Por Bruno Agostini
Frente fria rima mesmo com gastronomia. Porque o inverno dá mais fome na gente, assim como aumenta a vontade de comer. Da feijoada no fogão a lenha que nos aquece àquele cozido fumegante na travessa de barro, passando pelo ritual da fondue, a temporada de baixas temperaturas atrai ainda mais viajantes à Região Serrana do Rio. São turistas interessados, sobretudo, nos prazeres da boa mesa, acompanhando com uma taça de vinho ou cerveja, bebida que tem vários pequenos produtores artesanais de portas abertas aos visitantes nas cidades do roteiro.
Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo são os três lugares mais bem nutridos das montanhas fluminenses em quantidade de restaurantes. E a oferta é vasta e variada, mesclando novidades nascidas na pandemia, como a cervejaria Odin e a Casa Marambaia, ambas em Petrópolis, a clássicos com mais de 50 anos de história, como o restaurante Dona Irene, na vizinha Teresópolis, nascido em 1964. A oferta de endereços vai mesclando espaços urbanos a aprazíveis recantos bucólicos, como o Parador Lumiar, em Friburgo, ou o Angá Ateliê Culinário, na Cidade Imperial.
A saga do Dona Irene, da Sibéria ao frio ameno de Terê
Prepare-se para comer como um czar, sem pressa, uma miríade de delícias da Mãe Rússia pré-revolucionária. A vida do casal Mikhail Flegontovich Smolianikoff e Eupraxia Wladimirovna Smolianikoff foi uma grande aventura. Tudo começa em 1917, quando ele era capitão do exército czarista, na Sibéria. Foi expulso de seu país com a Revolução Russa. O casal atravessou o deserto de Gobi a pé e chegou até a China. Prosperaram, fazendo negócios com couro. Mas, então, em 1949 outro episódio histórico afetou Miguel e Irene, como vieram a ser conhecidos no Brasil, muitos anos depois. Sim, a Revolução Chinesa de MaoTsé-Tung. Cruzaram o mundo. Com muitas paradas no caminho. Chegaram a Teresópolis.
Então, em 1964, vem o Golpe Militar no Brasil. Com poucos recursos, Eupraxia passou a cozinhar algumas de suas especialidades para vender, como os pirozhkis, fofos bolinhos fritos de carne moída. Seus vizinhos, Maria Emília e Hisbello Campos, começaram a ajudar a levar clientes do Rio, em pequenos grupos. A casa dos dois siberianos acabou virando um restaurante informal, que logo ganhou fama, essa que reverbera até hoje. Os brasileiros ficaram sócios dos russos, que morreram entre os anos 1980 e 1990. Ano passado, foi Hisbello que nos deixou. Mas Maria Emília, com quase 90 anos, continua firne e forte à frente da casa, ao lado da filha, Ângela.
Desde 1964 seu menu de preço único foi sendo refinado ao longo dos anos. É uma refeição que deve ser apreciada com muita calma, num ritual com pelo menos duas horas de duração.
É importante fazer a reserva por telefone, quando geralmente já se escolhe o prato principal, que pode ser um estrogonofe, um varênique ou um frango à Kiev, os três pratos mais famosos da casa. Mas há outras opções, como o pojarski (uma almôndega de frango com gorgonzola) e o caquille (uma espécie de suflê de peixe), entre outras (poucas) receitas. Mas, antes deles chegarem, ainda há um longo e saboroso caminho, que começa com um copinho de vodca, que é produzida ali mesmo por Maria Emília, seguindo receita de Irene.
O destilado caseiro é mesmo indispensável, e quem quiser pode pedir uma garrafinha extra, cobrada à parte, servida envolta em pedra de gelo, e até levar um exemplar para casa. Nazdarovia é o nome da vodca, que tão bem acompanha a primeira rodada da refeição, um verdadeiro banquete digno de czar. São os chamados zakuskis, algo entre 10 e 12 pratinhos frios, com apresentação delicada, passando por uma imensa gama de sabores, cores e texturas, incluindo a bonita louça. Além de delicioso, o serviço é bonito. Há arenques à la creme e salmão defumado, ovo cozido com ovas, mousse de alho e patê de fígado, compotas agridoces, com a de berinjela, e saladas, como a russa, obviamente, e a de ovos com rabanete, em formato de flor, além de outras preparações, que podem variar um pouco de um dia para o outro.
O calmo ritual continua, e a coisa começa a esquentar, literalmente, quando vem a segunda rodada, com asinhas de frango crocantes de carne tenra e ramequins, geralmente um preparo com berinjela, molho de tomate e queijo, além de outras receitas finalizadas no forno bem quente, como suflês e gratinados, que chegam à mesa fumegantes.
Daí, vem um dos grandes momentos: os pirozhkis que deram origem ao restaurante, lá em 1964. Ao lado dos bolinhos, uma xícara de sopa, dessas com duas asas, com um vermelho vivo de beterraba: é o borscht, um clássico da culinária judaica do Leste Europeu. A graça é molhar os bolinho no caldo rico e perfumado, quem sabe com gotas de pimentas, que tornam tudo ainda mais quentinho e acolhedor.
