FAVELA$

Por Rosayne Macedo

Aos 11 anos ele criou um jornal, o primeiro que falava da realidade das favelas cariocas, pela ótica dos moradores. Filho de um gari comunitário e uma costureira, René Silva nem sonhava em ir tão longe. Mas foi. O menino do Morro do Adeus – uma das 13 comunidades do Complexo do Alemão – que se encantou com o jornalismo na sala de aula de uma escola pública tornou-se uma voz potente para além do seu pequeno mundinho.

Além de representar milhares de jovens nascidos nos morros e favelas cariocas que não enxergavam sua força, René ganhou fama internacionalmente pela sua história à frente do jornal ‘Voz das Comunidades’. Aos 17, tornou-se um case de comunicação ao narrar, pelo Twitter, a ocupação do Alemão pelas Forças Armadas. O jornal virou ONG e René acabou se tornando ainda mais conhecido pelos projetos de impacto social que até hoje lidera.

O que muita gente não sabe sobre esse jovem comunicador comunitário e empreendedor social de 27 anos é que ele ultrapassou outras barreiras e tornou-se um microempresário do setor de gastronomia. Em 2019, René decidiu diversificar suas atividades e entrou como sócio capitalista do tio em uma hamburgueria no Alemão. Fez o aporte inicial que possibilitou que o empreendimento saísse do papel.

Celso Athayde foi um dos primeiros militantes pelo empreendedorismo nas favelas. Criou a rede social Black & Black e a Digital Favela, plataforma de conexão

René não é o único, e nem foi o primeiro. Antes dele, Celso Athayde, motivo de recente reportagem do site Meio&Mensagem, já estimulava o empreendedorismo nas favelas do Rio. Para sobreviver nas ruas, onde morou durante seis anos, ele praticou conceitos como economia compartilhada e networking, antes de saber o que significam essas terminologias mercadológicas. Durante a trajetória, trabalhou para o tráfico, foi camelô, organizou bailes de charme, produziu artistas, vendeu discos e promoveu eventos de hip hop, antes de chegar ao estágio atual de empresário.

Pelo seu trabalho social, René Silva acaba de receber a Medalha Pedro Ernesto, da Câmara Municipal do Rio

A chave como empreendedor virou quando ele descobriu que a vivência era seu maior ativo, e que poderia utilizá-lo não apenas para ganhar dinheiro, mas para criar um ecossistema capaz de gerar de riqueza, formação e qualificação para moradores das favelas brasileiras. Controlador da Favela Holding, ele se classifica não como um patrão, mas como um “canal” que leva dinheiro para esses locais mais precários.

Acredita também que a maior parte das empresas pratica o que chama de “caô social”, com prática e discurso desconectados, e que a falta de diversidade causa uma miopia na relação das marcas com pessoas pretas e das periferias.

Entre seus negócios mais recentes estão a Black & Black, rede social para promover maior interação entre negras e negros, e a Digital Favela, plataforma que pretende conectar microinfluenciadores moradores de favelas e marcas interessadas em falar com o público desses locais, lançada junto com a agência Peppery.

René Silva, em 2020, pouco antes do início da pandemia do novo coronavírus, foi convidado para divulgar um novo negócio nascido e criado na favela. Acabou entrando na sociedade e hoje também comanda a bem-sucedida rede Picanha Red, um espetinho gourmet já presente na Maré, Mangueira, Jacaré, Vila Kennedy e Bangu e que se prepara para chegar à Rocinha e outras comunidades.

“Decidi que não queria ficar refém do ‘Voz’, mas ter outra fonte para me sustentar e buscar novas formas de trabalho. Queria diversificar, ir para outras áreas, fazer algo diferente do que o cérebro já está acostumado a fazer, que é a parte social”, conta René, que foi chamado inicialmente para cuidar das áreas de responsabilidade social, imprensa e relações públicas do Picanha Red.

O setor mais concorrido
O objetivo de René Silva e dos sócios do Picanha Red é crescer e dar oportunidade de trabalho e renda para jovens das comunidades, abrindo novos horizontes para além da carteira assinada. O valor inicial do investimento não é revelado, mas potenciais interessados já procuram pela marca.

Gastronomia – ou alimentação fora de casa -, aliás, é um dos segmentos que mais crescem e atraem empreendedores nas comunidades cariocas. No feriadão de 7 de setembro, inaugurou na Cidade de Deus uma super-hamburgueria artesanal, criada também por moradores – a Rico´s Burger.

