Aydano André Motta
O chute mágico de Didi, da bola em súbita queda para iludir o goleiro, e os versos de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito – “Quando eu piso em folhas secas/ Caídas de uma mangueira…” – inspiram enclave de inteligência, cultura e alegria, que, instalado numa rua mítica, congrega os melhores predicados cariocas. A Livraria Folha Seca completa 25 anos consolidada como totem da cidade, resultado de muita luta – e a mesma dose de encanto.
Boa parte deste quarto de século se deu navegando na contramão – até hoje, como prova o assédio ao espaço de 30 metros quadrados na Rua do Ouvidor, entre Primeiro de Março e Rua do Mercado, ao lado de bares e prédios históricos (menos conservados do que merecem). Uma livraria, de rua, no esvaziado Centro do Rio – e tudo pronto para mais 25 anos.
“Foi difícil na pandemia, a vizinhança ainda não se recuperou, mas paradoxalmente aqui vai bem”, festeja Rodrigo Ferrari, criador e dono da Folha Seca. “Devemos isso aos amigos”, agradece ele, referindo-se a figuras como o escritor e professor Luiz Antonio Simas, o ilustrador Cassio Loredano, o compositor e cronista Herminio Bello de Carvalho, e o escritor Nei Lopes, que lançam seus trabalhos lá, e os milhares de frequentadores.
Digão, como o Rio chama o livreiro de 55 anos, descobriu sua vocação (e destino) na extinta Dazibao, assumindo a filial do Centro de Artes Helio Oiticica. O convívio com os intelectuais de esquerda, defensores conceituais da cultura, moldou o ofício e construiu a coragem necessária para dobrar a aposta no negócio. Em 1998, surgiu a Livraria e Edições Folha Seca, que se mudou em 2004 para o endereço definitivo.
Está longe de ser por acaso. A Ouvidor teve, ao longo de sua trajetória diversas livrarias famosas, garantindo a badalação que atraía gente como Joaquim Manuel de Macedo e Machado de Assis. O Bruxo do Cosme Velho, aliás, registrou seu apego ao endereço: “Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloquente que exprime todos os sentimentos e todas as ideias”.
Sob a moldura da história, Digão pôs o tempero carioca. Suas rodas de samba, reúnem milhares de pessoas, sobretudo aos sábados, dia que seria vazio na lógica da região. “É tudo vontade filosófica e intelectual, muito mais do que estratégia comercial”, garante o livreiro. “Não invisto na questão mercadológica, não sou disso. Meu conceito vem do coração”, decifra ele, 55 anos, que especializou a livraria em temas cariocas, como samba e futebol.
O outro alicerce é o amor inegociável por receber as pessoas com música e alegria. “Desde sempre criei uma sinergia grande entre os assuntos que a gente vende e as coisas que a gente cultiva. Como tenho muitos amigos músicos, sempre fiz muita coisa ligada ao choro e ao samba, então acabamos ligando a livraria aos eventos”, detalha Ferrari. “Somos especializados em temas cariocas, mas desde o golpe [contra Dilma Rousseff] que a política, sempre importante por ser parte da história da cidade, tomou bastante espaço na vitrine. Esses encontros são iniciativas políticas”, atesta.
Vida longa e próspera à Folha Seca!