Jan Theophilo
Um fantasma ronda a Cinelândia. Na verdade, só um não: vários. Céticos e materialistas dirão que é bobagem, claro. Mas se histórias assombradas em cenários suntuosos não fizessem sucesso, o “Fantasma da Ópera” não teria ficado 35 anos em cartaz na Broadway. Em um cenário parecido com o do musical estado-unidense, o fabuloso Theatro Municipal do Rio de Janeiro também tem sua cota de almas penadas. Além de histórias curiosas e mistérios pouco conhecidos dos cariocas e simpatizantes. Como túneis, passagens secretas e até mesmo a captação de água de um braço do Rio Carioca que cruza as profundezas do equipamento — garantia de nunca ter problemas com a Cedae e mais uma analogia com o Fantasma da Ópera.
As obras do Theatro Municipal começaram em 1905, sobre um alicerce de mil e seiscentas estacas de madeira de quase 15 metros de profundidade fincadas a 30 centímetros de distância cada, abaixo do lençol freático. Impossível não lembrar das fundações de Veneza. Algumas dessas estacas podem ser vistas até hoje, com cabeças de touro representando sua força no topo, na decoração do Assirius, o salão em estilo persa, no primeiro subsolo, que já foi bar, restaurante e hoje funciona como um café e palco para pequenos concertos. Para concluir a obra monumental no tempo recorde de quatro anos e meio, os 280 trabalhadores se revezaram em jornadas 24h por dia, sete dias por semana. O que, claro, gerou uma opereta de problemas. Mas essa, na verdade, não foi a primeira história controversa do Theatro.
O Municipal foi erguido por determinação do prefeito Pereira Passos, no conjunto de intervenções feitas por ele para modernizar o Centro da cidade — com destaque para a Avenida Central, hoje Rio Branco. “Ele então resolveu fazer um concurso, no qual todos os projetos eram identificados por pseudônimos. Só que o primeiro colocado foi o filho dele, Oliveira Passos, e isso gerou uma grande manifestação na cidade acusando o concurso de marmelada”, conta a presidente da Fundação Theatro Municipal, Clara Paulino. Diante da celeuma, o vencedor adotou uma saída salomônica: convidou o segundo colocado, o arquiteto francês Albert Guilbert, para fundirem os dois projetos. As semelhanças inconfundíveis com o Ópera de Paris vieram justamente do projeto francês. “Só que o Oliveira Passos inventou uma maneira, digamos, criativa, de ‘assinar’ o projeto como dele”, diz Clara. Criativa é uma forma gentil de falar. O filho do alcaide mandou esculpir um busto de si próprio e o colocou na parede externa dos fundos do Theatro, voltada hoje para o painel de Athos Bulcão que decora o anexo, construído posteriormente.
“Dizem que é por essas e outras que o fantasma do Oliveira Passos mora no andar da presidência”, diverte-se Clara. O ardiloso arquiteto não é a única celebridade post-mortem a passear pelos corredores. Ao longo de sua história centenária, músicos e funcionários relataram ter visto nomes como os do dramaturgo Arthur Azevedo (que em 1894 lançou uma campanha para construção do teatro), a mecenas Laurinda Santos Lobo, fora vultos vestidos de fraque e cartola, ou crianças correndo. “Quando comecei a trabalhar aqui, tinha um antigo funcionário da faxina conhecido como Chicão que era espírita. Um dia ele estava trabalhando quando, de repente, sentou-se na frisa me olhou e disse: “O Olavo Bilac está aqui”, conta Claudia Pasinato, assessora da diretoria. A visitação do “Príncipe dos Poetas” já virou lenda entre os funcionários, segundo os quais, sua presença é garantia de sucesso de um espetáculo.
“Desde sempre existem histórias de fantasmas no Theatro Municipal. Já fizeram vários programas de TV sobre eles. Recentemente recebemos os “Caça-Fantasmas Brasileiros”, que gravaram três episódios aqui”, conta Clara Paulino, se referindo ao canal do Youtube com mais de um milhão de inscritos que se dedica a desafiar as fronteiras do desconhecido, Brasil afora, contando com equipamentos de última geração. Tem até fantasma que, supostamente, interage com as pessoas, como o “espírito” de uma bailarina que se apresenta como Gabrielle Rejane. “Essa lenda circula há tanto tempo que um dia resolvemos fazer uma pesquisa nos antigos programas e verificamos que, de fato, no começo do século passado uma companhia francesa veio se apresentar aqui e entre eles havia uma bailarina com esse nome”, diz Clara.
Há também histórias mais pesadas. Uma delas se refere a uma jovem sem pernas que às vezes é vista flutuando sobre a plateia. Ela teria sido uma aluna da escola de balé que, certo dia, ao sair para almoçar, sofreu um acidente no qual ocorreu amputação, e morreu. Tantas histórias levaram a presidência da Fundação a criar o programa “Fantasmas”, realizado sempre em outubro: uma visita guiada na qual os participantes são apresentados a história do Theatro Municipal em um passeio no qual interagem com atores trajados como as aparições mais famosas.
