PORTO MARAVILHA: UMA REVOLUÇÃO URBANA

O projeto engloba 5 milhões de metros quadrados e tem custo total estimado em R$ 8 bilhões

Aydano André Motta

Enfim, o crescimento patológico da cidade em direção ao oeste, na obsessão por um Atlântico cada vez mais longínquo, ganha freio virtuoso – e o Rio ostenta novo bairro para se orgulhar. Bem ali, nas franjas do Centro, surge o Porto Maravilha, arremate do projeto iniciado no bojo dos Jogos Olímpicos e dos grandes eventos da década passada. Cariocas de todas as regiões e moradores de outras cidades desembarcam do VLT interessados nos empreendimentos imobiliários que brotam na região.

Trata-se da maior revolução urbana da história recente da segunda maior metrópole brasileira. Engloba 5 milhões de metros quadrados e tem custo total estimado em R$ 8 bilhões. Teve como símbolo a demolição de um estorvo de concreto, o Elevado da Perimetral, em 2013, e seguiu com a abertura de passeios e boulevares. Depois, chegaram empreendimentos icônicos (Museu do Amanhã, AquaRio, Porto Maravalley) e, agora, os novos moradores.

Diferentemente de expansões realizadas ao longo da história, a atual contempla área com infraestrutura urbana completa, sem desafios de mobilidade urbana nem urgências complexas de saneamento. Uma das primeiras partes habitadas do Rio, a Zona Portuária se apronta para receber seus novos moradores, que terão, como moldura do novo endereço, parte da história carioca, expressa no casario e sítios históricos das redondezas.

O bairro caçula do Rio começou a nascer em 2009, na Operação Urbana Consolidada determinada pela Lei 101, que reúne poder público, concessionárias de serviços essenciais, moradores e empreendedores locais, na busca por transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental. Criou-se ali uma Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU), englobando Caju, Gamboa, Santo Cristo, Saúde e Praça Mauá, além de parte do Centro. Em novembro de 2023, a Câmara Municipal incluiu quase toda a extensão de São Cristóvão, do outro lado da Avenida Francisco Bicalho, na esteira da inauguração do Terminal Intermodal Gentileza.

Terminal Gentileza: integração de linhas

Derrubada a Perimetral, vieram a urbanização do Píer Mauá, a revitalização da Praça Mauá e a criação da Orla Conde, que devolveu à população um trecho escondido da Baía de Guanabara. Começou então a instalação de calçadas, iluminação pública, escoadouros de águas pluviais e plantio de 15 mil mudas de árvores nas avenidas Barão de Tefé, Camerino, Venezuela, Rodrigues Alves, Sacadura Cabral e nas ruas que as atravessam. Foram inaugurados a Via Binário do Porto, os túneis Rio 450 e Marcello Alencar e houve a reurbanização do Morro da Conceição, com restauração do patrimônio histórico, do Jardim do Valongo à Pedra do Sal. 

A segunda fase teve a reurbanização de aproximadamente 40 km de vias, implantação de 17 km de ciclovias, novas redes de saneamento, energia elétrica, telefonia e gás encanado, de sistema de melhoria da qualidade das águas do Canal do Mangue, de mão dupla interna, paralela à Rodrigues Alves (binário do porto). A região ganhou novo mobiliário urbano, com abrigos de automóveis, pontos de ônibus, lixeiras, totens, painéis informativos, bicicletários e, claro, o bibelô do Centro, o VLT, com ampliação das linhas e integração ao metrô.

A dialética revolucionária: o bairro caçula do Rio está nascendo na região mais antiga da cidade – velho e novo literalmente convivendo

E pensar que em 2010 – menos de década e meia atrás –, a Via Binário jazia como estacionamento para as carretas do Porto, lembra Gustavo Guerrante, presidente da Companhia Carioca de Parcerias e Investimentos (CCPAR), que cuida do projeto. “Em qualquer lugar do mundo, uma região próxima do Centro vale muito dinheiro. Aqui, nunca vingava porque chegava uma empresa só e a vizinhança não sofria impacto”, narra ele. A Caixa Econômica, via FGTS, investiu R$ 3,5 bilhões pelo direito de construir. E o projeto decolou.

Guerrante destaca ainda a Parceria Público-Privada criada para as transformações. Sem ela, nada aconteceria. “O Túnel Marcello Alencar chega a 42 metros por baixo da baía, uma obra complexa. Nunca teria sido feito”, atesta ele. A iniciativa privada não teria condições de fazer sozinha e o poder público, isoladamente, demoraria muito. “A união foi essencial”, exalta.

Não foi sem sofrimento. As crises, a partir de 2017, afetaram o Rio duramente e o projeto atrasou. Além disso, a primeira etapa teve um equívoco de formato, quando se imaginou que ali seria o novo centro financeiro, velho sonho carioca. Não vingou e a região, linda, seguia deserta, sem vida. A pandemia de Covid-19 criou um novo normal, redesenhando a rotina corporativa e valorizando conceitos como o trabalho em casa. Mais do que nunca, o Porto só seria Maravilha se virasse moradia.