É possível até que a esta altura você nem tenha mais fome. Mas, como resistir aos pratos, sempre fartos? Tipo o estrogonofe que segue a receita original, sem ketchup, e usando uma versão caseira do smetana, uma espécie de creme azedo, popular na Rússia, que deixa o prato mais leve e com sabor mais delicado do que as natas. Ou os varêniques, mais um preparo de raízes judaicas, que são pequenos pastéis recheados com uma espécie de purê de batatas com ervas acompanhados de escalopinhos de filé mignon grelhados e cebolinhas empanadas. E que tal o frango que carrega o nome da capital ucraniana, assunto tão falado no momento, uma sobrecoxa desossada, mas empanada com o osso aparente, recheada com manteiga e guarnecida com fritas – cuidado para que o líquido interno não suje a sua roupa, porque pode esguichar.
Mesmo que não haja mais muita ou nenhuma vontade de comer, não se pode deixar de pedir a sobremesa mais famosa do lugar, que é cobrada à parte: trata-se do supremo de chocolate com nozes, uma espécie de torta gelada, que merece o nome que carrega, e encerra a refeição, de fato, de modo soberano, assim como era o Nicolau II — o último dos czares – cuja derrubada deu origem a essa História, com agá maiúsculo. Dona Irene é resultado de uma saga.
Burrata, DNA do Fasano com estilo da Serra
Sofisticados pratos italianos, boa cerveja artesanal e vinhos de qualidade fazem a alegria dos admiradores do chef Renato Beckmann
E vamos da Rússia para a península mediterrânea. Na cidade de Teresópolis, nome que homenageia a imperatriz Teresa Cristina, nascida no que hoje é a Itália, o restaurante Burrata pontua essa tradição através do chef Renato Beckmann, que por anos trabalhou no grupo Fasano, onde se tornou grande cozinheiro. No fim do ano passado ele se mudou para um endereço maior, se instalando num amplo casarão, onde serve pratos que já estão gravados na memória dos cariocas que apreciam a boa mesa, como o ravióli de pato com laranja e o agnolotti de cordeiro com dois molhos: fonduta de queijo e roti, preparado com o caldo do cozimento.
Mas, no novo endereço, ele renovou o menu, além de apostar em drinques e cervejas artesanais, porque nem só de vinho se faz um inverno. (Em breve ele vai abrir um asiático chamado Bajau no local onde era o Burrata, logo em frente, e vem recrutando profissionais que trabalharam no Naga, no Village Mall, e com o sushiman Carlos Ohata, experimentado profissional, hoje consultor da rede de supermercados Zona Sul: o lugar promete.
No novo Burrata, o chef Renato Beckmann encorpou o seu negócio, em tamanho e qualidade. Além do espaço maior, com um lounge da BMW na porta, o lugar funciona como empório e loja de vinhos, além de abrir para o café da manhã nos fins de semana. Reforçou e ampliou a equipe, trazendo, por exemplo, um confeiteiro que faz sobremesas imperdíveis, como uma criação da casa, um profiteroles de banoffe, acertada combinação de massa choux com doce de leite e sorvete de banana.
Além disso, aproveitando a estrutura do bar que funcionava ali, e em parceria com uma cervejaria artesanal da cidade, a Rabugentos, ele tem uma boa oferta de estilos, incluindo uma New England IPA, que anda na moda.
Pode estar certo que ela vai acompanhar muito bem alguns pratos, sobretudo entradas como a frittata di mare, com lulas, camarões, tentáculos de polvo e peixe do dia, empanados e fritos, servidos com aioli de alho.
Mas vale ficar de olho na adega, com uma seleção que traz nomes como o do italiano Enzo Boglietti, um excelente produtor do Piemonte, e a brasileira Família Bebber, que é vendida em taça, duas excelentes pedidas para explorar o menu, que passeia por várias regiões da Itália, começando pelos dois pratos já citados que ele trouxe dos anos no Fasano, que já se tornaram clássicos do Burrata: duas pedidas certeiras.
A tradição renovada da ‘Alcobaça’
Do outro lado da Serra dos Órgãos, Petrópolis ganhou nos últimos anos alguns destacados restaurantes, que se juntaram a outros já bem conhecidos, como a Pousada da Alcobaça, com a cozinha sábia de Dona Laura Góes, que completa 92 anos em agosto, ainda em atividade. É ela ainda que comanda os panelões no fogão a lenha, que vira bufê onde todos se servem, quando é preparado o famoso cozido, apenas no inverno, e em fins de semana incertos (tem que pedir para ser avisado). Realmente o almoço se torna um acontecimento, com o banquete promovido por ela, ao sabor das mais variadas carnes e legumes, e os embutidos, o pirão e a pimenta. Bom mesmo é depois ir para o quarto tirar uma soneca, mas são poucos quartos, importante reservar.
