A VOLTA DO CANECÃO. SERÁ?

Terça-feira, 12 de novembro de 1985. Acostumado a cantar em bares e churrascarias no subúrbio do Rio de Janeiro, Elymar Santos aluga o famoso Canecão para realizar um sonho: cantar para a elite carioca. O episódio que alavancou a carreira do artista entrou para a história de uma das mais icônicas e democráticas casas de espetáculos do país, que durante quatro décadas foi palco das maiores estrelas da Música Popular Brasileira (MPB). Pelo endereço de Botafogo, na Zona Sul da cidade, passaram nomes inesquecíveis, como Maysa, Tom Jobim, Vinicius de Moraes com Toquinho, Elis Regina, Clara Nunes com Paulo Gracindo, Elizeth Cardoso e Simonal e a inesquecível Cássia Eller.

Nem o empresário paulista Mário Priolli poderia prever tamanho sucesso. Ele chegou ao Rio em 1967 com a ideia de abrir um boliche, que virou cervejaria (daí o nome Canecão) e acabou se transformando em casa de espetáculos em 1969, inaugurada com Maysa. O espaço foi fechado em outubro de 2010, após uma disputa judicial que se arrastou por 39 anos até o imóvel ser reintegrado ao patrimônio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde então, a instituição busca parceiros interessados em investir na construção de uma nova casa de shows, com capacidade para 1.500 lugares.

Em ruínas e sob risco de desabamento, o imóvel foi ‘destombado’ em junho de 2019 pela Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), a pedido da UFRJ, abrindo espaço para alterações no seu gabarito que poderiam favorecer investimentos da iniciativa privada. A reabertura do Canecão com finalidade cultural é objeto de um estudo de viabilidade do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), finalizado em 2020.

A ideia da universidade é que, além do novo auditório, outros prédios sejam construídos como espaços culturais para serem utilizados pelos moradores da região e pela própria comunidade acadêmica. O estudo do BNDES inclui projetos para ocupar áreas ociosas na Cidade Universitária, na Ilha do Fundão. O prazo de concessão é de 50 anos e os vencedores das licitações deverão assumir a reforma e a construção de restaurantes e moradias estudantis.

Em fevereiro de 2021, o prefeito Eduardo Paes chegou a anunciar que pretendia ajudar a universidade a viabilizar as obras para retomada do antigo Canecão. “Estou inteiramente à disposição da Reitoria da UFRJ para mudar a legislação, para mudar o zoneamento, para gente permitir que o Canecão renasça e ali vire de novo um espaço público da nossa cidade”, afirmou.

 Um passo importante para tirar o projeto do papel foi dado recentemente pela Câmara de Vereadores do Rio ao autorizar a mudança de uma lei municipal que impedia a construção deste tipo de estabelecimento no terreno. Uma nova lei complementar prevê “a reconstrução de equipamento cultural multiuso com casa de espetáculo no Campus Praia Vermelha da UFRJ para restituir à cidade equipamento cultural com importância relevante na cena cultural carioca”.

A medida prevê a adequação do zoneamento daquela área e estabelece novos parâmetros urbanísticos para a edificação. A taxa de ocupação do terreno de 116 mil metros quadrados será de 50% e o novo equipamento cultural terá altura máxima de 20 metros. “A partir de agora a UFRJ poderá avançar na elaboração do projeto e dar entrada no licenciamento do equipamento na prefeitura”, explica a vereadora Tainá de Paula (PT), autora do projeto que virou lei.

Para virar realidade, será necessário um estudo de impacto sobre os efeitos do empreendimento na qualidade de vida da vizinhança, incluindo análise de uso e ocupação do solo, geração de tráfego e demanda por transporte público, ventilação e iluminação, além de estabelecer as ações mitigadoras ou compensatórias necessárias. O projeto deverá contemplar ainda a oferta de local de embarque e desembarque de passageiros, de carga e descarga, além de disponibilizar vagas de estacionamento.

Esse estudo deverá ser apresentado ao Conselho Municipal de Política Urbana (Compur) e aprovado pelo órgão do Poder Executivo responszsável pelo planejamento urbano. “Com tudo aprovado a UFRJ poderá, enfim, dar início às obras”, completa Tainá. Enquanto não encontra os investidores para dar prosseguimento ao projeto de reabrir a casa, a UFRJ tenta junto à Escola de Belas Artes uma forma de preservar parte do antigo Canecão, guardada na lembrança de milhares de pessoas que por ali passaram: o que ainda resta do mural de 31 metros criado por Ziraldo.

Histórias que a casa conta

Ronaldo Bôscoli escreveu em letras gigantescas na fachada: “Nesta casa se escreve a história da Música Popular Brasileira”. E foram muitos encontros e despedidas no Canecão, que recebeu shows internacionais, toda a nova geração de rock dos anos 80, além de grandes artistas nacionais que simbolizam não só a nossa MPB, mas a grande diversidade de estilos musicais, sem qualquer preconceito. Em 1988, Cazuza fez no palco da casa de Botafogo a sua última apresentação antes de morrer.

“Tempos felizes de Elba Ramalho, Alceu Valença, Moraes Moreira, dos mineiros Beto Guedes, Lô Borges e a turma do Clube da Esquina; pista para dançar ao som da orquestra de Ray Connif.

A jornalista Lea Penteado dedicou um capítulo do seu livro ‘A verdade é a melhor notícia – Bastidores e Estratégias de Assessoria de Imprensa’ ao Canecão, que virou um ‘case’ de comunicação. 

Num texto delicioso, Lea conta que o Canecão tinha suas portas abertas para todos os grandes, de todos os segmentos da música, e não só medalhões como Roberto Carlos, Chico Buarque, Maria Bethânia e Marisa Monte. “Foi um avalista na transformação do Wando de brega a cult. Viajava de Bethânia a Ramones; de Paco de Lucia a shows inesquecíveis como o do Echo and the Bunnymen; da MPB ao punk; do brega ao rock.

Enquanto a imprensa da época torcia o nariz para Roupa Nova, Guilherme Arantes e Oswaldo Montenegro, estes eram os shows que mais davam lucro, enquanto “alguns artistas respeitados tinham dificuldade em lotar a casa e com isso havia profusão de cortesias”. 

A notícia sobre o fechamento do Canecão, após longo período de degradação, foi recebida em clima de luto pelos frequentadores da casa, que também colecionavam histórias emocionantes. Como a da então moradora de Botafogo Rosane Vicente, que conheceu o ex-marido e pai de sua filha no dia 16 de outubro de 2001, na porta da casa.

Em 2016, o Canecão chegou a ser temporariamente ‘reaberto’ por militantes do movimento Ocupa MinC, após serem expulsos pelo Governo Federal do Palácio Capanema, no Centro, onde ficaram por 70 dias em protesto contra a extinção do Ministério da Cultura. Por mais de um mês, a casa recebeu shows e atos contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff.

Por Rosayne Macedo