Linda, de esquerda e antirracista, ela é a cara da verde e rosa. Já saiu em defesa de mulheres negras; criticou a ação violenta de policiais nas favelas; atua em favor de moradores de rua e é ferrenha defensora de que meninas das comunidades ocupem o posto mais cobiçado das escolas de samba. Evelyn Bastos, a Rainha de Bateria da Estação Primeira de Mangueira, é uma potência não apenas pelo corpo escultural, gingado cadenciado e sorriso cativante. Ela tem noção do seu papel social e da sua representatividade como mulher, preta, favelada e candomblecista.
Aos 28 anos, Evelyn – que também foi Rainha do Carnaval em 2013 no Rio de Janeiro – é cria da Mangueira e aos quatro já desfilava pela “Mangueira do Amanhã”. Com 11 anos, tornou-se a passista mais jovem da agremiação e aos 19 já estreava como rainha à frente da Bateria “Tem que respeitar meu tamborim”, onde reina a soberana moradora da comunidade. No posto, já representou Esperança Garcia, uma escrava alfabetizada pelos padres jesuítas, no enredo campeão de 2019, que homenageou Marielle Franco e desnudou falsas narrativas da História brasileira.
No seu último e polêmico reinado na Avenida, em 2020, dentro do enredo “A Verdade Vos Fará Livre”, encarnou Jesus Cristo e desfilou quase totalmente vestida e com discretos rebolados. A consciência política e social da moça vai muito além do corpo bonito que atravessa a Avenida e chama tanta atenção quanto seu quadril que parece ter molas. “Eu escolhi fazer desse meu corpo um corpo de protesto. Esteja ele seminu ou vestido de Jesus mulher”, declarou a musa.
Politizada, Evelyn acredita que é preciso ressignificar o tratamento dado às mulheres no mundo do samba, que se reflete também em como as brasileiras são ‘vendidas’ lá fora. Aliás, o estigma em torno do perfil de “mulata tipo exportação” já fez Evelyn sofrer um dia. Aos 16 anos, ouviu de uma professora do Ensino Médio que seu futuro seria casar-se com um gringo e morar fora do Brasil. “Como se eu fosse um objeto”, assustou-se.
“Até o meu corpo é protesto”
Filha de um pintor de carros e da costureira Valéria Bastos, que foi Rainha de Bateria entre os anos de 1987 e 1989 na Mangueira, Evelyn herdou da mãe o gosto e o amor pelo samba. Apesar de estar sempre atenta às observações dela, construiu sua própria identidade na escola. De família humilde, participou dos projetos sociais da Mangueira, com direito a atendimento psicológico e reforço escolar, teve bolsa de estudos paga pelo então presidente da Verde e Rosa, Alvinho, e foi cotista na vizinha Uerj – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, no bairro do Maracanã.
Foi lá que ela se formou em Educação Física, o que também a ajuda nos treinos pesados. Hoje, Evelyn cursa História numa faculdade privada. Os conhecimentos históricos e posicionamentos ideológicos da moça chamam tanto atenção quanto seus atributos físicos e dotes artísticos entre os mais de 300 mil ‘súditos’ – seguidores fiéis em seu Instagram.
Ao receber a segunda dose da vacina contra a Covid-19, aplicada em plena quadra da Mangueira, ela postou: “Vim ser 100% vacinada, dizendo…’Eu quero um país que não está no retrato’. Viva o SUS, viva a democracia!!! E para reforçar tascou um #ForaBolsonaro”. A jovem ativista também tira o salto, o brilho e a coroa para servir moradores de rua no seu projeto social ‘Samba, Amor e Caridade’, um grupo de voluntários que distribui comida, roupas e itens de higiene. “A fé sem ação é morta”, costuma dizer.
Segunda maior vencedora de títulos do Carnaval carioca – atrás apenas da Portela -, a Verde e Rosa vem em 2022 disposta a arrebatar arquibancadas, frisas e camarotes com um enredo emocionante que reverencia três de seus maiores ícones: Cartola, Mestre Delegado e Jamelão. Se depender de Evelyn, sua garra e seu carisma, o 21º título da tradicional escola já está garantido. Enquanto intensifica os ensaios para encarar a Avenida, depois de um ano de jejum forçado por conta da pandemia do coronavírus, Evelyn Bastos conversou com a revista Rio Já. Confira!
RIO JÁ – O estereótipo da rainha de bateria bonita e sensual que tem suas curvas mais valorizadas que seu conteúdo não cola em você. Como conciliar esse papel com o perfil feminista, antirracista e crítica da violência policial em favelas?
EVELYN – Eu não vejo problema em ser vista pelas curvas, de ser sensual. Conciliar o cargo de rainha com quem eu sou foi o que eu me preparei para fazer, para ser eu naquele espaço de destaque. Não é difícil para mim. É trazer minha verdade, a minha essência, à frente de uma bateria que é admirada no mundo todo. Tudo o que eu trago são experiências individuais. Quando me coloco numa frente feminista, antirracista ou uma crítica contra policiais em favelas são coisas que eu vivi, presenciei, senti na pele. Não é algo que eu elaborei para ter um destaque diferenciado ou para quebrar um tabu. São coisas que mulheres pretas faveladas sofrem.
RIO JÁ – Há tempos a Mangueira tem feito história com enredos que falam de injustiça social. Como você se identifica com essas causas? Acha que o mundo do samba também é lugar de ativismo social?
