleiro do poder carnavalesco, na mudança que veio para ficar. “Toda mulher, em tudo que faz, tem mais responsabilidade, é mais cobrada do que o homem. Mas para mim, é tranquilo, estou acostumada”, garante. “Não é nada maior do que já venho enfrentando ao longo da vida”.
Quando se consumou sua eleição, Guanayra comemorou nas redes sociais citando Angela Davis, a aclamada feminista negra: “Quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Assim será também no Carnaval.