ENGAJAMENTO VENCE

Por Aydano André Motta

Orelhas de conservadores, homens de bem, gente hipócrita e caretas em geral começam a arder quando bate o tambor – e será cada vez mais assim. A escolha dos enredos das grandes escolas de samba cariocas passeia pela vida real para ganhar espírito crítico, formato questionador e roupagem engajada. As urgências do Brasil vão passar nessa avenida popular.

O que, por décadas, foi bissexto nos grêmios sempre dispostos a negociar com o poder sedimentou-se como regra quase unânime – e o pau quebra na Passarela do Samba contra o racismo, a intolerância, a desigualdade, a violência e outras mazelas brasileiras. A partir de 2019, a tendência se instalou e segue em viés de alta.

A festa fora de época, em abril de 2022, teve a contundente vitória da Grande Rio, que conquistou o primeiro título da sua história com o enredo “Fala, Majeté! As sete chaves de Exu”, exaltação ao orixá demonizado pelo preconceito neopentecostal. A Beija-Flor completou o domínio da Baixada Fluminense (Caxias e Nilópolis) com o vice-campeonato do seu “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”, indignada exaltação da cultura negra. “Foi-se o açoite, a chibata sucumbiu/ E o meu povo ainda chora pelas balas de fuzil/ Quem é sempre revistado é refém da acusação/ O racismo mascarado pela falsa abolição/ Por um novo nascimento, um levante, um compromisso/ Retirando o pensamento da entrada de serviço”, ensina o samba nilopolitano.

Ao todo, nove temas do Grupo Especial trataram de urgências brasileiras, como exaltação da cultura negra e luta antirracista (Salgueiro, Beija-Flor, Tuiuti, Portela, Mocidade, Grande Rio, Vila), respeito aos LGBTQIA+ (São Clemente) e a questão indígena (Unidos da Tijuca). Em 2020, foram nove das 12; em 2019, oito encenaram desfiles engajados.

Mas jamais será simples decifrar os meneios dos bambas. Rotular o carnaval como “progressista” ou “de esquerda” é reducionismo que atravessa o samba. O historiador e antropólogo Vinícius Natal, pesquisador do enredo da Grande Rio, defende que as escolas sempre estiveram conectadas às agendas do cotidiano, na tradução de tensões políticas e sociais das variadas épocas. “Os sambistas sempre tiveram capacidade muito forte de dialogarem e manifestarem opiniões críticas”, sustenta.

Rachel Valença, jornalista e escritora, festeja o aumento da conscientização. “Virou tendência, com o sucesso de desfiles bem-sucedidos construídos a partir de enredos nessa temática”, atesta. “Mas temos no passado exemplos de enredos bastante engajados. Ainda na década de 1960, o Salgueiro trouxe aos holofotes personagens negros ignorados pela história oficial, como Chica da Silva e Chico Rei, iniciando o momento de tomada de consciência das escolas do papel de dar voz à sua cultura. A Unidos da Tijuca, na virada dos anos 1970 e 1980, falou de Delmiro Gouveia, pioneiro da industrialização no Brasil assassinado por representar ameaça ao capital estrangeiro, o mesmo monstro que no ano seguinte seria enfrentado pelo caboclo Mitavaí, e em 1982 terminaria o ciclo de protesto exaltando o grande escritor Lima Barreto, cujo ‘talento banhado pela cor não pisava o chão da Academia’.”

Dois momentos marcantes da história recente ratificam a tendência: o Paraíso do Tuiuti com “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?” do vampiro presidencial, de Jack Vasconcelos em 2018; e a Mangueira nas “Histórias para ninar gente grande”, o desfile de Leandro Vieira campeão em 2019, que lembrou Marielle Franco. São dois carnavalescos que carregam a crítica social como assinatura – Vasconcelos citou o feminismo de Elza Soares na Mocidade em 2020 e a luta indígena na Tijuca em 2022; Vieira colecionou temas do gênero em sua trajetória na Mangueira.

“Não acredito em modelo pré-estabelecido que direciona ‘caminho único’ para os desfiles. Sobretudo em função do fato de as comunidades das escolas serem núcleos identitários plurais. Além disso, escolas de samba são construções coletivas que reproduzem interesses e estéticas múltiplas. A ideia de se conectar com as agendas da vida real é uma possibilidade. Simpatizo com ela e o meu trabalho dos últimos anos mostra isso”, pondera o carnavalesco que deixou a verde e rosa após os desfiles de abril. “Creio que seja um dos caminhos, sem jamais ser o único”, ressalva.

Natal lembra que as escolas sempre tiveram capacidade de analisar o mundo à sua volta. Falaram da escravidão e de Castro Alves nas décadas de 1940 e 50; de política e democracia nos anos 1980. “O que muda é a forma de debater o meio social”, observa. “Mas o Carnaval não é exatamente progressista. Os sambistas sempre dialogaram com os diversos poderes constituídos. Negociaram com o governo Vargas, a ditadura militar e o capital privado”, lista o antropólogo, destacando a grande capacidade de sobrevivência das escolas. “Elas são o que queremos que sejam. Cada um adequa sua ideia de escola ao que defende”.

Rachel Valença oferece visão divergente. “Escolas de samba, por sua simples existência, são instituições progressistas. Surgiram, nos anos 1920, do anseio pela conquista de cidadania de um segmento da sociedade alijado de seus direitos mínimos. Não por acaso são comparadas a quilombos contemporâneos”, analisa. “Quando não o são, podemos suspeitar que alguma força alheia esteja impedindo isso”.

Há, aliás, críticos aos temas identitários – falar de mazelas sociais, reclamam, prejudicaria o astral da festa. “O conceito de ‘modelo’ não encontra respaldo no meu pensamento em nenhuma esfera do pensamento artístico”, avisa Leandro Vieira. “O Carnaval como espaço exclusivo da alegria, além de limitar as múltiplas possibilidades de expressão de valores artísticos ou anseios comunitários, reforça a crença da atividade como festa superficial ou entretenimento gratuito”.

“Não tem que opor alegria a questões sociais. Escola de samba é um espaço do divertimento, mas também de reflexão da sociedade”, ecoa Vinícius Natal. “Não podemos deixar barato sem debater de maneira mais assertiva”.

E aí Rachel Valença tem muito lugar de fala. Ela integra a velha guarda do Império Serrano, escola surgida no movimento sindical em 1947, que pediu democracia em 1969 (sim, em plena ditadura) e 1986, falou da fome em 1996 e carrega a luta por liberdade e democracia em seu DNA. “O Império foi criado para acolher o sonho de um projeto comunitário, dirigido por um colegiado, que diferia do modelo da época. Como tal, se sente muito à vontade para cantar esses temas. Mas não os vejo como exclusivos da escola”, argumenta. “Se o Carnaval é libertador, se as escolas de samba foram importante instrumento de inserção do negro e do excluído na sociedade, acredito que elas têm compromisso com a conscientização e transformação da sociedade. Não podem andar para trás”.