EVELYN – Eu vejo o samba como uma revolução, uma manifestação cultural que deve ser relacionada com denúncias, com particularidades sofridas pelas pessoas que são os grandes artistas do samba, por quem faz realmente o samba, que são os suburbanos, os favelados. Eu vejo o samba como uma grande revolução. Se for pensar na origem do samba, para mim é ativismo social. O samba foi perseguido na década de 1920; quem era visto cantando ou dançando samba corria o risco de ser preso. Foi preciso muito ativismo para o samba se tornar o que é hoje, ser visto como cultura brasileira forte e respeitada. Um pulso firme para encarar todo o conservadorismo que antes não permitia que o samba fosse cantado em qualquer esquina. Para que hoje essa liberdade fosse conquistada foi preciso uma resistência lá atrás. Não tenho como não encarar o samba como uma forma de ativismo social.
RIO JÁ – O samba composto por Moacyr Luz, Pedro Terra, Bruno Souza e Leandro Almeida fala de uma escola mais poética, fugindo da recente tradição de letras mais críticas. Você acha que o samba vai ‘pegar’ na Avenida?
EVELYN – Esse samba é bem poético, é uma declaração de amor à Mangueira, a Cartola, ao Delegado, a Jamelão. Mas é preciso frisar que esse enredo também é crítico. O Leandro (Almeida) fala deles na sua essência, como homens, como pedreiro, como guardador de carros, que fizeram da arte o seu nome. Quantos outros talentos pretos retintos em subúrbios e favelas não são vistos, não têm voz, não têm oportunidade? Quantos cartolas, jamelões e delegados existem dentro das favelas e não são vistos? Não deixa de ser um enredo crítico e muito forte, mas com toque poético, que fala com amor, com admiração. É um samba que já está na boca de muitos mangueirenses e sambistas.
RIO JÁ – O sistema de cotas nas universidades a beneficiou. Você acha que hoje o negro, especialmente o que vem das comunidades, tem as mesmas oportunidades que você?
EVELYN – Eu fui beneficiada com o sistema de cotas, mas antes eu tive bolsa escolar. Eu sou aquele 1% que deu sorte, de ter uma bolsa de estudos, de poder estudar. Porque não existe oportunidade, ela é quase imperceptível. O que existe é aquele instinto de sobrevivência: ou você estuda ou trabalha para comer. Não existe oportunidade, existe sobrevivência. Se não fosse o sistema de cotas, eu não teria feito uma faculdade pública; eu teria que trabalhar para tentar fazer uma faculdade privada, o que estava longe da minha realidade naquela época.
RIO JÁ – O Carnaval de 2021 não foi para a Avenida por causa da pandemia. A Mangueira chorou muito? E você? Que impactos sociais o cancelamento do Carnaval trouxe para a comunidade?
EVELYN – Além de todo um apelo sentimental que o samba traz para o Morro da Mangueira, os ensaios de rua, que acontecem aos sábados na quadra, movimentam o comércio local. Esse ‘não-Carnaval’, além de afetar financeira e emocionalmente, causou um vazio muito grande na gente, numa comunidade que vive do samba desde 1928. É uma tradição. É o momento mais esperado do ano pra gente. É o momento em que a gente mais tem prazer de falar “Eu sou da Mangueira”. É um verdadeiro celeiro, é o lugar onde nasce samba.
RIO JÁ – Você foi educada para o samba dentro de um projeto social na quadra da Mangueira, já aos 7 anos. Acha que o samba – assim como o futebol – pode representar uma esperança para boa parte das meninas e dos meninos das comunidades?
EVELYN – Eu acredito muito que educação, arte, cultura, esporte são instrumentos poderosos de ascensão social. Eu sempre penso da seguinte forma: ofereça arte, cultura, esporte, educação às crianças e aos adolescentes que não têm nenhuma oportunidade e vamos começar a ver as peças do quebra-cabeças da desigualdade social se movimentando. É preciso consolidar essa base, oferecer esporte, educação, arte para que a gente possa mudar toda essa estrutura. A gente tem um trabalho muito bonito que é a Vila Olímpica da Mangueira, mas não são todas as comunidades que têm isso. A Mangueira é um lugar isolado que oferece a oportunidade do esporte, da arte, da cultura, isso tudo dentro de projetos sociais. Mas a gente é uma favela. É preciso consolidar essa base para ver a desigualdade diminuir. Isso é aos poucos, não é de um dia para o outro, mas a gente precisa começar a mudar para que a gente tenha resultados.
RIO JÁ – Algumas rainhas de bateria são celebridades sem vínculo com as comunidades. O que você pensa a respeito disso? Por que mais escolas não dão oportunidade às meninas das comunidades de sonhar esse sonho?
EVELYN – Tem escolas que, por seus motivos, preferem comercializar o cargo de Rainha de Bateria e tiram a oportunidade de realização do sonho das meninas da comunidade. Eu respeito, mas sempre defendi e continuarei defendendo que esse posto seja de uma menina preta daquele lugar, da comunidade. Foi um sonho que eu nutri por anos e anos da minha vida e eu realizei. Essa realização transformou a minha vida e sou muito grata por tudo isso. Eu tenho muita vontade de ver outras meninas de outras escolas se sentindo tão realizadas como eu me sinto. Oferecer esse cargo a uma menina da comunidade é colocar esperança no coração de tantas outras, é valorizar quem está ali, quem é daquele lugar. Esse lugar é de uma menina preta da comunidade, que tem esse sangue correndo nas veias, sem pretensão de só viver os holofotes, aquele momento de luxo. Rainha de Bateria é suor, é dedicação, é amor, é paixão, é representatividade. Eu gosto de defender esse lugar como um lugar nosso por direito.