“AS ESCOLAS DE SAMBA TÊM DE FALAR DE SI MESMAS: DO POVO PRETO”

Por Jan Theophilo

Responsável esse ano pelo enredo do Salgueiro, a doutora e professora da UFRJ Helena Theodoro é uma das mais significativas referências na pesquisa sobre cultura negra, carnaval, samba e arte _ além de experiências religiosas africanas e afro-brasileiras, fora relações raciais. Em 1985 ela foi autora da primeira tese de Doutorado em Filosofia sobre filosofia africana: “O negro no Espelho. Implicações para a moral social brasileira do ideal de pessoa humana na cultura negra”, curiosamente, orientada por Ricardo Vélez Rodrigues. Sim, ele mesmo! O ministro da Educação por apenas sete dias na largada da gestão Bolsonaro. Em um papo-cabeça com a Rio Já, Helena comentou o crescimento dos enredos abordando questões da negritude nos desfiles, falou até sobre a Guerra na Ucrânia e como as escolas conseguem abordar esses temas complexos sem perder sua essência divertida, em uma trajetória de muitas lutas de resistência por uma identidade cultural pertencente a mais da metade dos brasileiros.

Este ano metade das escolas trará temas ligados à negritude. Algumas personalidades acham que esse “engajamento” está cansando. Qual a sua opinião?

Eu acho que as escolas de samba desfilam porque existem. Elas não existem para desfilar. Elas existem porque querem dizer: estamos aqui, temos uma história, essa história não é contada em lugar nenhum. E nós temos que contar a nossa história, a dos nossos antepassados, e as propostas que nós temos para o mundo.

Mas como chegamos a isso?

Bom, primeiro, pensando na escola de samba como sendo parte da busca da comunidade escravizada em retomar sua identidade. Ou seja, uma reação da comunidade preta a uma dominação de sua fé, de sua identidade e de sua cultura, onde se busca dar ao território a valorização e a importância que se é dada em África. As escolas de samba representam os diferentes territórios em que estão.

Daí a importância de alguns protagonistas em associar seus nomes às suas comunidades, como Martinho da Vila, Neguinho da Beija-Flor ou Dominguinhos do Estácio?

Exato. É todo um processo de fincar raízes num determinado território, valorizar os seus moradores, sua história e, inclusive, uma forma de transformação de um processo da Igreja Católica que era a procissão, num processo normal e natural das tribos indígenas de contar histórias em volta da fogueira. Depois eles transformam essa contação de histórias, valorizando as memórias da comunidade e os valores societários, num desfile processional. E que é uma narrativa com início, meio e fim. Ilustrada com o movimento dos seus corpos, com roupas que eles confeccionam, com ilustrações e cenários em seus carros que ajudam a conhecer toda uma trama que na maior parte das vezes não é contada nas salas de aula. E nós estamos num momento em que não podemos mais aceitar que a dominação europeia continue determinando a maneira de pensar, de se vestir, de agir no mundo inteiro. Veja que dificuldade a gente está tendo nesse momento com guerra na Europa.

Em qual sentido?

Parece que antes da invasão da Ucrânia não havia guerra no mundo. Quantas guerras não foram feitas no Afeganistão, no Irã, no Iraque? Quantas guerras em países africanos e nunca a imprensa fez um espetáculo tão grande como agora na guerra na Ucrânia. E veja bem quando a Ucrânia na prática diz: “não pode ter esse tipo de coisa, nós somos um país branco de homens louros e olhos azuis, não podemos estar passando pela guerra”, está querendo dizer que os países asiáticos, os países de pessoas pretas podem passar por guerras? Até hoje não se comprovou que o Iraque tivesses as armas que justificaram a invasão pelos EUA. É muito sério você querer vender uma imagem dos Estados Unidos como o dono da paz e da democracia no mundo, quando internamente eles não conseguem resolver os próprios conflitos entre população preta, indígena e branca.