Mas nem só de fantasmas vive o Theatro Municipal. Entre outras curiosidades, abaixo dele, existe simplesmente um braço do rio que dá nome aos moradores da Cidade Maravilhosa. Nos séculos XVII e XVIII parte de suas águas foi desviada pelo Aqueduto da Carioca (os Arcos da Lapa), para várias fontes e chafarizes do Rio Colonial. “Daí até hoje a gente canaliza essas águas do Rio Carioca e tem até uma torneira industrial para facilitar. De falta d’água o Theatro não vai sofrer nunca”, brinca Clara. Também há túneis misteriosos, originalmente criados para circulação de ar fresco. Um deles começa no Assirius e termina bem no meio da Cinelândia. Os túneis perderam a serventia quando o Theatro Municipal se tornou o primeiro do Brasil a contar com sistema de ar-condicionado. Mas ainda há outros, não explorados. E não é por falta de informação.
O Centro de Documentação do Theatro Municipal reúne a espetacular relação de 75 mil itens. Eles vão desde os projetos originais, documentos, todos os programas dos espetáculos realizados desde a fundação, centenas de figurinos e uma coleção de sapatilhas de grandes bailarinas que dançaram ali, como Eugenia Fedorova, o piano que pertenceu a Chiquinha Gonzaga ou turbantes da soprano Bidu Sayão. Mas esse tsunami de conteúdo não consegue esclarecer outro mistério.
No Theatro Municipal existem 17 grandes vitrais encomendados à Casa Mayer, tradicional produtora francesa. Na entrada, três deles reproduzem as linguagens artísticas da instituição: dança, artes cênicas e música. Mas o maior de todos é justamente o que fica no topo do teatro e representa a única figura masculina estampada nos conjuntos de vidros coloridos: o deus Apolo, cercado por outros vitrais, que representam as nove musas. Entre Apolo e as musas há um conjunto de pinturas que…ninguém sabe quem fez. “O destaque para Apolo ali se dá pelo fato dele ser o tutor das musas. Mas essas pinturas são realmente uma dor de cabeça”, diz o curador Danilo Naime: “já foram feitos estudos, cooperações na área de arquiometria, mas a única coisa que dá para afirmar é que não foram feitas pelo Eliseu Visconti”.
Entre 1905 e 1908, o artista italiano Eliseu Visconti realizou no Municipal uma de suas maiores obras. Ele executou o plafond (teto sobre a plateia) e o friso sobre o palco (proscênio) — aliás, durante as obras de restauração do proscênio, no século XX, surgiu outro mistério: uma passagem secreta ligando várias áreas internas. Visconti pintou ainda os painéis do foyer, considerados uma obra prima da pintura decorativista no Brasil. Mas talvez uma de suas mais impressionantes contribuições para a decoração do Theatro Municipal foi o pano de boca — uma tela que cobre toda a abertura do espaço de cena e fica na frente da cortina antes de começar o espetáculo. Com 192 m² de área, ela está entre as cinco maiores telas do mundo, e causou celeuma quando foi finalizada por ele em seu ateliê em Paris. “Apenas porque Visconti retratou três figuras de negros participando da massa de populares que exaltam o grande cortejo histórico. Assim, apesar dos elogios da crítica francesa, antes de embarcar para o Brasil com seus trabalhos, ele soube que sua obra sofreu pesadas críticas da imprensa do Rio de Janeiro, estimuladas por alguns brasileiros residentes em Paris, insatisfeitos com o que haviam visto”, diz Danilo. Para manter a integridade da imponente pintura, que chegou até a ser rasgada quando o Municipal promovia bailes de gala no Carnaval, ela hoje só é baixada de quatro em quatro anos, e por pouco tempo. A próxima oportunidade é ano que vem. Save the date!
Mas à medida que o tempo passa, alguns mistérios vão sendo revelados. O último deles em 2016, quando os pesquisadores descobriram que uma pintura que decora a antessala do camarote exclusivo do governador (o presidente da República, o da Assembleia Legislativa e do Tribunal de Justiça também tem direito ao curralzinho vip), até então considerada de autoria desconhecida, também foi pintada por Eliseu Visconti. Sua comprovação surgiu ao examinar cartas do pintor trocadas com o então diretor do Municipal, Roberto Doyle Maia, em 1933. Existem ainda muitas outras curiosidades sobre o Theatro, como a “assinatura” dos antigos barões do café, entre eles alguns principais financiadores do empreendimento, que pediram para que fossem adicionadas figuras representado plantas de café em diversos pontos do teatro. E, em tempo: a resposta para a principal pergunta que os monitores recebem de visitantes brasileiros e estrangeiros é simples: a águia lá em cima é mesmo folheada a ouro.