“É uma joia no meio da cidade”, define Guerrante. “Área com terrenos livres e estrutura na porta, plug and play”, compara, celebrando a velocidade das vendas. No começo, o metro quadrado estava em R$ 6,5 mil; agora, bate em R$ 9 mil. E vem aí o primeiro empreendimento de luxo, o Edifício A Noite, na cabeceira da Avenida Rio Branco, de frente para o Museu do Amanhã. 

Sandra Lima, 53 anos, acompanha tudo… de drone! Ela e o marido, Márcio Muniz, 49, cultivam linda história de amor com o Porto Maravilha, desde o dia em que se conheceram, num café da manhã no Museu de Arte do Rio. Produtora cultural, se encantou pelas histórias dele, funcionário da Defensoria Pública criado na Praça Mauá. Os dois se apaixonaram, foram morar no Morro da Conceição e compraram um apartamento no Rio Wonder, prédio que está subindo perto da Rodoviária Novo Rio.

Enquanto não chega a hora de se mudar, Sandra e Márcio documentam o renascimento da região num canal que criaram no YouTube (https://www.youtube.com/@portomaravilharj/featured) e hoje tem 5 mil assinantes. “Começamos a registrar como compradores, para cobrar a construtora e acompanhar o crescimento da região. Ficamos apaixonados”, relata ela, encantada especialmente pelas reformas no Santo Cristo. “Sou pé no chão mas estou vendo muita coisa acontecendo”, reconhece, acrescentando que garis, comerciantes e inscritos no canal passam informações e sugerem vídeos.

Os novos habitantes do Porto Maravilha querem vida de bairro, não isolamento de condomínio, mas tratam eles mesmos de construir este modo de vida

O casal pagou R$ 305 mil por um apartamento de dois quartos no terceiro andar do edifício Praia Formosa, uma das três torres do Wonder. Na janela, como ensina a música, vê-se o Cristo Redentor, que lindo. Eles recebem as chaves em julho, mas a mudança deve ser mais para o fim do ano. Enquanto isso, festejam a valorização do imóvel e vigiam para a região não se gentrificar. “Os moradores cuidam do comércio local, o borracheiro, o restaurante a quilo, a creche. A movimentação está aumentando, vai ser bom e a gente está de olho”, avisa, reivindicando a conservação do casario e dos sítios históricos. 

Não há gentrificação no horizonte, assegura Guerrante, argumentando com o próprio perfil dos moradores, que, como Sandra, se preocupam com a preservação do patrimônio histórico. “A parte mais edificável fica na Avenida Francisco Bicalho e na Via Binário. Não tem perigo”, garante ele, lembrando o forte apelo cultural do Bafo da Prainha, da roda de samba da Pedra do Sal e da Praça da Harmonia.

Raphael Vidal: “melhorias consideráveis”

O Largo de São Francisco da Prainha é o território de Raphael Vidal, um dos grandes festeiros, empresário, dono da Casa Porto, misto de restaurante e centro cultural que funciona num sobrado na praça. Ele mora no Morro da Conceição há 16 anos, 12 deles trabalhando também, com cultura e gastronomia. Conheceu a Região Portuária num samba do bloco Escravos da Mauá no Largo da Prainha há mais de duas décadas e se apaixonou. 

Ao longo deste período viu “melhorias urbanas consideráveis”, com mais espaços de lazer, equipamentos públicos de cultura e reformas estruturais. “Houve também reconhecimento e fomento dos agentes e grupos culturais, ajudando na sua permanência e continuidade. É perceptível também a sensação de segurança, apesar das questões sociais da cidade como um todo, a partir da ocupação local cotidiana, e não mais eventual, do público na região, seja por meio de passeios turísticos ou dos bares culturais. Como morador, posso afirmar que não vejo mudanças que pioraram a Região Portuária nestes últimos anos, pelo contrário”, elogia.

Vidal também aprova o diálogo permanente dos órgãos públicos na Região Portuária por meio de canais abertos pelos Gerentes Regionais Locais, através de grupos de moradores e comerciantes, ou pela escuta presencial, triangulando as demandas com a Subprefeitura e as secretarias e concessionárias. “É uma forma inovadora de trabalho que tem dado muito certo”.

Ele se preocupa com os imóveis históricos, pela disputa que se arrasta há décadas pela propriedade dos prédios, envolvendo ordens religiosas e moradores tradicionais. “Muitos desses imóveis acabam abandonados pela indefinição”, lamenta. Daí, a importância de projetos como o Reviver Centro, que direciona recursos para a reforma em contrapartida pela ocupação por pequenos negócios ou equipamentos culturais. 

“No mais, o que a Região Portuária precisa é de vizinhos. E eles virão por conta da história local, fundamento não só da nossa cidade, mas do país. Essa memória que explica o Porto Maravilha. O crescimento urbano está entrelaçado com a preservação da história material e imaterial local. Por isso, será diferente da gentrificação em que o morador tradicional perde lugar pela especulação imobiliária. Aqui, não será assim: os moradores antigos até aumentam a renda ao trabalhar com turismo, gastronomia, cultura”, analisa Vidal.