Histórias de empreendedorismo brotam em toda parte, não apenas na Maré, mas em outras comunidades gigantes como Rocinha, Vidigal e Vila Kennedy. E nos mais diferentes segmentos: são food trucks, barbearias, salões de cabeleireiro, esteticista, consultórios de psicologia e fisioterapia, pequenas academias, venda de bijuterias…

René observa que o número de empreendedores, principalmente jovens, já vinha crescendo muito nos últimos anos, forçado pela crise econômica que só exclui trabalhadores do mercado formal de emprego, e a pandemia acelerou ainda mais esse fenômeno. “Com o aumento de demissões, tem pessoas pegando sua renda, seu fundo de garantia e montando seu próprio negócio”, conta.

Para ele, o potencial empreendedor existente nas favelas é imenso. O que falta é alavancar esses negócios. Para isso, pede mais incentivos do Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) e da AgeRio (Agência Estadual de Fomento). “Falta capital inicial para fazer a máquina girar e fazer a brincadeira. A parte técnica também é importante. O empreendedor precisa saber onde investir, como reinvestir, o que é lucro etc. É preciso dar auxílio a essas empresas para que tenham sustentabilidade”, diz ele.

Entidades citadas por René parecem ter ouvido a ‘voz das comunidades’.  Recentemente, o Sebrae Rio anunciou a segunda etapa de um amplo programa para acelerar o crescimento de negócios em comunidades do estado. O chamado Top Empreendedor já recebeu 160 inscritos – inicialmente eram apenas 100 vagas – de 70 comunidades do Rio de Janeiro e Região Metropolitana, como Complexos da Maré e Alemão, Cidade de Deus, Rocinha, Rio das Pedras, Chatuba, Morro Agudo, Vila Kennedy, Vila Vintém, Jacarezinho, Manguinhos, Mangueira e Terreirão.

Cidade de Deus ganhou no feriadão da Independência uma hamburgueria artesanal

Já a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou um projeto de lei que permite à AgeRio criar uma linha de crédito especial para empreendimentos nas favelas e em territórios populares, com valores que podem variar de R$ 5 mil a R$ 10 mil. A Lei 9.382/21 prioriza os pequenos negócios criados por mulheres negras, chefes de família e vítimas da violência.

“A saída para a crise econômica que o nosso estado e o nosso país vivem não é simples. Temos que criar uma política econômica de investimento ampla e diversificada, que atraia o grande capital e também coloque dinheiro na mão dos pequenos negócios, em especial nas regiões mais pobres”, afirma o deputado André Ceciliano (PT), coautor do projeto, ao lado do colega de partido, Waldeck Carneiro.

Viviane Marinho, de Vila Cruzeiro: consultoria do Sebrae ajuda em negócio de bijus

Necessidade ou oportunidade?
René acredita que jovens das comunidades podem, por meio do empreendedorismo, encontrar uma alternativa para o grave problema de diminuição do emprego. “Vejo isso como uma solução dentro da favela, mas o morador acaba sendo empreendedor sem saber o que de fato significa essa palavra. Quando vê que precisa, ele busca se capacitar por conta própria. Somos empreendedores por necessidade”.

Infelizmente, ao contrário dos países desenvolvidos, no Brasil o empreendedorismo é alavancado pela necessidade e não pela oportunidade. Desde o início da pandemia do coronavírus, empreender virou uma necessidade para milhões de brasileiros que enfrentam o desemprego e buscam uma fonte de renda. Com a crise, 82% dos novos empreendedores alegaram que foram motivados pela carência de emprego.

É o que mostra a pesquisa Global Entrepreneurship Monitor (GEM) 2020, realizada no Brasil pelo Sebrae, em parceria com o Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBPQ). O estudo revela que a taxa de empreendedorismo por necessidade saltou de 37,5% para 50,4%, o mesmo nível de 18 anos atrás.

A busca por soluções para apoiar os pequenos negócios em comunidades cariocas a superar a crise gerada pela Covid-19 começou em 2020, quando o Sebrae Rio lançou um programa de consultorias online que atendeu 200 empreendedores de 16 favelas entre os meses de maio e junho. Totalmente gratuito, o Top Empreendedor oferece capacitações e consultorias individuais e coletivas.

Viviane Marinho de Souza, da Vila Cruzeiro, já recebeu a primeira consultoria. Ela começou a empreender em 2018 no ramo de bijuterias artesanais e encontrou o Top Empreendedor pelas mídias sociais. “Vi pela descrição que era perfeito pra mim. Já na primeira consultoria posso afirmar: estou amando e espero conseguir ter mais foco no gerenciamento das finanças e das minhas redes sociais para meu negócio crescer”, disse.

 Um exemplo de sucesso é Lúcia Lima, de Rio das Pedras. Ela mudou o ramo de negócio e passou a vender trufas, por meio das redes sociais, e obteve um salto financeiro, principalmente no período da Páscoa. Em um mês e meio seu faturamento líquido chegou a R$ 2 mil, ela conseguiu fazer estoque de produtos e formar um pequeno capital giro.

