A JUVENTUDE AOS 71 ANOS

POR BRUNO AGOSTINI*

Prestes a completar 71 anos, em dezembro, a Churrascaria Palace está em plena forma, jovial como nunca, mas sem perder a sua identidade, tão carioca e musical. Isso significa uma vida inteira junto a artistas, como reduto cultural, não só gastronômico.

A casa tem quindim com receita de Vinícius de Moraes, personagem central do quadro “Santa Ceia da Bossa Nova”, ícone da casa. O desenho que dá boas-vindas aos clientes está logo acima do piano de cauda, ainda hoje dedilhado por alguns músicos que passam por lá, e dão inesperadas canjas. Como João Donato, outro personagem da obra, que recentemente comemorou por lá seus 88 anos, entre amigos.

Sempre se renovando e se atualizando, a Palace vive um momento especial não só pelos festejos das sete décadas: no ano passado conquistou o prêmio da Veja Rio, como melhor carne da cidade. Afinal, um restaurante não pode viver só de trilha sonora ou de reconhecimentos culturais.

O quindim da Churrascaria Palace é preparado seguindo a receita publicada por Vinícius de Moraes em seu livro, “Pois Sou um Bom Cozinheiro”, e vem com shot de White Horse, uísque preferido do poeta, notório apreciador de pratos e copos, que aparece empunhando um copo dele na “Santa Ceia da Bossa Nova”.

Jorge Amado morava no mesmo prédio em que o restaurante está, desde 1959, e até hoje os dois imóveis, residência e biblioteca, pertencem à família: o escritor baiano tinha o privilégio de ser o único cliente a receber comida em casa, em tempos em que não havia serviço de entregas. Sua filha, Paloma Amado, ainda criança, descia para buscar a comida.

A casa, que tem DNA português, era destino certo da cantora Amália Rodrigues, que ia direto para lá após seus shows, nas suas temporadas anuais no Canecão. Ela chegava e se dirigia logo para a cozinha, para preparar pessoalmente o jantar para seus amigos, com direito a sopa e bacalhau, madrugada adentro. Sentia-se em casa, acolhida por Antônio Saraiva, natural de Arouca, cidade do norte de Portugal, famosa pelas suas carnes, sobretudo vitelo e cordeiro. Sócio desde 1962, ele lembra a tradição musical do restaurante.

– Sempre tivemos bandas e pianistas tocando no salão. Havia um tempo que tínhamos um conjunto, com músicos estrangeiros. Havia alemão, argentino, francês… Era bom, porque os estrangeiros são parte importante de nossa clientela, e eles nos ajudavam a traduzir os pedidos – conta ele, ainda hoje na ativa, diariamente no salão.

Quando nasceu, em 1951, a Churrascaria Palace era vizinha do hotel Plaza, na Avenida Princesa Isabel, um dos mais classudos da cidade, onde aconteciam apresentações dos artistas mais importantes do Rio, e de fora. Era o lugar mais badalado do Brasil, musicalmente falando.

Quando mudou de endereço, em 1959, motivado por um incêndio, o restaurante continuou tendo uma vizinhança ligada à hotelaria de luxo e à música. De um lado, bastando atravessar a rua Rodolfo Dantas, está o monumental Copacabana Palace, que em 2023 completa 100 anos. Nos fundos, parede a parede, encontra-se o Beco das Garrafas, lendário endereço, onde nasceu nada menos do que a Bossa Nova, palco de shows históricos, e até hoje um dos poucos locais que têm apresentações regulares deste estilo musical tão carioca, mas quase sem espaço na cidade atualmente.

A relação com artistas está na origem do restaurante, mas se reforçou nos anos 1960, através da TV: a Palace, que ainda se chamava Churrascaria Leme naquela época, fez o bufê da festa de inauguração da TV Globo, no Jardim Botânico, em 1965, com serviço do próprio Antônio. E também eram eles quem preparavam a refeição servida durante o programa “Almoço com as Estrelas”, que fez história na televisão brasileira, com recordes de audiência nas tardes de sábado.