Mas voltando aos enredos do carnaval, sobra espaço para outros temas, como demandas das mulheres ou da comunidade LGBTQIA+, por exemplo?

Lógico que sim. Por exemplo, se você for a um barracão vai perceber um número muito significativo de pessoas trans trabalhando. Pessoas que tem uma dificuldade danada dentro do mercado de trabalho e que são aceitas dentro dos barracões das escolas de samba, das próprias escolas de samba e até dentro dos terreiros de candomblé e umbanda. Porque nós acreditamos que qualquer tipo de pessoa tenha direito a ser respeitada como qualquer outra. Não existe esse sentido de perfeição, europeu. A gente acumula gente, não acumula bens.

Mas é papel da escola de samba discutir esses temas? Em 2018, a Tuiuti tinha uma comissão de frente que mostrava capitães do mato chicoteando escravos.

Até hoje não se mediu o prejuízo que o processo de colonização fez com a África, tirando seus artesãos, pensadores, guerreiros, reis e rainhas. Foram milhões e milhões de escravizados vindos pra a América. Só no Cais do Valongo temos registros de mais de seis milhões de pessoas que vieram para o Brasil, mas tinham uma vida prospera em seu país de origem. Além disso, todas as escolas de samba foram iniciadas por ogãs. Todas começaram basicamente com pai de samba e mãe de santo. Que eram os espaços de aglutinação da comunidade preta. Que aí estende as festas religiosas para formar grupos de arte e música e assim criar espaços de recreação para uma comunidade que não tem acesso ao cinema, ao teatro ou a qualquer diversão da cidade. O nosso espaço era o espaço da praça, a rua. E aí você sai da rua, dos ranchos e dos blocos. Para um espaço fechado. O que é uma escola de samba? É um terreiro na avenida. Não tem escola de samba que não tenha assentamento de Exu. As escolas são todas ligadas a lideranças religiosas. Então não pode tirar a religiosidade das escolas de samba, porque é a base da fé da comunidade preta na vida, na natureza. Quando você toca o atabaque, você mexe com a emoção das pessoas, é o coração batendo, é a unificação dos corações daquela comunidade. É a família que se reconstitui. A mãe que perdeu o filho, mas faz parte da família salgueirense, da família da Portela, da Mangueira.

Como o carnaval consegue trafegar na reflexão histórica sem perder a alegria?

Porque na verdade a comunidade preta considera o dom da vida o maior dom que existe. Alegria vem de ala, asas. E a gente quando toca, quando canta, quando faz poesia ou dança, a gente sai do chão. A gente cria asas. A gente encontra com o outro e entende que alegria de viver é alegria de acumular gente.  Quanto mais gente você tiver, mais alegria você tem. A noção de morte para nós é completamente diferente. Para nós, a morte não existe enquanto você continua lembrando das pessoas que aqui ficaram. A vida é um sopro que a gente passa para outras pessoas. E nessa continuidade histórica, eu passo minhas memorias ancestrais, minhas características básicas e dou a eles o valor e as transformações que eu fiz. No aqui, no agora. No lugar onde eu vivo.

Qual personagem a senhora acha que ainda falta ser homenageado pelo carnaval?

Acho que na verdade, as escolas de samba têm que falar de si mesmas. Porque o grande homenageado na passarela deveria ser o povo brasileiro que não foi visto até hoje. E a maioria desse povo brasileiro é o povo preto. Eu acho que quem ainda não foi homenageado e precisa ser vista pelos políticos, pelo mundo inteiro, é a comunidade preta brasileira. Que construiu as casas e asfaltou as ruas. Trouxe da África know how em inúmeras disciplinas. Criou beleza e poesia. E nunca recebeu um lugar para morar, não recebeu ordenado pelo seu trabalho, nem nenhuma atenção para cuidar da saúde, nem da de seus filhos ou da sua família. Quem falta ser homenageado pelas escolas de samba é o povo preto.