Aos 4 anos, ela já desfilava na Portela, agarrada na saia da mãe, Dona Judith, e vigiada de perto pelo pai, Seu Pio. Irenete Ferreira Barcellos, nascida e criada em Madureira, berço da Azul e Branco na Zona Norte do Rio de Janeiro, ganhou o apelido de Surica ainda na infância. E nunca mais largou a paixão pela Majestade do Samba. Hoje, aos 81 anos, a mais antiga pastora do samba carioca não esconde a emoção de voltar a pisar a Avenida após um ano de jejum forçado pela pandemia.
Já em ritmo de Carnaval, ansiosa para ver a Águia Altaneira voltar ao Sambódromo, Tia Surica, como passou a ser chamada, conversou com a RIO JÁ sobre sua expectativa para o desfile de 2022.
– Todo mundo tendo a sua responsabilidade, agindo corretamente e seguindo as regras sanitárias, vai dar tudo certo. Estou munida com a terceira dose da vacina contra a Covid-19 e também imunizada contra a gripe – conta.
– Saúde é o mais importante, não adianta ter dinheiro nem fama – sentencia.
Cultuada pelo também portelense prefeito do Rio, Eduardo Paes, que garantiu o desfile de 2022, Surica não poupa elogios à decisão. “Todo mundo apoia e o povo também. Carnaval no Rio tem que ser na Sapucaí. Todo mundo chega cedo no Sambódromo, já a partir das 4 horas da tarde”. Sobre o sentimento ao pisar a Avenida, ela resume, com toda a simplicidade: “Quando o carro alegórico faz a curva na Sapucaí, a emoção é muito grande, nem sei como explicar. Se não tiver o coração firme, tenho até um piripaque”.
Se a pandemia lhe trouxe grande tristeza com a ausência da Sapucaí, o ano de 2021 também não foi fácil. No início de dezembro, Tia Surica chorou a perda do grande amigo Monarco, seu parceiro na Velha Guarda Show da Portela. Os dois se apresentavam em casas de espetáculos e diversos eventos, sendo reverenciados dentro e fora do Brasil. Aos 88 anos, Hildemar Diniz (nome de batismo do baluarte) se despediu deixando saudades.
– Vai fazer muita falta. Ele foi um grande compositor, teve suas músicas gravadas por muitos cantores. Perdemos um grande artista e um ícone do mundo do samba – relembra Surica, que conhecia Monarco e sua família desde os tempos de adolescente.
Para ela, a responsabilidade de conduzir sozinha os shows à frente da banda que os acompanhava vai ser grande. “Mas a gente vai se acostumando”, afirma a cantora, resignada.
A matriarca da Portela tem muita história para contar. Em 1966, tornou-se a primeira mulher a puxar um samba-enredo na Avenida. Ao lado de Maninho e Catoni, interpretou ‘Memórias de um Sargento de Milícias’, de autoria de Paulinho da Viola. De lá para cá, perdeu a conta de quantas vezes representou a escola dentro e fora do Brasil, tendo se transformado em uma das maiores baluartes do samba.
Cozinheira de mão cheia, a cantora resgatou a tradição iniciada com Tia Vicentina e transformou sua casa no ‘Cafofo da Surica’, onde velhos e novos sambistas se reuniam à mesa para a feijoada preparada por ela. Durante 17 anos, o prato que leva seu nome passou a ser servida uma vez por mês na quadra da Portela. Nos últimos anos, com o evento gastronômico terceirizado pela escola, a matriarca e suas ‘suriquetes’ chegaram a se transferir para a quadra da escola de samba ‘Difícil é o Nome’, em Pilares. mas a tradição foi interrompida pela pandemia.
No dia em que completou 81 anos, Tia Surica ganhou um grande presente. Sua feijoada foi imortalizada como Patrimônio Cultural Imaterial do Estado do Rio de Janeiro, por decisão da Assembleia Legislativa (Alerj), referendada pelo Governo do Estado. Sobre mais esse reconhecimento, Tia Surica disse que estava muito satisfeita com tantas homenagens. “Estão me dando flores em vida. Tenho que retribuir todo o carinho que o povo tem comigo”, afirma. Maior campeã do carnaval carioca, com 22 títulos, e perto de completar seu centenário, em 2023, a Portela também recebeu o mesmo título.
Mais recentemente, Tia Surica e suas suriquetes voltaram a servir a iguaria em festas e celebrações especiais. E já têm diversos convites para 2022. “Antes e depois do Carnaval, vamos percorrer o Rio e outros estados. Já temos várias propostas. Em 2022 vou trabalhar muito”, diz ela, animada. Sobre o que esperar do novo ano? A resposta está na ponta da língua: “Saúde, paz, prosperidade e muitas realizações. Que seja melhor que 2021 e a gente possa voltar à normalidade. Vai dar certo, se Deus quiser”.
Se depender da energia e da religiosidade da Tia Surica, o 23º título da Portela pode estar a caminho. “A fé remove montanhas. Eu sempre rezo antes dos shows e de entrar na Avenida. Vamos entrar 2022 com os dois pés”, enfatiza. Sobre o futuro, sentencia: “Não somos eternos. Espero que os mais novos dêem continuidade ao trabalho que fazemos pelo Rio”.
Por Rosayne Macedo