Neste ambiente cultural, a casa sempre foi reduto de artistas, pelas mais diversas razões. Essa história toda acabou resultando em um painel que logo se tornou um ícone da Palace, uma criação de Carlinhos Müller, caricaturista talentoso, especialista em retratar artistas. O quadro “Santa Ceia da Bossa Nova” tem a irreverência carioca, parodiando a famosa obra de Leonardo da Vinci, mas com personagens deste ritmo nascido em Copacabana, logo ali, atrás da cozinha da própria Palace. Vinícius, ao centro, representa Jesus (com garrafa de White Horse à frente). Entre os apóstolos, restam poucos vivos. João Donato comemorou, na terça dia 23 de agosto, os seus 88 anos em um mesão com amigos, entre eles Carlinhos Lyra e Marcos Valle, dois outros que aparecem no quadro (só faltou Ronaldo Bôscoli), além de e Wanda Sá e Gilson Peranzetta, entre outros artistas, como o pianista Wan Chagas, lendário personagem dos hotéis e boates de Copacabana, que ainda hoje toca na Palace, nos fins de semana. A festa tomou conta do salão.

Quem também estava lá era Lauro Almeida, da Rádio Ibiza, um dos responsáveis pela trilha sonora da casa, extremamente bem cuidada. Toma conta do repertório, com ele, Antônio Saraiva, filho, sócio do restaurante e produtor cultural.

– Fico feliz, porque recebemos muitos elogios sobre a trilha sonora, que não se restringe à Bossa Nova, que é um dos nossos pilares, mas traz muito do Rio e do Brasil, mostrando exatamente o que nós somos: cariocas, orgulhosos do país, amantes da música – costuma a dizer o empresário. 

Mas nada disso faria sentido sem uma cozinha à altura. E a Palace vive um momento dourado como os anos 1950, quando foi fundada. No ano passado, ao completar sete décadas, ganhou o Prêmio de Melhor Carne do Rio, pela Veja. O restaurante tem histórico de mudanças e adaptações. Foi um dos primeiros lugares a aderir ao rodízio, no início dos anos 1980. E foi o primeiro a abolir as bolachas (com lado verde e vermelho), que deixavam o serviço desses restaurantes um tanto inconveniente. Também foi a primeira a ter um sushi bar.

A Palace é uma churrascaria rodízio, mas parece à la carte: porque ali o ideal é ir aos poucos, pedindo aos garçons as suas preferências. Ser uma casa de carnes não significa que a cozinha se restrinja às picanhas, chuletas e maminhas. Ao contrário.

Tem horas, que a mesa pode mais parecer um boteco dos bons, como uma Adega Pérola, na mesma Copacabana, honrando as raízes lusitanas: podemos pedir ostras frescas, mexilhões à vinagrete, sardinhas portuguesas, arenque defumado (com maionese de urucum), casquinha de siri e os famosos bolinhos de bacalhau, receita de família, trazida de Portugal.

Valorizando os sabores brasileiros, a Palace serve pirarucu amazônico, de projeto sustentável, que contribui para a preservação da espécie e gera renda para as comunidades ribeirinhas. No ano passado, foram os maiores compradores individuais do Brasil, ganhando distinção da ONG Gosto da Amazônia.

Entre as guarnições, há novidades, como o mix de chips de raízes brasileiras, com inhame, baroa e batata-doce; cuscuz de milho; palmito assado e outras iguarias nacionais, que sempre variam no bufê, onde encontramos queijos Canastra e outros exemplares verde-amarelos, como os de cabra, produzidos pela família Suassuana (sim, do escritor), além de embutidos artesanais e uma série de produtos, que fazem sucesso entre brasileiros e estrangeiros.

Mas, a grande estrela mesmo são as carnes, com repertório que está sempre com novidades, mas sem nunca deixar de servir os clássicos, como picanha, maminha, fraldinha e costelão, que circula no carrinho, pelo salão, apresentada em seis diferentes cortes, com distintos sabores e texturas. Um sucesso.

Porém,  há sempre algo especial, que muitas vezes entra para o menu regular: foi assim, recentemente, com a chuleta, corte histórico do churrasco brasileiro, e que andava esquecido; e com o porco preto, de criação nacional, que nada fica a dever aos portugueses.

Fora os cortes estrangeiros, como os platenses bife ancho e entranha, outra relativa novidade, uma peça de fato especial; e os anglófilos, como o T-bone, outro que nunca falta na grelha.

Para encerrar, sorvetes amazônicos e o quindim do Vinícius, com seu bom e velho cão engarrafado, que no caso era o cavalo branco, que vai à mesa como homenagem ao escritor. Porque a arte é tempero essencial à vida, e a Palace sabe muito bem disso. Um brinde ao poeta e a todos os artistas!

* Bruno Agostini é jornalista especializado em gastronomia, relacões-públicas da Churrascaria Palace, e editor do livro dos 70 anos da casa, a ser lançado em breve.