ARTIGO: A FESTA DE SUA MAJESTADE, O POVO

Por Leonardo Bruno

A Semana Santa já vai ter passado, a Quaresma terminado, o clima estará mais ameno. Os marcos temporais serão totalmente diferentes: escolas e faculdades estarão aplicando as primeiras provas do semestre; a maioria da população já vai ter entregue o Imposto de Renda (alô, atrasadinhos!); e até já saberemos quem será o campeão do Big Brother – o que atualmente é assunto de interesse nacional. Por mais fora de propósito cronológico que possa parecer, a partir do dia 20 de abril voltaremos à Avenida para aplaudir o desfile das escolas de samba. Mas, afinal, o que teremos no meio do outono será “Carnaval”? Muitos defendem que sim, encarando o fato como uma simples transferência de datas para que se reviva o espírito momesco. Outros se apegam às tradições a ao calendário cristão para determinar: Carnaval é só em fevereiro; o que viveremos agora é apenas um “evento isolado” no Centro da cidade. 

Mas a verdade é que essa pergunta não pode ser respondida. Não agora. Não por nós. Porque só quem tem legitimidade para dirimir esta dúvida é o dono do Carnaval: o povo. É o povo – e só ele – quem decide se vai ter Carnaval ou não. É quem se investe do espírito carnavalesco e faz aqueles dias serem de inversão, de desvario, de fuga da realidade. Não é o calendário frio, página em branco pendurada na parede, que determina quando o povo se entregará aos deuses da folia.

O contrário já ficou provado. Em 1896, questões sanitárias obrigaram a transferência da celebração de fevereiro para junho, mas a cidade festejou nas duas datas. Em 1912, por conta da morte do Barão do Rio Branco, o governo federal adiou as festividades, em respeito ao luto do país. No primeiro dia de Carnaval, até verificou-se alguma comoção, visto que as pessoas realmente admiravam o barão. Mas, no segundo, os cariocas aos poucos foram saindo de casa e logo se viu uma cidade em pleno estado de celebração – espantando a tristeza com festa, como fazemos há quase 400 anos. E ninguém se furtou a ir às ruas novamente em abril: na data oficial estipulada pelas autoridades, os foliões se esbaldaram, mostrando que, se um Carnaval é bom, o segundo é melhor ainda.

O Marechal Hermes da Fonseca, presidente da República à época, tinha essa compreensão. Antes de baixar o decreto adiando o Carnaval (pressionado por setores do governo), ele havia feito declaração emblemática à imprensa, que o questionava acerca do possível cancelamento: “A festa é do povo. É ao povo que cabe adiar ou não o Carnaval”.

E para quem achava que o povo sempre iria decidir pelo não-adiamento, festeiros incorrigíveis que somos, o ano de 2021 deu uma mostra de que, quando se faz necessário, o povo se recolhe. A pandemia do coronavírus nos assustava com altos índices de letalidade, a vacinação ainda não era uma realidade para a esmagadora maioria da população, e em fevereiro do ano passado vimos um país inteiro se recolher nos dias de folia. Jogo jogado, nos conformamos de que só em 2022 seria possível tirar a fantasia do armário. Agora, mesmo com restrições impostas pelo poder público, o povo se manifestou e mostrou que a situação era diferente. Blocos clandestinos tocaram suas marchinhas, festas fechadas abundaram, amigos não deixaram de se encontrar ao som da batucada. De alguma forma, a cidade se recusou a deixar o espírito carnavalesco adormecido. Neste abril, teremos a oportunidade de ver se 1896 e 1912 se repetirão. Novamente, é sua-majestade-o-povo quem vai se impor. Se a cidade mantiver seu fluxo normal de funcionamento durante a semana do dia 20, apenas contando com as interdições de trânsito no Centro e a mudança na programa televisiva para a transmissão dos desfiles, estaremos diante de um evento isolado, pontual, casualmente tendo como palco a Marquês de Sapucaí e envolvendo as escolas de samba. Mas se a proximidade dos desfiles contagiar o povo e ele resolver tomar as ruas com suas fantasias, seu espírito contestador, esquecendo das agruras e celebrando a vida, o recado estará dado. Seremos mais de mil palhaços felizes no salão, entre confetes e serpentinas, cantando para os ventos de abril: “Não me leve a mal, hoje é Carnaval”.

Leonardo Bruno é jornalista e escritor