UM PAÍS QUE CHOROU TANTO MERECE A SUA MAIOR FESTA

A maior festa popular brasileira está voltando e a ‘RIO JÁ’ faz questão de mostrar que, depois de tanta tristeza, de tantas perdas humanas, de tanto sofrimento, apesar de tudo isso o mundo não acabou porque, simplesmente, não podemos permitir que ele acabe. O carnaval de 2022 é o carnaval da renovação, da reconstrução de um país dilacerado pela doença, pela ignorância e pelo negacionismo. Um país que, a fazer lembrar o filme recente, resolveu finalmente olhar para cima.

O Sambódromo será o palco magistral da retomada da vida. E antes disso, será a ribal-ta mais apropriada possível para a homenagem que todos queremos prestar aos que se foram, aos que nos deixaram órfãos, sozinhos, saudosos. Por esta razão, na maioria dos enredos que desfilarão na Sapucaí veremos comoventes atos de respeito e gratidão aos grandes sambistas brasileiros que partiram e aos que resistiram e, felizmente, sobreviveram bravamente a um mundo que por dois anos foi tão perigoso. Também desfilarão diante de nós, e não poderia ser diferente nesta época de resistência e luta, enredos que exaltam o antirracismo e a tolerância com as diferenças.

Depois de tanto tempo de isolamento e distanciamento social, que este seja, sem dúvida, o carnaval da proximidade, do contato físico, da confraternização entre amigos, do abraço, do beijo, dos corpos entrelaçados, da sensualidade típica dos cariocas.

Neste carnaval da ressurreição da vida prestemos um tributo aos grandes que perdemos para as doenças, como o colosso chamado Monarco, o gênio Aldir Blanc e o mais brasileiro de todos os italianos que o mundo gerou, o inesquecível Lan, que eternizou em seu traço as curvas sensuais e delicadas do nosso povo e a quem homenageamos, reverentes, na ilustração ao lado.

De alguma forma, eles estarão na avenida, felizes, sobre o mais lindo dos carros alegóricos.

Ilustração do mestre Lan: um sonho de carnaval

DA HESPANHOLA À COVID, OS DESFILES PÓS-PANDEMIA

Em setembro do ano passado, muito antes de qualquer confirmação sobre a realização ou não do carnaval de 2022, os barracões das escolas de samba do Rio de Janeiro retomaram seu ritmo de trabalho. Voltaram os ensaios, as rodas de pagode, e a movimentação da complexa engrenagem, quase industrial, dos carnavalescos, para deixar o espetáculo pronto como se fosse um ano como outro qualquer. Só que esse ano não vai ser igual aquele que passou. Até 2021, a folia no Rio só havia sido adiada duas vezes na história: em 1892 e em 1912 (e nos dois casos o carioca não quis nem saber e foi pra rua duas vezes: na data original e na substituta). Sequer havia o desfile das agremiações, que surgiu nos anos 1930. Ou seja, a próxima folia momesca será simplesmente a primeira na história das escolas de samba com um intervalo de dois anos para acontecer. Nos bares e barracões o otimismo é tanto que já se fala que vem por aí o “maior carnaval de todos os tempos”.  Só que este título já tem dono. Foi levantado em 1919 em uma realidade muito semelhante a que o Rio encara hoje. E o mínimo que dá para dizer é que, se preparem: o couro vai comer. Todos os detalhes e os serviços da mais carioca das celebrações você poderá acompanhar aqui no nosso blog.

Nosso “maior carnaval de todos os tempos” foi o primeiro depois da pandemia da Gripe Espanhola de 1918. Dados da Fiocruz indicam que entre outubro e dezembro daquele ano, período oficialmente reconhecido como pandêmico, 65% da população brasileira adoeceu. Só no Rio de Janeiro foram registrados mais de 14 mil mortos pela doença. Os hospitais ficaram superlotados, velórios foram proibidos, e medidas de prevenção e de distanciamento social demoraram a ser adotadas pelo governo. Ironia ou, para ficar no assunto, alegoria: a história, ou parte dela, se repete. Essas ações só passaram a ser consideradas quando boa parte do país já havia sido afetada. Assim como nos dias de hoje, receitas milagrosas foram apresentadas para curar a doença, como o uso do quinino (um medicamento, tal qual a cloroquina, indicado no tratamento da malária). Mesmo sem comprovação científica de sua eficácia, a substância sumiu das prateleiras das drogarias. Em 15 de outubro de 1918 o jornal “Gazeta de Notícias” destacava a “invasão da influenza hespanhola” e descrevia como os coveiros estavam ficando doentes e morrendo, obrigando a polícia a sair pelas ruas capturando homens parrudos que depois eram obrigados a abrir covas para sepultar os cadáveres.