Roger Félix Jardim: mudança com a família

O panorama atraiu o assistente administrativo e estudante de Direito Roger Félix Jardim, nascido (há 28 anos) e criado no Morro da Providência. Ele sofreu, na comunidade, de mazelas tristemente cariocas: operações policiais pontilhadas por abusos dos homens da lei, que invadiram sua casa sem autorização judicial repetidas vezes. Vivendo com a mulher, a mãe e o “filho de quatro patas”, o cachorro Brucce, decidiu sair. “Um belo dia, estávamos indo abastecer o carro no posto perto da rodoviária e vimos um terreno cercado com tapumes contendo informações do Projeto Porto Maravilha”, recorda. “Marcamos uma visita e adquirimos nosso apartamento. Tenho fé que vamos ganhar qualidade de vida”, aposta, ansioso pela vista que terá da janela no Rio Wonder.

O empreendimento onde Roger vai morar é um dos 11 lançados pela construtora Cury na região. “Temos histórico de trabalhar na Zona Norte e sempre entendemos que o porto seria um upgrade”, explica Leonardo Mesquita, vice de negócios. “Esgoto, drenagem, asfalto, a rede enterrada são atrativos importantes. Na Barra, o incorporador tem de levar toda a estrutura para o negócio começar. Precisa só de vida, que chega com morador”.

O executivo celebra um bairro do Rio sem a pretensão de ser classe A, com modo de vida próprio, contemporâneo. “Vemos aqui uma diversidade muito grande, gente de todos os lugares”, aponta, contabilizando que 30% dos futuros proprietários vêm da região metropolitana – Niterói, São Gonçalo, Baixada, Itaboraí – e até da Região Serrana. “Além dos que chegam da Zona Oeste, para fugir do trânsito e da distância. Aqui, os empreendimentos oferecem lazer e comodidade”.

O otimismo também contagia Evie Kempf, consultora imobiliária que viu o Porto Maravilha nascer. Ele observa que o perfil dos moradores está na geração Z, que se preocupa com o meio ambiente, a coletividade e busca vida de bairro, não o isolamento dos condomínios. “Uma ideia sustentável de ocupação urbana”, resume, dando como exemplo a própria filha, a arquiteta Ana beatriz, 27 anos, que está comprando um imóvel na região. “Eles prezam pela qualidade de vida, por trabalhar e morar confortavelmente. Não querem perder tempo no trânsito, gostam de fazer tudo a pé ou de bicicleta”. 

A consultora entende que o Porto Maravilha tem muito do reencontro com o conceito de vida urbana coletiva, na rua, pregado por Pereira Passos. “É uma transformação ao mesmo tempo nova e antiga”, comenta, apostando que os negócios locais, de bairro, prosperarão bastante.

O engenheiro eletricista Leonardo Gama Faria, 31 anos, encaixa-se à perfeição no perfil traçado pela consultora. Todo dia, percorre a distância entre Jacarepaguá, onde mora, e o Centro, para trabalhar; estava acostumado – até experimentar o home-office na pandemia. “Na volta, notei o impacto”, admite, referindo-se a hora e meia consumida no ir e vir. Ao decidir se mudar para mais perto, procurou por Botafogo e Tijuca, mas os preços eram hostis. 

Até que um amigo comprou no Epicentro, prédio que tem entrega prevista para 2026. Leonardo comprou diante do valor baixo da entrada e agora, conta os dias para a mudança que diminuirá a distância do trabalho para 15 minutos – isso a pé. “O VLT passa na porta”, empolga-se ele, que ainda ficará mais perto do namorado, morador do Barreto, em Niterói. “A logística mais prática me atraiu e as condições de pagamento encerraram qualquer dúvida”, descreve ele, futuro proprietário de um apartamento com dois quartos e suíte no 20º andar. 

É com status de quem chegou primeiro que Merced Guimarães dos Anjos olha o movimento nas cercanias. Moradora desde 1966 na Zona Portuária, ela hoje vive com marido, filhas e netos numa casa da Rua Pedro Ernesto e trabalha como presidente do Instituto dos Pretos Novos, cuidando de parte do patrimônio histórico da região. Ela defende as mudanças, enxerga a valorização, mas ressalva que sempre foi uma região cara para morar. “Minha casa, que comprei velha, custou o mesmo que um apartamento de três quartos na Tijuca”, estima. “Agora, foi ótimo derrubar a Perimetral, fazer o Boulevard Olímpico. Mas ainda precisamos de supermercados bons, do VLT até mais tarde ou alguma opção de transporte público. Não dá para encerrar o serviço às 23h”, critica.

Ela também reclama da falta d’água, antes concentrada ao Carnaval, que agora se repete em vários momentos do ano. Não detecta risco ao patrimônio histórico, mas alerta que conservar as fachadas do casario custa caro e precisa da ação do poder público. Entre dores (poucas) e delícias (muitas), Merced celebra a nova fase. “Tem muito lazer, passeios, eventos culturais”, elogia as maravilhas à sua volta.

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