Cervejaria ‘Matriz’
Bem perto dali está um dos lugares que representam o cenário atual da Região Serrana, que é dos mais importantes polos cervejeiros do país, abrigando desde fábricas gigantescas até pequenos cervejeiros artesanais. É a Cervejaria Matriz, uma dessas que são essenciais no roteiro da cevada, e do trigo, da aveia…
Da descolada ‘Odin’ ao requintado ‘Angá’
Outro endereço fundamental, que conjuga não só boas cervejas mas também um menu que merece todas as atenções é a Odin, cujo cardápio foi elaborado e é acompanhado de perto por uma chef emergente, sócia da casa: Lydia Gonzalez, jovem e talentosa, que criou pratos e sanduíches que todo cervejeiro gosta, de milanesa com salada de batatas a burgers.
Ela, que participou do programa Mestre do Sabor, com o chef Claude Troisgros, na TV Globo, nasceu em Petrópolis, viajou bastante, estudou gastronomia e passou por restaurantes dos hotéis Marina, no Rio e em Búzios, onde trabalhou com Felipe Bronze, antes do Oro, até retornar à sua cidade natal, para montar o indispensável Angá, onde faz uma cozinha de produto, aliando técnica à criatividade. Quem ainda não foi, está perdendo tempo. Porque o lugar é lindo, um destino em si. Só atende com reservas e em seu menu segue um delicado percurso, com couvert, quatro pratos e sobremesa. Há pratos como a combinação de peixe, banana e palmito, ou a carne de panela com cenoura glaceada e coalhada.
No circuito rural, os ‘Jardins do Horto’
Outro lugar que carrega a sua assinatura são os Jardins do Horto, no circuito rural do Brejal, onde o programa é aproveitar o bucólico local para piqueniques, fazendo a feira na lojinha, com cuidadosa curadoria de produtos locais, alguns com a marca do Angá.
Em Secretário, a comida espetacular do ‘Lá’
Mais um lugar local que conjuga uma cozinha caprichada em ambiente inserido na natureza é o restaurante Lá, em Secretário, que nasceu pelas mãos do chef Bebeto Felipe e seu companheiro Marcelo Vidal, e que completa 10 anos. Tudo ali é bonito, com as paredes envidraçadas e a decoração original e de extremo bom gosto. Mas o que reluz, mais que o sol típico do inverno, é a comida acolhedora de Bebeto, com vocação natural para o frio. Assim, nascem pratos como o porco em baixa temperatura com lentilha, ninho de alho poró e farofa de alho negro e o lombo de bacalhau com azeite de linguiça.
Chefes renomados na ‘Casa Marambaia’
E o que dizer da Casa Marambaia, que reúne dois dos maiores chefs franceses do Brasil? Rolland Villard, consultor, e David Mansuad, executivo. Eles criaram um menu infalível, onde encontramos coisas como vol-au-vent de palmito e cogumelos Paris com peito de frango ao molho bechamel; ragu tomate e batata calabresa com alho, aspargos e cogumelos com polvo grelhado; ravióli de queijo búfala com manjericão e texturas de tomate; além do melhor cassoulet que já comi na vida, com confit de pato e porco, assado no forno com um pouco de farinha de rosca, assim como manda a tradição da região de Carcassone, no Languedoc-Roussilon, origem do prato. Depois dele, só mesmo uma soneca, e luxo mesmo é estar hospedado ali para poder fazer isso de maneira real, no sentido de nobreza, porque o hotel é dos mais elegantes do interior do Rio.
‘Parador Lumiar’, um baiano afrancesado em Friburgo
Outro hotel delicioso e cuja comida, sozinha, já faz valer uma viagem é o Parador Lumiar, em Nova Friburgo, cujo responsável por isso é Isaías Neries, um chef baiano que está há muitos anos no Rio, com trabalho consistente, mas que buscou na serra a terra onde cultiva boa parte do que serve em seus menus, que mudam sempre. Porém, aos sábados, uma coisa é perene: a feijoada, que tem um notável bufê de saladas com vegetais de sua plantação orgânica.
Ele está sempre inventando alguma coisa, muitas vezes combinando a sua formação técnica francesa com ingredientes nossos. Desta maneira nasceu uma quiche de feijoada, por exemplo. Em seu menu atual há pratos como o confit de pato com ragu de cogumelos e molho de queijos e o suan com migada de baroa, ora-pro-nóbis e couve mineira. O menu de fondues lista seis tipos diferentes, incluindo os clássicos de carne, queijo e chocolate, mas também versões de gorgonzola, brie e doce de leite, além da versão “chinois”, de nacos de mignon para serem cozidos no caldo de legumes.
Seus doces são sempre um capítulo à parte, então não deixe de ver as sobremesas. Quem resiste ao “Delírio de doces caseiros”, mix de compotas feitas ali como se fosse uma fazenda mineira, com queijo minas da região? Eu é que não sou.