Cariocas em 1919 pulando no maior carnaval de todos os tempos

Incerteza, temor e pânico tomaram conta da população em função da célere e radical alteração do modo de vida. Comércios e fábricas foram fechados, levando ao colapso de serviços e escassez de produtos e alimentos. Curiosamente, do mesmo modo repentino que chegou, a pandemia da Gripe Espanhola terminou em pouco mais de um ano, tendo infectado um quarto da população mundial — tornando-se assim uma das epidemias mais mortais da História. Até que em março de 1919 veio a revanche, ou, como definiu o escritor Ruy Castro, autor de “O carnaval da gripe e da guerra”: “a grande desforra contra a peste que dizimara a cidade”. “Qual era sua atitude naquele carnaval? Você não podia perder, você tinha que brincar como nunca porque poderia ser o último da sua vida. Aí você se jogou na festa, na folia, os blocos, os ranchos. Todo mundo. E assim aquele foi o maior carnaval de todos os tempos”, afirmou ele em recente entrevista.

“Seja bem-vindo, Deus Momo”, registrou o jornal “Correio da Manhã” no dia 3 de mar-ço de 1918: “O Carnaval é a grande força que liberta o carioca da tristeza em que passa o resto do ano”. Boa parte das músicas compostas tinha a Gripe como tema. A fantasia de espanhola foi a mais usada pela cidade. A pandemia também inspirou as grandes sociedades que apresentaram carros alegóricos decorados por nomes como Di Cavalcanti e J Carlos. Uma curiosidade foi o uso de réplicas de xícaras de chá nos carros, pois havia corrido um boato popular de que os enfermeiros da Santa Casa da Misericórdia serviam um chá letal, à noite, para matar os pacientes com Gripe, e, assim, esvaziar mais rápido os leitos do hospital. Mais uma que faz parecer até reportagem recente, né?

Mas o que chamou mesmo a atenção é que fosse nas grandes sociedades, bailes chiques ou nas festas mais humildes, havia uma forte onda erótica decorrente da tragédia. “Começou o carnaval e, de repente, da noite para o dia, usos, costumes e pudores tornaram-se antigos, obsoletos, espectrais. A Espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E então, o sujeito passou a fazer coisas, a pensar coisas, a sentir coisas inéditas e, mesmo, demoníacas”, afirmou o escritor Nelson Rodrigues, em uma entrevista de 1967. Dá para imaginar, de leve, o que vem por aí.

A bagunça foi tamanha que o jornal “A Noite” publicou uma reportagem estimando que na Quarta-Feira de Cinzas de 1919, 40 toneladas de papel tinham sido recolhidas das ruas do Rio, deixadas pelas tradicionais batalhas de serpentinas e confetes. Para efeitos de comparação, em 2020, quando pelo menos três milhões de pessoas foram aos blocos no Rio (uma cidade hoje seis vezes maior), a prefeitura recolheu 74 toneladas de lixo pela cidade – mas esse número foi alcançado com todo o tipo de detritos, não só papel.

No fim de outubro passado, a Prefeitura do Rio já havia recebido nada menos do que 620 pedidos de desfile para 506 blocos de rua. “Em janeiro, vamos tomar uma decisão definitiva”, explicou Rita Fernandes, presidente da Sebastiana, entidade que reúne algumas das mais importantes agremiações da cidade. A resposta já veio. A prefeitura cancelou o carnaval de rua. Não é possível tomar medidas de precaução contra a contaminação pela alarmante variante Ômicron em locais abertos. Quanto ao desfile das escolas de samba, a prefeitura ainda pretende realizá-los, mas novas avaliações deverão ser feitas e não se deve desconsiderar a hipótese de, no mínimo, um adiamento.