No Complexo da Penha, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Patyra dos Santos, de 24 anos, se empenha na estruturação de seu negócio de confecção e venda de fantasias infantis. Já Milena de Mello, de 23, planeja o lançamento de sua marca própria de calçados para venda na loja que já mantém.

Mas não são apenas jovens que estão empreendendo nas comunidades. Aos 51 anos de idade, Silvana Ismael da Silva está ativa na venda de bolos, tortas e salgados por encomenda no Complexo da Penha. Na mesma região, Júlio de Abreu, de 48, sonha com a expansão de sua fabricação de pães, brioches e biscoitos.

Este ano, o projeto foi realizado no Complexo da Penha, Cidade de Deus, Realengo, Vila Keneddy e Maré.  Os cinco núcleos reuniram mais de 170 empreendedores, que contaram com aulas sobre temas como formação de preços, pesquisa de mercado, comunicação e divulgação, criação de MEI e redes de relacionamento, entre outros.

O padeiro Júlio destaca o aspecto democrático e inclusivo do projeto: “Estava à procura de uma oportunidade há tempos, mas só encontrava cursos para jovens. Quando apareceu esta oportunidade, agarrei com toda força.” No mesmo grupo, a jovem Milena afirma: “o curso se encerrou, mas levarei o aprendizado para o resto da vida. Só tenho a agradecer o que compartilhamos e trocamos de experiências.”

Estímulo à inovação
René Silva defende mais apoio ao empreendedorismo nas comunidades e incentivo a negócios com potencial de inovação, que têm maiores chances de sobrevivência. Hoje, os empreendimentos abertos nas comunidades são de setores tradicionais em sua maioria. “Negócios com inovação e tecnologia ainda representam muito pouco ou quase nada dentro das comunidades. O empreendedor da comunidade busca formas de inovação para atuar dentro do seu território, mas é limitado pela falta de capacitação”, destaca.

René levou essa defesa a um recente fórum de economia promovido pela CNN, do qual participaram CEOs da Microsoft e do IFood.  “Eles reclamavam da falta de pessoas capacitadas para essas empresas. Existe uma demanda, mas não há formação profissional”, pontua René. “Comecei a articular um projeto com empresas e pessoas que possam realmente agregar nessa causa”, antecipa.

Durante o evento, surgiu a proposta oferecer aos moradores de comunidades a capacitação adequada para atuar na área de tecnologia. O objetivo audacioso é formar 10 mil pessoas, em diversas áreas de tecnologia.

Combate à fome
Logo no começo da crise sanitária, René lançou o projeto Prato das Comunidades (www.pratosdascomunidades.com) para ajudar pessoas que não estão conseguindo colocar um prato de comida na mesa.

Mais de 130 mil cestas foram distribuídas no período mais crítico da pandemia (maio a outubro de 2020) a famílias que vivem em insegurança alimentar nas comunidades do Complexo do Alemão. As doações minguaram à medida que a reabertura da economia ia ganhando expressão, em meio ao avanço da campanha de vacinação no Rio de Janeiro, enquanto os pedidos de cestas básicas só aumentam a cada dia.

Pelo seu trabalho social, René Silva acaba de receber a Medalha Pedro Ernesto, principal honraria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, por indicação do vereador Luciano Medeiros. “Não tenho palavras pra descrever o quão grato estou pelo reconhecimento. Gostaria de dedicar a todos e todas voluntários do Voz e favelas”, escreveu ele na noite de 16 de setembro para os mais de 100 mil perfis que o seguem no Twitter.

PIB DAS FAVELAS
13,6 milhões de pessoas moram em favelas

R$ 119,8 bilhões
seus moradores movimentam por ano.
As favelas movimentam um volume de
renda maior que 20 das 27
unidades da federação.

89%
dos moradores de favelas estão
em capitais e regiões metropolitanas.

5% a 10%
percentual de pessoas vivendo em
favelas nas regiões Norte e Nordeste

+ de 10%
da população do Rio vive em favelas.
É o único estado do Sudeste com
tamanho percentual

67%
dos moradores de favelas são negros;
no Brasil, o percentual é de 55%.

49%
dos lares das favelas são
chefiados por mulheres

87%
dos adultos acessam a internet
pelo menos uma vez por semana

+ de 97%
dos jovens acessam a
internet regularmente

31%
dos moradores de favelas não têm
conta em banco. Entre aqueles que
têm conta (69%), tarifas e taxas
são difenciais na escolha de um banco

Fonte: “Economia das Favelas – Renda e Consumo nas Favelas Brasileiras”