A Prefeitura também já antecipou uma parte do R$ 1,5 milhão que é repassado para as 12 agremiações do Grupo Especial. E, em dezembro, o Spotify disponibilizou todos os sambas-enredo do Carnaval de 2022. O sucesso foi imediato. “Para a nossa surpresa, a playlist do Rio está com todas as faixas viralizadas. Isso demonstra a força do samba e como o público está ansioso por este retorno da festa da Sapucaí. Temos certeza de que faremos um Carnaval emblemático”, afirmou o diretor de Marketing da Liga Independente das Escolas de Samba (LIESA), Gabriel David. A apresentação das 12 faixas dos Sambas de Enredo 2022 obedece à ordem de classificação das Escolas no último desfile, em 2020. Portanto coube à campeã Viradouro a honra de ser a primeira a mostrar o seu: “Não há tristeza que possa suportar tanta Alegria”, justamente uma releitura do carnaval de 1919, destacando o sentimento dos cariocas que foram as ruas naquele ano celebrar o fim da pandemia. O título do enredo é de um verso de uma marchinha cantada em 1919 pelo Clube dos Democráticos, uma das grandes instituições carnavalescas da época.

O prefeito Eduardo Paes, um conhecido entusiasta do carnaval, manifestava otimismo antes do Réveillon. Mas mesmo antes da disparada de casos, chamava atenção para o fato de que, se a situação não piorarasse acentuadamente, levando a uma suspensão, ainda assim haverá exigências rigorosas para os espectadores e os desfilantes no Sambódromo “Já estamos discutindo regras muito restritas que serão apresentadas a nosso comitê científico. Estamos inclusive nos utilizando do belo exemplo estabelecido pela direção do Flamengo que consideramos um caso de sucesso. Ou seja, não teremos necessariamente uma decisão uniforme sobre todas as formas de celebração da maior manifestação cultural de nosso país”, comentou o prefeito. Agora, só resta aguardar, porque a brincadeira promete – seja na data marcada, seja quando for.

Cartola, Delegado e Jamelão, homenageados pela Mangueira

NOS ENREDOS, IMPERA O ANTIRRACISMO E O RESPEITO AOS GÊNIOS DO SAMBA

Passados quase dois anos de pandemia, das 12 escolas de samba do Grupo Especial, apenas duas mudaram de tema no meio do caminho. A São Clemente trocou “Ubuntu”, por uma homenagem ao ator Paulo Gustavo, morto pela Covid-19, em maio do ano passado. Já a Paraíso do Tuiuti que havia planeja-do um enredo sobre os bichos, desenvolverá “Ka ríba tí ÿe – Que nossos caminhos se abram”, que falará sobre luta, sa Passados quase dois anos de pandemia, das 12 escolas de samba do Grupo Especial, apenas duas mudaram de tema no meio do caminho. A São Clemente trocou “Ubuntu”, por uma homenagem ao ator Paulo Gustavo, morto pela Covid-19, em maio do ano passado. Já a Paraíso do Tuiuti que havia planejado um enredo sobre os bichos, desenvolverá “Ka ríba tí ÿe – Que nossos caminhos se abram”, que falará sobre luta, sabedoria e resistência negra. A temática negra, aliás, estará fortemente presente no próximo desfile.

Na busca pelo seu décimo título, o Salgueiro quer levantar um coro de respeito à ancestralidade e as lutas pela igualdade, com “Resistência”, retratando locais do Rio de Janeiro marcados como pontos importantes de resistência cultural preta. A Beija-Flor trará o manifesto de Nilópolis com o enredo “Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor”, que tem a proposta, segundo a esco-la, de “enaltecer as glórias e as histórias dos negros”, sem deixar de abordar a luta contra o racismo. E a Portela vai levar para a Sapucaí, o enredo “Igi Osè Baobá”, que contará a história e retratará a simbologia dos baobás _ árvores gigantescas e milenares originárias da África. A presença de baobás no Brasil e o legado cultural dos milhões de seres humanos escravizados trazidos da África também terão destaque no desfile da escola.

Outras duas escolas vão apresentar temáticas sobre as nossas origens africanas: a Mocidade, com uma homenagem a Oxóssi, e a Grande Rio, por sua vez, saudará Exu. A Mocidade Independente de Padre Miguel levará para a Sapucaí o “Batuque ao Caçador”, um tema afro que terá o orixá como figura central. A escolha atende a um desejo antigo da comunidade, já que uma das marcas de sua bateria “nota 10” (“não existe mais quente”) é justamente o toque de caixa em homenagem a Oxóssi. Enquanto a atual vice-campeã, Acadêmicos do Grande Rio desenvolverá o enredo “Fala, Majeté! Sete chaves de Exu”, contando histórias ligadas à simbologia da entidade do candomblé.

Vila Isabel, Mangueira e Imperatriz escolheram celebrar nomes importantes de suas próprias “casas”. É o caso da Vila Isabel, que com “Canta, canta minha gente! A Vila é de Martinho!”, prestará tributo ao compositor Martinho da Vila. As outras duas farão homenagens triplas. O enredo da Imperatriz Leopoldinense, “Meninos, eu vivi… onde canta o sabiá, onde cantam Dalva e Lamartine”, que além de reverenciar dois grandes nomes do carnaval carioca, Dalva de Oliveira e Lamartine Babo, vai homenagear também o carnavalesco Arlindo Rodrigues, morto em 1987, responsável pelo primeiro bicampeonato da escola, em 1981, com famoso enredo “O teu cabelo não nega” (“Nesse palco iluminado/Só dá Lalá/És presente imortal/Só dá lalá’). Finalmente a Mangueira deita uma trinca de ases verde-rosa com a lembrança de Cartola, Jamelão e do lendário mestre-sala Delegado com o enredo “Angenor, José e Laurindo”.

Esperadas ainda serão as apresentações da Viradouro, única escola a relembrar o famoso carnaval de 1919 e que tentará conquistar o bicampeonato com o enredo “Não há tristeza que pode suportar tanta alegria”, e da Unidos da Tijuca. A escola promete uma viagem fantástica para contar a lenda da origem do nosso guaraná em “Waranã – A Reexistência Vermelha”, segundo o “socialismo indígena” seja lá o que isso signifique. Mas relaxe, afinal, vai tudo se acabar na quarta-feira.

INGRESSO? DIFÍCIL. VACINA? É BOM ESTAR PREPARADO        

O desejo de deixar as tristezas de lado e vibrar na avenida, torcendo pela escola do coração, é tamanho que em pouco mais de um mês todos os ingressos das frisas e camarotes para o próximo carnaval já estavam vendidos. Em meados de dezembro, metade dos ingressos para as arquibancadas estavam esgotados. E enquanto as autoridades não definiam os estatutos da gafieira, a Liga Independente as Escolas de Samba (Liesa) estudava formas para estabelecer, caso necessário, apresentação de comprovantes de vacina para quem for desfilar na avenida.

Como os melhores lugares já foram vendidos, uma alternativa é passar a madrugada no sereno, sentado no concreto, no alto do setor 2 (o mais barato, com ingressos a partir dos R$ 118). Há quem goste. O mais confortável, porém, é comprar um ingresso para uma festa de camarote. Foram-se os bons tempos em que as pessoas sonhavam em ganhar as famosas camisetas-ingresso para as grandes bocas livres, com comida de primeira, cercadas de celebridades em gigantescos espaços montados pelas empresas, em especial as cervejarias. 

Ainda existem camarotes corporativos onde o lobby come solto, mas a crise é grave e eles já não ostentam mais como no passado. As festas, entretanto, mantém esse espírito. Elas oferecem, além do tradicional serviço all inclusive, shows com DJs nos intervalos dos desfiles, além de atrações variadas, dependendo do bolso do folião. Os ingressos mais em conta estão pela faixa dos R$ 1.000 cada noite, por pessoa. Mas há entradas ubervips onde o valor chega aos dois dígitos.

Ainda no fim de dezembro, o presidente da Liesa, Jorge Perlingeiro, disse em entrevista à CNN que, caso haja a necessidade do passaporte vacinal, a liga estará preparada para sua implementação. Segundo ele, uma ideia é adotar no carnaval do Rio o mesmo aplicativo usado no Grande Prêmio da Fórmula 1, em São Paulo, e não haverá a necessidade de levar comprovante impresso, mas apenas digital. “Como é um evento fechado, fica viável fazer o controle. Temos ainda quase três meses, mas estamos nos antecipando para, caso tenhamos que apresentar um passaporte de vacinação, estarmos preparados. E isso valerá até para os componentes das escolas. Estamos anunciando nas quadras para que, quem for desfilar, apresente o comprovante de vacina para poder desfilar”, explicou ele na entrevista.